Tal como os defensores do Zico, os partidários de uma nova aliança com os comunistas portugueses pretendem que «eles também merecem uma segunda oportunidade». Por Passa Palavra

Em 6 de Janeiro de 2013, em Beja, um cão cruzado de pitbull, que dá ou dava pelo nome de Zico, matou uma criança de dezoito meses, esmagando-lhe o crânio e arrancando-lhe massa encefálica. De acordo com o procedimento usual, a veterinária municipal ordenou que o animal fosse abatido. Todos os portugueses conhecem esta história, mas os brasileiros não, e quando a conhecerem haverá, merecidamente, mais uma piada de português. É que se gerou uma verdadeira onda de solidariedade para com o cão e cinco dias depois mais de trinta mil pessoas haviam assinado uma petição em defesa de Zico, o que é um sinal alarmante do estado cultural e emocional desse país. «Eles também merecem uma segunda oportunidade», dizia a petição, referindo-se aos cães assassinos.

Lembrámo-nos deste caso lastimável ao lermos várias objecções que nos são dirigidas e que, espremido o sumo, se resumem ao argumento de que o Passa Palavra demoniza o Partido Comunista Português, o que nos retiraria qualquer possibilidade de iniciativa política e nos impediria de vislumbrar alternativas. Parece que não existiriam caminhos que de um modo ou outro não passassem pelo Partido Comunista.

Ora, o que afirmamos acerca dos comunistas portugueses não resulta de má vontade nem de hostilidade pessoal. Baseia-se no conhecimento dos processos históricos. É certo que a história se faz com grandes números e que em tais circunstâncias é possível haver excepções. No caso dos partidos comunistas, porém, nunca as houve, em nenhum lugar do mundo, e se entendermos a sua estrutura política compreendemos que eles provoquem invariavelmente os mesmos resultados práticos funestos.

Foi o que sucedeu em Portugal. Entre o final de 1974 e o final de 1975 a acção nociva do Partido Comunista Português foi contida pela força de organização autónoma da classe trabalhadora: pelas comissões de trabalhadores nas fábricas e em empresas comerciais e de serviços e pela organização, muitas vezes informal, de soldados e oficiais de baixa patente. Mesmo nos campos a sul do Tejo a influência do Partido Comunista nas Unidades Colectivas de Produção foi, nessa época, bem menor do que se julga, até porque em 1974 as directivas dadas pelo Partido ao proletariado agrícola resumiam-se ao aumento salarial e à obtenção de direitos laborais. As terras foram invadidas e ocupadas com as bandeiras vermelhas à frente, mas à revelia da direcção comunista, num movimento fundamentalmente autónomo. Por seu lado, a Intersindical, sob as rédeas curtas dos comunistas, limitava-se a uma cúpula praticamente desprovida de base, salvo no sector bancário, o que aliás serviu ao Partido Comunista para começar a dominar através do crédito as empresas autogeridas.

Desde os últimos meses de 1974 até ao final de 1975 o Partido Comunista era muito forte no governo, mas o governo era muito fraco no país, e se esquecermos esta dialéctica política não entenderemos nada da revolução portuguesa. Se em 1974 e 1975 beneficiámos de liberdade e seguimos avante com o processo revolucionário, isto sucedeu apesar do Partido Comunista e não devido a ele.

Depois, a instauração da democracia representativa em Portugal precipitou os comunistas para a marginalização e em diversos aspectos condenou-os à irrelevância. Por isso o Passa Palavra durante três anos não se preocupou em analisar esse Partido, e assim continuaríamos se a situação não tivesse mudado, ou não corresse o risco de mudar.

Consideramos que o abandono da zona euro por parte de Portugal é a hipótese menos provável, precisamente por ser a menos desejável. Como temos mostrado repetidamente e continuaremos a insistir no futuro, o abandono da zona euro condenaria a classe trabalhadora portuguesa a uma situação económica e política ainda pior do que aquela em que agora se encontra.

Mas o facto de ser essa a alternativa menos provável não significa que não seja possível, o que nos obriga a analisar os perigos desse cenário e a mantermo-nos alerta.

O Passa Palavra tem afirmado, em sucessivos artigos, que o abandono da zona euro, pelo agravamento que provocaria na crise interna e nas condições de vida dos trabalhadores, levaria as classes dominantes portuguesas a desenvolver a curto prazo formas de capitalismo de Estado. E isto aconteceria numa situação em que seria muito difícil à classe trabalhadora criar e fortalecer organizações autónomas próprias, que pudesse contrapor ao capitalismo de Estado. Expusemos o problema em vários artigos, para aí remetemos o leitor.

Em tal quadro de lutas sociais, com as classes dominantes coesas e a classe trabalhadora desorganizada, o capitalismo de Estado implicaria a fascização da política. É verosímil que nesse caso os militares ocupassem o primeiro plano. Em todo o mundo as forças armadas, pelo seu funcionamento interno, constituem um aparelho de Estado alternativo, capaz de substituir o aparelho de Estado civil quando este é imobilizado por uma crise profunda. Aparecendo como a base e o eixo de um capitalismo de Estado, para que lado os militares portugueses prosseguiriam a fascização da vida política, para a direita ou para a esquerda? É que os oficiais são uma tecnocracia fardada, e como toda a tecnocracia eles caracterizam-se por uma neutralidade ideológica que os leva a adoptar as bandeiras e as palavras de ordem mais oportunas. Para que banda se inclinaria esse peronismo ou bolivarismo português?

Alguns de nós pensam que, como a extrema-direita portuguesa está desorganizada e praticamente não tem expressão, na hipótese de um capitalismo de Estado o caminho mais verosímil para os militares seria a aliança com o Partido Comunista e com a sua central sindical, a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP). Esta solução seria, aliás, facilitada pelos elos que já unem algumas associações de militares e de polícias à esfera de influência comunista.

Outro cenário, num sentido contrário, é possível. Como várias vezes tem sido analisado pelo Passa Palavra, em especial aqui, o sindicalismo atravessa em Portugal uma longa e escura noite. No período de 1985 a 1995, os sindicatos portugueses sofreram uma redução de aderentes na ordem dos 50%. O aumento do desemprego e da precariedade origina um novo tipo de trabalhador que ou não tem emprego ou vai tendo empregos, condição incompatível com um modelo de organização assente na identidade cristalizada entre indivíduo e trabalho. Um olhar em busca de eventuais movimentações nas escolas e nas universidades deparará igualmente com um enorme vazio. Isto, apesar dos incessantes cortes orçamentais ou, no último caso, do aumento do abandono escolar provocado pelo brutal aumento de propinas [mensalidades]. São parcos os indícios de uma influência do Partido Comunista – quer por via da CGTP quer através de organizações estudantis – ou de qualquer outro tipo de organização política junto dos mais jovens.

A inexistência de movimentos de base no seio das empresas e dos estabelecimentos de ensino faz com que os perigos de uma eventual saída da zona euro sejam ainda maiores. Quando a indignação não dá lugar à organização, mas sim ao desespero, encontra-se criado o cenário perfeito para a emergência e consolidação de um discurso populista, defensor dos bons trabalhadores e empresários contra a má e corrupta classe política. Um discurso que, diga-se, tem sido mais propagado pela esquerda e por alguma extrema-esquerda do que pela direita conservadora. A inflexão de uma solução política autoritária para o centro e para a direita não será, contudo, difícil de imaginar. Se forem analisados com base na denúncia da corrupção, da cunha [empenhos] e da luta de todos contra todos, o empreendedorismo frustrado, o emprego prometido que nunca se chegou a ter e a falência de milhares de pequenas e médias empresas poderão criar um barril de pólvora.

Qualquer que seja o cenário mais verosímil, temos apontado em sucessivos artigos os perigos de um capitalismo de Estado resultante do abandono da zona euro, que consideramos uma eventualidade possível, embora não sendo de imediato a mais provável. E existe uma única maneira de diminuir essa probabilidade, que é a de incansavelmente desvendarmos as suas implicações práticas. Têmo-lo feito e continuaremos a fazê-lo. E é precisamente disso que nos acusam aqueles que consideram a nossa posição exclusivamente negativa e desprovida de repercusões práticas. Estas são as pessoas para quem tudo o que é importante sucede no Estado. É uma deformação do pescoço, não olham para o que lhes está debaixo dos pés. E agora, vislumbrando no horizonte um capitalismo de Estado que os abranja a eles também, abanam a cauda de satisfação e chamam-nos desmancha prazeres. Num artigo publicado no início de Dezembro do ano passado observámos que «mesmo para a maioria dos intelectuais de esquerda instruídos e cosmopolitas, o capitalismo de Estado, que eles podem desprezar em teoria, não é repulsivo na prática. Até os regimes políticos mais delirantes precisam de uma tecnocracia sensata, senão não se aguentariam nem uma semana. E assim, nos corredores dos ministérios e nos gabinetes ao lado, estes tecnocratas inteligentes e cépticos irão atenuando os efeitos piores das medidas mais nocivas, enquanto dizem ironias no intervalo». Acham que lhes vale mais um lugar secundário e obediente numa secretaria de Estado do que o inglório papel de blogueiros, e quem somos nós para dizer que não têm razão!

É neste contexto que surge o Zico, o pitbull de Beja. Pedimos aos leitores que não comecem aos gritos, uma metáfora é só uma metáfora e não estamos aqui a falar de veterinárias nem de matadouros municipais, mas de processos históricos. Ora, tal como os defensores do animal, os partidários desta nova aliança com os comunistas portugueses pretendem que «eles também merecem uma segunda oportunidade».

Antigamente os partidos comunistas levavam atrás um cortejo de compagnons de route, companheiros de jornada. Tratava-se de intelectuais — enfim, mais ou menos intelectuais… — que, embora se distanciassem aqui e acolá da cartilha oficial, iam dizendo que sim e que também. Agora estes mesmos sujeitos são apelidados criticamente de useful idiots, idiotas úteis. São úteis precisamente por serem idiotas.

As obras que ilustram este artigo são de Álvaro (Mega) Herz Serrano, sendo que a do destaque se intitula Cinocéfalo con ofrenda de collar de ojos e as demais Dibujando Cinocéfalos.

4 COMENTÁRIOS

  1. Diz o texto no seu terceiro parágrafo que “Ora, o que afirmamos acerca dos comunistas portugueses não resulta de má vontade nem de hostilidade pessoal. Baseia-se no conhecimento dos processos históricos (…) No caso dos partidos comunistas, porém, (excepções) nunca as houve, em nenhum lugar do mundo, e se entendermos a sua estrutura política compreendemos que eles provoquem invariavelmente os mesmos resultados práticos funestos.”

    Poderei tirar disto a conclusão que o autor do artigo preferia que a batalha de Estalinegrado se saldasse pela vitória das divisões Panzer de Von Paulus, comandante do 6º Exército alemão e pela derrota do Exército Vermelho? Ou estarei a pensar mal?…

    Diz-se também “Ora, o que afirmamos acerca dos comunistas portugueses não resulta de má vontade nem de hostilidade pessoal.” Acredito piamente. Então só vislumbro uma explicação: a “posição de classe” do autor.

  2. Leonel Clérigo,
    Está a pensar mal. O seu argumento a respeito de Stalingrado pode aplicar-se a qualquer outra batalha vencida pelos Aliados durante a segunda guerra mundial.
    Quanto à posição de classe, a autoria do artigo, como está claramente expressa, cabe ao colectivo do Passa Palavra. O nosso comprometimento com as lutas dos trabalhadores, manifesto no site, é indicativo suficiente da nossa posição de classe.

  3. Quando coloquei no comentário “Ou estarei a pensar mal?” tinha certa esperança que esta pequena “provocação” resultasse num esgrimir de argumentos e que alguma coisa se aclarasse. Enganei-me: estamos ainda numa fase bastante recuada.

    Convenhamos: o colectivo do “Passa Palavra” não respondeu à questão que coloquei sobre a sua científica “lei universal” que reza: “…compreendemos que eles (os comunistas) provoquem invariavelmente os mesmos resultados práticos funestos.” E como Estalinegrado não foi um acontecimento qualquer – até o tão famoso Welfare State é filho de Estalinegrado –, naturalmente que ameaçava fazer implodir tão esforçada e sólida “lei universal” que, trocada por miúdos, resume-se nisto: das mãos dos comunistas sempre saiu, sai e sairá trampa. E o que fez o colectivo do Passa Palavra? Respondeu ao estilo “variações à guitarra e à viola” e deu-me um bilhete de carroça para as praias da Normandia para lá ir recordar a “grande batalha” aliada. Como reza a anedota do passageiro do comboio: “Eu cá nunca me fico!”

    Quanto à questão da “posição de classe”, aguardava também uma explicação lógica e não um arrazoado de “boas intenções” para juntar a todas as outras que conheço quando partir para o inferno. Mas o Passa Palavra não entendeu assim: preferiu enviar-me pr‘ó “site” que é como quem diz, mandou-me bugiar.

    Por último e permitindo-me fazer um resumo dos comentários, considero ser de pedir emprestado ao meu conterrâneo Bocage um seu dito gracioso que adapto às circunstâncias: “Alvas teorias, negros propósitos…argumentos, não vi nenhum.”

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here