Por Passa Palavra
Um dos assuntos mais comentados nos últimos dias foi a performance — para dizer o mínimo — “exótica” do candidato Cabo Daciolo, do partido Patriota, no primeiro debate das eleições presidenciais que se avizinham, com destaque para a pergunta feita ao candidato Ciro Gomes, do PDT (Partido Democrático Trabalhista), sobre o Foro de São Paulo e a URSAL. A participação do cabo arrancou risadas e deu origem a vários memes. Entretanto, há poucos motivos para rir. Sem qualquer resistência da nossa parte (a esquerda e a extrema-esquerda), tem ocorrido uma cada vez maior articulação política de militares no Brasil, e o referido Cabo se relaciona com esse cenário.
Não se trata apenas do crescimento e fortalecimento da “bancada da bala” no parlamento. A candidatura de Bolsonaro à presidência, como noticiado pelo Valor em julho de 2017, potencializou candidaturas de políticos desse campo pelo único fato de se associarem a ele. Deputados da bancada, crescendo nas pesquisas por conta disso, sentiram-se estimulados a dar saltos mais altos no poder, disputando assentos no Senado.
Nem se trata também do crescimento do apoio a Bolsonaro na Câmara dos Deputados. O Congresso em Foco, por exemplo, noticiava em julho de 2018 que Bolsonaro, que havia recebido apenas 4 votos na disputa pela presidência da Câmara em fevereiro de 2017, passava a contar com o apoio de pelo menos 65 deputados menos de um ano depois, número que superava o da maior bancada da Câmara: a do PT, com 61 parlamentares. Segundo o coordenador desse crescimento, o deputado Onyx Lorenzoni, do Democratas (DEM) do Rio Grande do Sul, esse número seria muito superior, chegando a 111. Por mais que estes números sejam contestados devido à insistência da candidatura de Bolsonaro em não divulgar o nome desses parlamentares, nos parece inegável que muitos deputados vêm tentado se associar à família Bolsonaro para pegar carona em sua recente popularidade.
Há quatro anos sabemos que o Brasil tem convivido com o Congresso mais conservador desde 1964, segundo uma pesquisa do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP) que foi muito noticiada. Nessa época, o DIAP estimava um crescimento de cerca de 30% na “bancada da bala”. Mas nem disso também se trata. Não se trata apenas de mais policiais e militares no parlamento. O problema é que agora muitos desses políticos sentem-se confortáveis para assumir uma postura de cada vez maior insubordinação perante os princípios e normas da democracia, e têm se reunido para se articular politicamente nesse sentido.
Deve ter passado despercebido a muitos um evento ocorrido no início deste mês em Goiás, o 2º Simpósio dos Políticos Militares do Estado de Goiás, que contou com a participação de 120 pessoas e 30 candidatos, tendo como objetivo discutir estratégias e bandeiras para os políticos militares. Nesse evento, um dos candidatos, o ex-deputado federal Capitão Wayne, teria dito que com a candidatura de Bolsonaro “o cidadão de bem entendeu que os militares são a salvação da política do Brasil”. Representantes da Polícia Militar disseram também que vão abrir as portas dos batalhões para garantir contato e proximidade dos candidatos com as tropas. Isso já deveria ser o suficiente para causar arrepios em qualquer boa consciência democrata e fazer toda a esquerda colocar-se em estado de alerta máximo, preparando-se efetivamente para um enfrentamento com as forças da ordem que será, com toda certeza, cada vez mais duro e violento.
Um coronel teria afirmado, ainda no mesmo evento, que “2018 é um ano especial para os militares. Nunca tivemos um momento tão favorável para organização política e captação de todo o nosso potencial eleitoral”, enquanto outro teria dito que “a política passa a ser a nossa estratégia mais eficiente. Pela primeira vez, temos uma grande chance de aumentar o nosso poderio legislativo. Temos de trabalhar para deixarmos de ser legislados por aqueles que nada ou pouco entendem de nossa atividade”. O capitão Wayne, já citado acima, teria dito ainda, em comentário sobre a força política dos militares no estado, que “o governo tem de tremer com a gente, no bom sentido. O governo não tem controle sobre nós”.
Ignoramos qual seria o “bom sentido” de fazer o governo tremer diante de militares cada vez mais fortalecidos e politicamente organizados. A nosso ver — num país ainda fortemente marcado pelo autoritarismo e a extrema violência política exercida pelos militares, há não muito tempo, contra a sociedade civil e até mesmo militares dissidentes, e onde os militares passaram por cima, literalmente, de um governo civil democraticamente eleito e das lideranças civis então existentes —, não pode haver “bom sentido” numa fala como essa, sobretudo para um dos alvos principais da Ditadura Militar: a esquerda.
O que temos de ter em mente é que, para as pessoas que fazem parte desse campo político, no qual se inserem, a nosso ver, os militares mencionados acima, a esquerda é uma minoria que “se apoderou da educação, da cultura, da causa dos direitos humanos, dos sindicatos, do jornalismo […] e depois do Ministério Público e da magistratura”. Somos, em outras palavras, uma pequena elite infiltrada em diversos espaços da sociedade civil e até mesmo do Estado. Agora, com o fortalecimento de pautas conservadoras e extremistas perante a opinião pública, com o fortalecimento da direita e da extrema-direita no seio da própria classe trabalhadora, processo este que começou ainda em 2013 (ver aqui e aqui), é a hora do contra-ataque.
Os apoiadores de Bolsonaro — que nada mais é, para muitos, que uma personificação, um símbolo desse sentimento da direita e da extrema-direita, de que há uma minoria de esquerda se apoderando do país — são, em grande parte, pobres, proletários, moradores de periferias, como se pode conferir num vídeo recente produzido pela Vice Brasil. Basta imaginar a união dessas pessoas — muitas das quais com acesso a armas — àqueles militares politicamente fortalecidos e articulados, e ainda com parlamentares de direita e extrema-direita fortalecidos no Congresso, para termos uma ideia de o quanto a situação é gravíssima: carecemos de todo um preparo e toda uma estrutura que eles podem voltar contra nós, e contra a qual ainda não temos condições de resistir minimamente.
Só para se ter uma noção, uma recente pesquisa do ONG britânica Global Witness, também muito noticiada, colocou o Brasil no primeiro lugar em assassinatos de ativistas no mundo: 57 assassinatos em 2017. E a situação chegou a um nível ainda mais trágico com o assassinato de Marielle no Rio de Janeiro. Nossa própria vida e integridade física estão cada vez mais ameaçadas. Temos todos os motivos para prever uma intensificação desse tipo de assassinato se Bolsonaro for eleito, na medida em que teremos ocupando a presidência uma pessoa que, entre outras coisas, homenageia assassinos e torturadores da Ditadura Militar em seus discursos. Risco que, sabemos, de modo algum desaparece no caso de sua derrota eleitoral, dado o grau de enraizamento social e institucional atingido por esta articulação.
Além do mais, a condenação dos 23 no Rio de Janeiro nos mostra que não podemos contar sequer com as garantias mais sagradas do Estado Democrático de Direito. Estaremos cercados de todos os lados: de um lado, por um Poder Legislativo sequestrado pela direita e a extrema-direita; de outro, por um Poder Executivo também capitaneado pela extrema-direita; de outro ainda, por um Poder Judiciário sem qualquer compromisso para com as liberdades democráticas; e de outro ainda, por um amplo e heterogêneo conjunto de milícias ou de quase milícias, e um amplo e heterogêneo conjunto de simpatizantes; sem contar as polícias e os militares.
E o pior de tudo é que nossa própria casa não está arrumada. Pelo contrário, vem sendo bagunçada de dentro por pessoas que deveriam estar do lado de fora, mas preferem o lado de dentro. Temos, apenas para começar a avaliar o estado da confusão:
1. Uma retomada do nacional-desenvolvimentismo corporativista, em defesa dos interesses de quem “trabalha” e quem “produz” e contra o capital financeiro, na pessoa de Ciro Gomes, tendência esta que fez tudo o que pôde para se aproximar do campo capitaneado pelo PT e do campo criado pela Rede Sustentabilidade, sem sucesso (ver aquie aqui). Mesmo assim, é uma tendência que poderá ampliar radicalmente seu apelo perante a esquerda e os trabalhadores.
2. Um processo cada vez mais intenso de cooptação de demandas típicas da esquerda pós-moderna, identitária e multiculturalista pelo ecológico Rede Sustentabilidade, liderado por Marina Silva, culminando, por exemplo, na sua aproximação com o movimento identitário Frente Favela Brasil há alguns meses (ver aqui e aqui). Aliás, uma das razões que podem ter feito Ciro tanto almejar uma aliança com Marina é o fato de Marina ser muito mais palatável perante o público mencionado acima: diminuiria consideravelmente a rejeição de Ciro entre as mulheres.
3. Uma tentativa de recondução de Lula ou de seu projeto político ao poder, com alguns ajustes que ainda devem ser cuidadosamente analisados, o que caminha ao lado de uma tentativa sistemática de conservar o PT e, mais especificamente, Lula como polo agregador predominante das mais diversas tendências de esquerda, em oposição ao “golpe” e às reformas introduzidas pelo presidente Temer. Fazem parte desse processo as tentativas sistemáticas de isolar Ciro Gomes, impedindo o PDT de formar uma coligação com o PSB (Partido Socialista Brasileiro), mesmo que para isso se torne necessário “rifar” candidaturas estaduais. Faz parte também do mesmo processo as bençãos de Lula à — e, como consequência, o esvaziamento da — candidatura Boulos, do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), que dividiu e enfraqueceu o partido.
4. O processo de cooptação de lideranças de diversos partidos e movimentos de um amplo espectro, da esquerda à direita, por organizações suprapartidárias que podem ser caracterizadas como coletivos empresariais ou “start ups” políticas, estimuladas pelo impacto causado pela Operação Lava Jato sobre quadros importantes dos principais partidos (ver aqui e aqui).
5. A cada vez mais ampla hegemonia de grupos que, na esquerda, privilegiam pautas identitárias e referentes a comportamentos, ao invés de se conectarem aos reais interesses dos trabalhadores, agora seduzidos pela demagogia de extrema-direita. Ou seja, a cada vez mais ampla hegemonia de uma esquerda que se recusa a centrar sua análise e sua atuação no âmbito do combate à exploração dos trabalhadores.
6. O flerte — ou tentativa de cooptação — de parte da esquerda com militares emergentes de motins (militares não fazem greve) por melhoria de salários e remunerações, como é caso do próprio Cabo Daciolo, preso em 2011 e expulso do corpo de bombeiros após participar de movimento que reivindicava auxílio-transporte, melhores condições de trabalhos e aumento do piso salarial da corporação. Daciolo passou primeiro pelo PSOL, sendo depois expulso por contrariar o programa e o estatudo do partido e por declarações polêmicas como parlamentar. É justamente da participação em motins que tais militares obtêm legitimidade eleitoral inicial, bem como admiração de parte da esquerda. Deve-se lembrar, inclusive, que o próprio Jair Bolsonaro ganhou notoriedade nos anos 1980 por um artigo, publicado na revista Veja, criticando a autoridade militar e o governo Sarney, e por um suposto plano de colocar bombas em quartéis.
Será que seremos capazes de começar a enfrentar esses problemas, percebendo que a situação nos é — para nós, anticapitalistas — extremamente trágica? E será que seremos capazes de integrar e animar a classe trabalhadora na luta contra a exploração, ao invés de vê-la — parte considerável dela — unir-se àqueles que nos vão massacrar? Disso depende nossa sobrevivência e nossa capacidade de seguir lutando, pois já vivemos um dos piores cenários possíveis.
Enfim, sem motivos para rir, estamos cercados de todos os lados.
E precisamos de motivos para rir?
Rir ajuda a pensar.
Rir ajuda a ferir.
“Há pessoas incapazes de rir das coisas sérias. Não se saberia fazê-las querer rir, mas não se deve tampouco deixar proibir rir de coisas sérias. Pode-se falar com humor e com seriedade de coisas sérias, com humor e com seriedade de coisas engraçadas. Para as pessoas sem humor, é em geral mais difícil compreender o grande método [a dialética]”. B.Brecht
Fico estarrecido com, em 2018, um coletivo de esquerda escrever golpe entre aspas se referindo ao golpe de 2016.
Mas essa análise equivocada feita dois anos ou mais atrás, rendeu seus “frutos”. Não diria nem análise, pois se trata de simples leitura da realidade diante do nariz. A análise equivocada leva a não antecipar os movimentos e as consequências. Então apresenta-se como novidade e desespero uma situação antecipada e óbvia em linhas gerais para uma parte da esquerda e extrema-esquerda, enquanto aqui era tratado indiferentemente como mera disputa entre gestores (como se não houvesse interesse de classes, por exemplo, na derrubada de um governo e na arregimentação de forças para isso).
É fato que a sociedade como um todo já estava em processo de militarização, mas também é fato que não existe vácuo de poder, e na hora que se destitui um governo eleito, com protagonismo de corporações do Estado (judiciário, ministério público, polícia e parlamento), num processo que para tal ajudou a minar a legitimidade e credibilidade das instituições e categorias representativas burguesas, à direita, esse vácuo tende a ser ocupado por essas corporações, ou outras. Temos então o Judiciário e os militares ganhando espaço no Estado e nos governos, com todo o antiesquerdismo que deu o tom ideológico do golpe.
É disso que o artigo trata. Mas isso já estava escrito em 2016. Isso já era o desenvolvimento lógico de quem falava golpe sem aspas.
“Agora, com o fortalecimento de pautas conservadoras e extremistas perante a opinião pública, com o fortalecimento da direita e da extrema-direita no seio da própria classe trabalhadora, processo este que começou ainda em 2013 (ver aqui e aqui), é a hora do contra-ataque.”
A hora do contrataque foi 2016, pois o ataque estava todo escrito lá.
Pelo menos o artigo tem o mérito de ver como mudanças institucionais alteram o terreno de luta aqui embaixo. E foi isso que aconteceu, o golpe de 2016 não era mera mudança de governo, mas obviamente implicaria uma mudança de horizonte das lutas e de possibilidades e do terreno em que elas se dão.
Faltou ciência política. Golpe de Estado: um manual prático. Quando um governo é destituído por uma ou mais corporações do Estado, com ou sem a atuação de movimentos de massa. Desde o primeiro momento do governo Michel Temer os militares retomaram um espaço no governo que não tinham desde a ditadura militar. O exemplo do arbítrio do golpe vai se espalhando de cima abaixo, até o guarda da esquina. A comporta se abre de vez e a máxima de que golpe se vê quando começa mas não se sabe como termina prevalece.
De onde estou tenho pouco acesso à internet, portanto pouco participarei do debate aqui. Mas não posso deixar de registrar como é estarrecedor que ainda em 2018 exista quem queira impor a “linha correta” em meio à esquerda. Em outros tempos isso rendia no mínimo a acusação de stalinismo, mas como os tempos são outros… Assim que tiver mais acesso à internet (e tempo) retorno com outros comentários, mas isto me engasgou tanto que não pude evitar a observação.
me impressiona o grau de formalismo do comentário do Leo Vinicius. O fato a ser analisado não é o uso ou não da palavra “golpe”, mas sim os movimentos nas profundezas sociais. Não seria isso o conteúdo de um simples manual de ciência política? Para os arautos linguísticos do “golpe”, tudo é decorrência lógica do “golpe”: o assassinato de Marielle, o desemprego, o resultado da mega-sena… e a discussão política de fundo segue sendo a mesma: apoiar o setor capitalista “progressista” ou não?
Essa questão permeou todo o século XX e não se resume com definir se usamos a palavra “golpe” ou outra.
É como está dito, de fato existe “a realidade diante do nariz”. A linha correta diz que há uma “decorrência lógica” desta realidade – sustentar a hegemonia petista, sustentar a conciliação de classes, sustentar a Frente Popular-; por sorte existem outras lógicas entre o céu e a terra. O medo não deve empurrar-nos a posições que já sabemos que seguirão nos levando a derrotas.
Vichê…! Se mataram 57 ativistas em 2017, foi por isso que se acabou o ativismo em 2018…?
Não entendo esse tal de golpe… nem “golpe”… pois seja lá qual for o Golpe, os golpeados insistem em permanecer juntos aos golpistas… Vai ver que os golpeados não tem outros recursos… assim como os quilombolas “não tinha outro recurso que o de capturar um escravo para fazer a tarefa que sua companheira não podia realizar”(http://passapalavra.info/2009/08/10998#comment-336215). Se um dia os golpeados e/ou golpistas nos saudarem “anauê!”, vamos dizer: “é tudo tupi? Tupi-guarani?
Não quero saber de “luz no fim do túnel”… e a medicina explica porquê…
Lucas,
O que foi analisado no meu comentário é a relação de uma análise da realidade equivocada dois anos atrás e que se estende até hoje e o conteúdo do artigo. As aspas no golpe são só o símbolo mais evidente da análise equivocada. Como não se viu a realidade diante do nariz, agora se surpreende que se está “cercado por todos os lados” e que precisamos contratacar… A caravana passou e quem viu viu. O artigo está deslocado no tempo, e como as aspas continuam demonstrando que se enterrou a cabeça na areia na necessidade identitária (pois tirar as aspas é sucumbir e se misturar ao petismo), a o militarismo ascendente e o “cerco” aparecem assim, quase que do nada.
Manolo,
Quando eu disser que a terra é redonda terei orgulho de ser chamado de stalinista pelos terraplanistas, tentando dar a linha certa.
E para defender a “linha correta”, o aforismo “matador”, a frase “definitiva”, o “lacre” — não argumentos, porque não se sustentam.
Leo Vinicius,
Você quer dizer, então, que fazem parte de um mesmo campo político a força-tarefa da Lava Jato, o governo Temer, os políticos militares mencionados no artigo, a bancada evangélica, enfim, toda a direita e a extrema-direita? E, pior, que as pessoas que sofreram o “golpe” em 2016 fazem parte do nosso campo, anticapitalista? Acho que “faltou ciência política” aí…
A CHINESA, de Godard:
Rides Again (1967-2018) Minoria x Maioria / Linha Justa x Linha Desviante/ Ala Vermelha x Ala Branca …
Será que, fracassando melhor, os proletários – enfim! – ultrapassarão a dócil classe trabalhadora, íntegra, animada e idealizada pelos miraculosos mandarins do Passa Palavra?
O fato de você não gostar do governo que caiu, não significa que ele não tenha sofrido um golpe. O processo de Cunha era conhecido de algum tempo, mas eles deixaram que o referido sujeito passasse todo o processo do impeachment para não atrapalhar o golpe, depois de tudo concluído, puderam livrar-se da figura incômoda do então presidente da câmara.
Pronto, a monomania do “golpe” contaminou os comentários. Lucas é quem acertou a mão.
O problema aqui não é “gostar” ou não de tal ou qual governo. O problema é que quando é “com a gente” é golpe, quando é “com os outros” é a lei. E assim qualquer coisa pode ser “golpe”, porque a palavra passa a querer dizer qualquer coisa e perde o poder explicativo.
“Ah, mas o golpe foi na classe trabalhadora!” O Passa Palavra está publicando os vários pedaços de um ensaio que escrevi sobre o desenvolvimento de tendências fascistas no Brasil, tanto no longo prazo, quanto como resultado da crise recessiva recente. Quem o ler com atenção verá que muito do que veio a aparecer como “resultado do golpe” já estava lá desde antes.
“Ah, mas os golpistas fazem pior!” A intensidade dos ataques à classe trabalhadora no governo Temer é proporcional à incapacidade do governo Dilma de resolver a crise que ele mesmo aprofundou (porque ela já estava lá, por razões de prazo muito mais longo).
“Ah, mas vocês não querem dizer que é golpe para não se misturarem com o PT!” Como se o caso fosse simples assim, coisa de torcida e de amiguismo, de “se misturar” ou não. Política é coisa mais complexa, assim o dizem os bons manuais de ciência política, e é assim que deve ser tratada. É completa irresponsabilidade tratar de política como quem trata do círculo de amigos e conhecidos. O reducionismo é também politicamente irresponsável por restringir a política às eleições, que é precisamente onde o poder não está. Pode soar bem para a claque que cada subcelebridade arruma nas redes sociais, mas política se faz mesmo bem longe delas (das redes sociais e das eleições).
“Ah, mas não havia razão legal nenhuma para derrubarem Dilma!” Como na esquerda — anticapitalista também, mas não só — é comum esquecer que as regras da representação política e da gestão capitalista não se resumem às eleições, mas à complexa relação entre os três poderes tradicionais e à sua relação com o “quarto poder” das empresas; como é comum também esquecer-se que estas relações não excluem acordos de bastidores, e não apenas o que está “na lei”; como tudo isto é esquecido, ou convenientemente escamoteado, certos setores no meio da esquerda chamam de “golpe” o resultado de um cenário onde o Executivo nem tinha maioria parlamentar, e portanto estava suscetível a ver bloqueadas todas as suas propostas políticas, nem tinha qualquer margem plausível de negociação por meio de emendas orçamentárias devido à crise econômica e fiscal que se avolumava desde 2013 pelo menos. Para piorar, o governo Dilma não tinha como atender os novos reclames da FIESP sem contrariar suas bases políticas tradicionais nos sindicatos e nos movimentos sociais; sem margem de negociação e sem capacidade de manter-se apaziguando os capitalistas — em suma, sem capacidade de governar — o governo Dilma ficou sem qualquer base de sustentação nos meios onde realmente se exerce a política. É o que, por exemplo, lançou a FIESP da situação à oposição, pois o travamento de pautas no Congresso abalou definitivamente a capacidade de o Executivo impor sua vontade sobre o Legislativo, como é a regra no Brasil desde os primeiros anos da República. Política é correlação de forças, não a “lei”, nem muito menos a “justiça”. “Lei” e “justiça” são as palavras-de-ordem agitadas por quem entende esta regrinha básica e quer alterar a correlação de forças a seu favor apelando às massas e multidões, só isso.
“Ah, mas os manuais de ciência política!” Ora, não bastasse um manual de ciência política poder ser contra-argumentado com outro como qualquer coisa nas ciências humanas (mas não só nelas), são os próprios manuais de ciência política quem diz que numa economia globalizada um golpe — golpe mesmo, sem aspas — afastaria completamente os investidores externos e travaria a participação em fóruns globais de governança política e econômica. O afastamento do PT do poder, para não comprometer ainda mais uma economia já lançada na recessão, tinha de se dar por meio do simples uso das “regras do jogo” para derrubar o governo, e mesmo com a incompetência técnica dos acusadores e a fragilidade técnica dos defensores levada em conta em todo o processo do impedimento, era a correlação de forças política que importava, e o governo Dilma não tinha mais força alguma. Cumpria tabela, segurava-se como podia, e só. Como num presidencialismo não cabe voto de desconfiança para derrubar gabinetes, o impedimento foi a solução. As mentes inocentes que argumentam pela ilegalidade do law-fare, que igualam law-fare e golpes de Estado a torto e a direito sem qualquer nuance (cf. as comparações absurdas do impedimento de Dilma com o de Fernando Lugo no Paraguai, este sim um processo escandaloso que mal durou 36 horas) etc. esquecem-se dos inúmeros exemplos históricos, no capitalismo e também nos regimes ditos “comunistas”, a demonstrar que na política vale tudo — inclusive a lei.
Mas deixando a monomania de lado para voltar ao tema do artigo e às suas boas provocações quanto a um dos aspectos da atual conjuntura, só tenho uma observação: o cenário pintado está por demais “fechado” com a direita e a extrema-direita. Não tinha como ser diferente. Quando uma geração inteira de pessoas em idade eleitoral nasceu e cresceu depois de uma ditadura militar de extrema-direita, e quando a “liberdade de expressão” garantida a quem tenha grana para criar seus próprios veículos de comunicação abriu espaço para que intelectuais de direita formassem um público cativo anti-stablishment em meio às crises de um governo de esquerda, ser “de direita” deixou de ser xingamento para ser uma opção política viável aos olhos de muitos. A visibilidade que a direita hoje tem é proporcional à sua quase inexistência e à sua total irrelevância nas décadas de 1980, 1990 e 2000. Digo isto porque, nesta época, quem perguntasse a um político notoriamente situado na direita do espectro político se ele era de direita ouviria ou evasivas (“não sou nem de direita nem de esquerda, sou a favor do povo”, “a favor do Brasil”, “a favor de [coloque aqui o nome de uma cidade, Estado ou região]”), ou uma autoidentificação ao “centro”. Digo-o porque era esta a prática habitual de figuras como Antonio Carlos Magalhães, José Sarney, Ronaldo Caiado, Gilberto Mestrinho, Jarbas Passarinho, Jader Barbalho, Amazonino Mendes, Paulo Maluf e outros da mesma igualha.
Chamou-me a atenção também no artigo a correlação entre coletivos empresariais e start ups políticas. Se em 1904 Lênin não tinha vergonha alguma em igualar a organização do partido social-democrata à organização de uma fábrica, era por entender — errada e idealisticamente, hoje o sabemos — que a disciplina da fábrica acostumava os trabalhadores ao trabalho coletivo. O erro de Lênin estava em pensar que a fábrica era um elemento criador de uma disciplina do trabalho em comum em paralelo à exploração, sem levar em conta que é o elemento do conflito contra os capitalistas pela organização autônoma do trabalho em comum o central na organização dos trabalhadores numa fábrica fordista. Há aí, entretanto, uma intuição que permanece: as formas de organização do trabalho podem ser transplantadas para outros ramos da vida social, e via de regra o são. Idem para as formas organizativas de outras instituições. Não é por acaso que as biqueiras têm livro-caixa e um sistema complexo de apontamentos, como uma empresa. Não é por acaso, vistas as coisas por outro prisma, que as estruturas organizativas das igrejas protestantes serviram de modelo para muitas organizações políticas extraparlamentares nos meios anglófonos, desde o cartismo na Grã-Bretanha até a luta por direitos civis nos EUA. Vendo as coisas em retrospecto, ainda no campo do puro “impressionismo”, sem qualquer análise mais densa e organizada, as start ups, os “coletivos empresariais”, estas formas de organização em pequenos grupos de alto impacto, seu uso intensivo das tecnologias de ponta no campo das telecomunicações, tudo isto está “por aí” há muito tempo, diria pelo menos há uns dezenove anos. Pode ser mesmo um fomato mais antigo de organização. A circulação entre esta forma de organização em meio a grupos de esquerda e de direita é que tenho dúvidas sobre quando começou, e como aconteceu. Mas acho que com isto o Passa Palavra provoca uma linha interessante de investigação para intervenção, pelo que desde já agradeço ao coletivo.
O jogo de marketing realizado com a palavra “golpe” faz com que exista tanto a interpretação inocente – de que o impeachment foi um golpe no sentido de jogada, cama-de-gato, malícia, etc – como a interpretação forte – vinculando a história recente e fustigando os restos de anti-imperialismo setentista nas esquerdas, o pudor formalista dos liberais de esquerda e, por fim o que parece ser o caso do Leo Vinicius, ressuscitando a teoria dos dois campos (https://www.infoescola.com/geografia/teoria-dos-dois-campos/).
“Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não ajunta, espalha” (Mateus 12:30).
Em outro artigo aqui no PP, quando a tese do “golpe” estava a ser devidamente refutada nos comentários, LV simplesmente saiu do debate e foi escrever o seu próprio texto para tentar, quem sabe, angariar mais adeptos para o campo da Social-Democracia. Mas concordo com Manolo que o mais importante está em outro lugar: como subir da patamar a organização do terceiro campo. Nisso, apesar de boas análises, ainda estamos patinando sem sair do lugar.
Não me basta que o raio já não prejudique. Não quero desviá-lo; quero que aprenda a trabalhar para mim. A minha sabedoria acumula-se há muito tempo como uma tempestade; cada vez se torna mais tranquila e sombria. Assim faz toda a sabedoria que há de chegar a engendrar o raio. Para estes homens de hoje não quero ser nem chamar-me luz. A estes… quero cegá-los. Raio da minha sabedoria, cega-os!
RAIO DE MINHA SABEDORIA, CEGA-OS…
Assim falou… Zaratustra???
Mas Zé, pense no seguinte: organização não brota do nada. Nâo é como lançar camisas suadas e queijo num canto escuro aguardando que dali nasçam ratos. Pede um trabalho lento, paciente e tenaz de aglutinar gente. De lidar com suas inevitáveis, necessárias e saudáveis diferenças. De reconhecer afinidades, de estabelecer diferenças. Não adianta esperar pela “organização que vem”. É preciso fazê-la.
O que me interessou no artigo, e peço desculpas por ser repetitivo, foi a correlação entre “coletivos empresariais” e “start ups políticas”. A julgar pelo que o Passa Palavra já escreveu sobre o assunto em outros tempos, há uma igualação entre, por exemplo, Fora do Eixo e MBL, Mídia Ninja e Mamãe Falei etc. A hipótese lançada pelo Passa Palavra, não sei se consciente, me parece interessante. Seriam estas as formas políticas de uma geração para quem as start ups são a forma usual de organização do trabalho? Estariam os “coletivos autônomos” incluídos aí? A hipótese me parece muito frutífera. Como toda hipótese, precisa de verificação nos fatos. Me parece, entretanto, um bom pontapé para um debate necessário.
NEM RIR, NEM CHORAR; COMPREENDER E ATUAR.
A meta (abolição do trabalho assalariado, expropriação dos expropriadores, destruição do Estado…) exige a centralização orgânica, subsumindo as organizações classistas formais ao partido histórico. Ou seja: a unidade revolucionária (autonomia proletária) construída não a partir do abstrato vínculo das ideologias e opiniões políticas, mas na e pela auto-instituição (teórica, programática e organizativa) de uma comunidade que protagonize o movimento efetivo pelo fim do atual estado de coisas.
Mais uma vez, pleno acordo Manolo. Em assuntos como esse, pelo peso do legado histórico que carrega, prudência e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Mas percebo uma timidez exagerada – e generalizada – para darmos o que me parece ser o mais tímido dos tímidos passos na direção de um avanço nesse particular: estabelecer algum grau de organicidade nas conversas dentro deste campo, para podermos “olho no olho” irmos realizando refinamentos e polimentos do que precisa, com urgência, voltar a existir em algum momento: uma esquerda proletária com consciência comunista enraizada nos locais de trabalho, estudo e moradia. Senão ficamos sempre na crítica dos inimigos de sempre.
Ulisses: pois, mas como?
Zé: e por que você não deu o “o mais tímido dos tímidos passos” ainda?
Nada que precise ser respondido por aqui. Apenas questões para meditar.
Leo Vinicius,
A aspas no “Golpe” foram minhas, não de nenhum coletivo. Concordo exatamente com os comentários do Manolo e do Zé. Para poupar o meu tempo e dos outros leitores não vou repetir os argumentos. Lembrando apenas que não foram respondidos os questionamentos anteriores sobre a sua defesa do golpe.
No fim das contas tenho a impressão que o Leo Vinicios tem uma visão bastante cristã da realidade. Se aceitarmos a hipótese do golpe, sem aspas, estamos salvos. Ou seja, basta concordar que houve golpe e estaremos vendo a realidade assim como ela é. O que para os cristãos é o mesmo que aceitar Jesus. Se banhar nas águas do rio Jordão.
Lênin presumia (ou fingia) saber a resposta. Escreveu o Que Fazer?, Teses de Abril, Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática, O Estado e a Revolução… Deu no que deu. Os resultados (golpe de estado contrarrevolucionário, Brest Litovsk, Kronstadt, fascismo vermelho, social-imperialismo etc.) são conhecidos.
Manolo, talvez compensando o zig da ultra-timidez (Zé dixit) com o zag da sub-audácia (digo eu), pergunta-me: como?
Respondo, pois, arrimando minha enciclopédica ignorância em Samuel Beckett: “Tenta. Fracassa. Não importa. Tenta outra vez. Fracassa de novo. Fracassa melhor.”
[já que as citações não conformam mais um post específico do site, me expresso aqui: Sigmund Freud, PSICÓLOGO austríaco é a mãe!! É psicanalista mesmo, e não, psicanálise não é psicologia. Na pior das hipóteses, “médico” austríaco.]
Já dei vários Manolo. E bem concretos. E desde 2014 venho insistindo para que o PassaPalavra chame um encontro justamente para dar uma dimensão maior do que os passos que eu dei. Por questão de abrangência mesmo. Mas não tem sido fácil vencer a resistência em dar “o mais tímido dos tímidos passos”. O que, para mim, tem sido um mistério de entender, pois nunca imaginei – no que posso estar errado – que ele teria uma maioria, ou pelo menos um peso expressivo, de autonomistas anti-organizacionais. Com esses até “o mais tímido dos tímidos passos” fica mesmo impossível de ser dado. Mas gostei da cutucada, valeu.
Por que uma organização? Não há nenhuma no Brasil que aceitaria novos filiados? O caso não é mais o da construção da autogestão das lutas nos locais onde estamos de fato inseridos? Não é mais necessário acumular novas práticas socias nos locais de trabalho? O xeque-mate no capitalismo brasileiro poderá ser dado após uma grande explosão de pessoas e pautas nas ruas? Se faz sentido pensar nessa explosão, parece também fazer sentido pensar que uma organização (no sentido de uma instituição com programa político para a classe trabalhadora e a revolução) terá que se preparar para dirigir a revolução. Aproximar as lutas a ponto de contruir greve de solidariedade? Não! Construir a organização que vai pensar coletivamente, com autonomistas de várias categorias, em épocas de lutas ou não, como é que as lutas se darão nos diferentes espaços até a explosão de pessoas e pautas nas ruas do Brasil, até a vitória final e além. Um pouco a mais de utopia e aproximação aos princípios organizacionais do capitalismo.
Fagner Henrique,
1) Não sei o que você define por campo político. No golpe de 2016 a cola de diversos interesses foi o antipetismo. Uma converg~encia de corporações, interesses econômicos e diversos atores. Depende do que se define como campo político podem estar ou não. A política,s ej de que tipo for, é feita de alianças e convergência, por vezes pontuais e por vezes duradouras.
2) Não consegui compreender seu raciocínio sobre os que sofreram golpe serem do campo anticapitalista. Golpe de Estado é deposição de um governo. Um governo do campo anticapitalista?
Manolo,
Foi Golpe até por manual de ciência política, e já mostrei isso em outro comentário a artigo nesse site. A necessidade de negar isso só se justifica por necessidade identitária, de uma esquerda que não é autônoma ao PT, que cria sua identidade pelo contrário ao PT (o que não é ser autônomo). Não enxergar que houve golpe leva a erros de análise e previsão e antecipação. Se não houve golpe, os PT poderá ser eleito e governar novamente ano que vem, por exemplo. Para quem fez análise correta de que houve golpe (nem é análise, é viver a realidade) o conteúdo desse artigo é chover no molçhado, é atrasado, porque esse “cerco” é a consequência óbvia.
Lucas,
Golpe de Estado é quando uma mais corporações do Estado, com ajuda ou não das massas destitui um governo. Uma esquerda que enterra a cabeça na areia está fadada a ser4 insignificante. E como disse o Marinho acima, golpe independe de se gostar de governo ou não. Ora, e se a burguesia dá golpe para retirar até uma social-democracia light, o que os anticapitalistas devem esperar? Se não se tem essa leitura, se se quer negar o golpe de Estado por uma necessidade identitária quase infantil, chega-se no ponto de um artigo como esse, que de repente aponta um cerco, uma ampliação do espaço dos militares na sociedade (para não falar do Judiciário, que já havia aumentando é fato). Ora, isso só é uma surpresa ou novidade para quem achava que não teve golpe, que uma social-democracia light não foi derrubada.
Malanga,
A mesmíssima hipótese religiosa poderia ser lançada para quem coloca aspas no golpe. Como se as aspas fossem libertar de alguma coisa e levar à redenção. Ora, não tem aspas por uma motivo claro, foi golpe até por manual de ciência política. E as consequências estão sendo sentidas pela população e pelos trabalhadores. As aspas são símbolo não só de ma fuga da realidade mas de um desprezo pelas consequências reais nos trabalhadores e no terreno das lutas sociais.
A impressão que tenho é que a maioria dos comentaristas aqui acham que política é preto ou branco, de uma forma extremamente simplista. Um esquema mental que é incapaz de dar conta da política em sentido amplo. Se o PT é gestor do capitalismo, logo ele não pode ter sido golpe, já que foram os capitalistas que o tiraram. Fagner Henrique por sua vez transparece que pra ele um golpe e os que ganham com ele tem que fazer parte de um mesmo grupo (ou campo) político… Enfim, chovendo no molhado.
Zé,
Eu saí do debate em outro texto sim. Assim como sairei desse quando quiser. Assim como saio de debate com amigo coxinha quando me dá na telha. Tenho mais o que fazer do que dar murro em ponta de faca. Murro em ponta de faca pode ser traduzido como tentar ultrapassar uma defesa identitária. Dificilmente se faz isso com argumentos.
Afinal, naquela discussão que você corretamente diz que eu saí (e não foi pra escrever texto nenhum) eu já havia mostrado bibliografia que é referência em ciência política, escrita por um sujeito que ajudou a dar golpes de Estado pelo mundo, na qual o golpe de 2016 está lá descrito. E que eu saiba ninguém trouxe outra bibliografia de ciência política para refutar.
Então é isso, não se trata de razão ou lógica, se trata de defesa de identidade, e aí já não há discussão racional possível.
De Leo Vinícius só o mesmo corta e cola.
O “argumento”, na verdade, agora é outro: o de que quem não reconhece o “golpe” é uma “necessidade identitária”, o que em outros tempos se chamava, pejorativamente, de “marcar posição”. Ora, isto não chega nem a ser argumento: a argumentação em defesa da tese do “golpe”, neste sentido, marca uma “identidade” tanto quanto sua contestação. Importa é ver por que cada lado defende as posições que defende, e em se tratando de política, até onde convergem e até onde divergem na prática. Mas como Leo Vinícius prefere manter sua “identidade” de chato, arruma este argumento circular só para manter a própria posição.
Fernando Paz,
achei o teu comentário um pouco confuso. Mas para tentar limpar e ordenar o debate sobre organização e autonomismo, acho importante desfazer-nos de toda a bagagem da esquerda dogmática. Acredito que o mais próximo que temos no campo da extrema-esquerda marxista são, no nível prático, os partidos trotskistas e, no nível teórico, os epígonos de Lenin. Oras, organização é em si mesmo quase uma palavra de ordem em tempos de dispersão capitalista, organização é o que ocorre quando trabalhadores e trabalhadoras, por exemplo, fazem uma greve selvagem. O salto disto ao programa e à auto-construção é algo que está já naturalizado nos âmbitos da extrema-esquerda e é o que devemos desnaturalizar. É certo que isso toma tempo, não é simples criar algo relativamente novo — não novo em essência, mas novo no sentido de não ser uma simples cópia ou receita. Pessoalmente, acredito que a organização é uma forma avançada de se utilizar o tempo e os recursos “escaços” de um conjunto de trabalhadores e trabalhadoras interessados em atuar contra a exploração capitalista.
Autonomistas [sic] também presumem (ou fingem) saber a resposta, e nisso se assemelham ao deplorável ícone dos leninistas. Escrevem – muito ou pouco, na medida da intensidade maior ou menor de suas megalo(grafo)manias – e publicam seus ideologemas: delirantes logomaquias.
E dá no que dá, porque deu no que deu. E continua dando: em nada.
Os resultados (supostamente literários, pseudofilosóficos e subcientíficos) são textos que ninguém, a começar pelos brothers&sisters autonomistas, lê) também são conhecidos… pela nulidade.
E a tal da classe trabalhadora (designação infeliz, por sua demasiada extensão e correspondente impotência heurística), como o papagaio da piada, “nem seu Souza”: sem zigue-zague que compense a falta de grana, sonha acordada com um homem providencial – seja quem for, venha de onde vier, chegue como chegar, mas que entre rasgando.
O que nos resta – insisto, com Beckett – é fracassar melhor, na tentativa de organizar o apocalipse…
Leo Vinicius,
Meu primeiro comentário deve ter parecido um tanto confuso, mas serviu para que você explicitasse com todas as letras a que veio. Leo Vinicius lamenta o “golpe” contra um governo capitalista, ponto final. Um governo capitalista que vinha – desde muito antes do “golpe” – assumindo uma posição aberta de ataque aos trabalhadores e à extrema-esquerda. Para Leo Vinicius, agora vivemos o império do arbítrio – desde o Executivo federal até o guarda da esquina – quando, na verdade, já vivíamos sob o império do arbítrio há muito tempo, só que quem tinha o arbítrio nas mãos eram outras pessoas. Mas note, Leo Vinicius, o Passa Palavra já noticiava o estado de exceção, dirigido contra a extrema-esquerda e capitaneado pela presidente que sofreu o “golpe”, muito antes do “golpe” (http://passapalavra.info/2014/02/91972). Da minha parte, continuo defendendo o que defendi noutro momento (http://passapalavra.info/2015/07/105308), antes do “golpe”:
“I. conforme o PT sofre ataques da direita e da extrema direita, e os movimentos governistas se mantêm ao seu lado, eles se colocam também na mira dos ataques, sendo indispensável que eles se afastem – e se diferenciem – ao máximo dos governos petistas, saindo de sua órbita. É preciso que as bases dos movimentos governistas rompam, o quanto antes, com os dirigentes desses movimentos, abolindo ainda a divisão entre base e direção, e colocando-se contra o PT e os direitistas; caso contrário, cairão todos juntos, PT e movimentos sociais, mesmo que o mandato da presidente não seja interrompido; e, se não caírem, seguirão definhando juntos, de mãos dadas;
II. na medida em que tais movimentos se mantêm ao lado dos governos petistas, e não somam forças com os movimentos “autônomos” ou libertários que fazem oposição ao PT, ou com o que resta deles, estes últimos ficam à deriva, presos em suas próprias contradições, totalmente isolados. E seguirão definhando também, à sua maneira;
É preciso, nesse sentido, superar a oposição “direita” x “esquerda”. Não se trata mais de “direita” e “esquerda”; trata-se, na verdade, de “capitalismo” e “anticapitalismo”. O PT é uma das forças do terreno capitalista e, por isso, não faz sentido defendê-lo, sobretudo porque é este partido que tem executado a política de ajuste contra os trabalhadores, o que evidencia a sua filiação social. A oposição de direita ao PT também faz parte do terreno capitalista, devendo os movimentos dos trabalhadores atacarem, com todas as suas forças e por todos os meios à disposição, a ambos. Para isso, a base dos movimentos hoje sob a tutela do governo federal deve se tornar autônoma e articular-se com os grupos anticapitalistas hoje isolados, reforçando o terreno anticapitalista. Seria esse o único cenário realmente favorável para todos – excetuando-se os burocratas e os gestores de esquerda, que devem ter o mesmo destino dos burocratas e dos gestores de direita, bem como da burguesia – diante da política de ajuste ora em curso.”
Então, pelo menos para mim, o “cerco” não começou do nada. Talvez tenha começado quando os tempos da bonança econômica chegaram ao fim, a classe trabalhadora e a extrema-esquerda abalaram o cenário nacional com manifestações massivas e a Dilminha paz e amor mostrou que governava – ou ao menos tentava – um Estado capitalista.
E faço notar ainda que o artigo acima inclui, no “cerco”, a tentativa de recondução do PT ao poder e de conservar sua hegemonia na esquerda, nem que para isso seja necessário cortar a própria carne (rifar uma candidatura estadual… sabotar o PSOL…). Em todos os seus comentários, Leo Vinicius, silenciando sobre tais questões, se limitou a dizer que o cerco começou em 2016, com o “golpe”. Ou seja, Leo Vinicius veio para transformar co-sitiante em co-sitiado, denunciar o “golpe” e recomendar manuais de ciência política (“dar a linha”).
E ainda uma última coisa, que foi compartilhada comigo e compartilho agora com os demais. Vale a pena ler: https://www.dn.pt/edicao-do-dia/23-ago-2018/interior/o-pt-golpeia-se-9749317.html
Manolo,
Vamos ao copiar e colar. Meus argumento não são circulares, eles são repetitivos, na medida que não são refutados.
Não é “tese do golpe”. Até por definição de manual de ciência política, houve golpe de Estado.
Vamos lá:
1. Um governo (um governo, não apenas um presidente) foi destituído por estamentos estatais (parlamento e Judiciário);
2. O governo que assume impõe um programa (Ponte para o Futuro) no qual um dos seus autores afirma que não é um programa que passaria em eleições ( http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,vai-ser-preciso-dar-um-tranco-no-congresso–diz-ex-ministro-de-fhc,10000026727).
3. O presidente que assume afirma em alto e bom som em Nova York que Dilma foi derrubada por não querer implantar o Ponte para o Futuro, o programa não eleito que a burguesia golpista queria: https://www.youtube.com/watch?v=3vMtoMCxYPc
4. Apenas como exemplo das medidas que vieram com o golpe, pois essa é a mais incontroversa, a mudança constitucional congelando as despesas primárias por 20 anos, que veio como PEC 241. Primeira medida efetiva do governo Temer, mesmo antes da segunda votação do impeachement no Senado ele já havia enviado o projeto para o Congresso. Uma medida inimaginável, que nenhum país realizou, por mais medidas de austeridade que tenha tomado. Fez o PL 257 da Dilma, que mudava a Lei de Responsabilidade Fiscal, que estava em tramitação, parecer brincadeira de criança; para não falarmos da reforma trabalhista, que modificou para pior quase toda a CLT de uma vez só;
5. Comandante do Exército ameaça intervenção militar caso Lula não seja preso. Ou seja, os militares, ou parte deles, ficam na retaguarda, não foram necessários, para deixar o golpe mais limpo aos olhos internos e externos (para parte da esquerda principalmente pelo visto).
6. Prende-se o candidato do governo derrubado que liderava as pesquisas eleitorais podendo ganhar até em primeiro turno, sendo também a principal figura do partido e talvez a maior liderança da classe trabalhadora (goste a extrema-esquerda ou não) da história do país.
Para qualquer pessoa que não esteja ou com a cabeça muito feita pela mídia golpista interna, ou muito afundada em ideologia, derrubar um governo e depois prender o candidato lider das pesquisas, do mesmo partido, é golpe dado e golpe preventivo, digno das caricaturas de República das Bananas. Mas pra nossa extrema-esquerda não foi golpe porque, imagina, como que a burguesia daria golpe num governo que servia a ele como o PT? A extrema-esquerda prefere seguir sua teoria do que a realidade. Pior pra ela.
Como eu já disse anteriormente, o golpe de 2016 é golpe de Estado por definição de manual de Gole de Estado: http://www.columbia.edu/~tmm2129/Piaui.pdf
Estou apresentando mais uma vez uma obra que é referência para qualquer um na ciência política que vai discutir golpe de estado: “Golpe de Estado: um manual prático”, de Edward Luttwak, que ele próprio ajudou a construir golpes de estado pelo mundo.
Manolo, como você quer que eu ache que esse negacionismo de que houve e estamos sob um golpe de Estado não seja uma necessidade identitária se não há argumento racional que sustente essas aspas, se uma das principais obras reconhecidas sobre golpe de Estado na ciência política não é refutada?
Mas enfim, o problema do negacionismo é que leva a análises equivocadas, atrasadas, enfim, cega pra luta de classes.
Agora sim, argumentos. Sob a capa da não-refutação temos uma comédia de erros.
1.1. Quem derruba um presidente derruba um governo. Ainda não conheço nenhum governo, fora de regimes parlamentaristas, que tenha sobrevivido incólume a um impedimento. Salvo se me apontarem algum exemplo, a afirmação é puramente retórica, vazia. Palavrório.
1.2., 2. e 3. Os “estamentos estatais” citados por Leo Vinicius são precisamente quem está autorizado pela Constituição a fazer o que fizeram. É quando algum outro sujeito se mete na história que há ruptura institucional. É muito inocente, de igual modo, acreditar que não haja acordos, articulações, conchavos, “conspirações” na política, ainda mais quando um dos partidos que sustentava o governo era — e é — um enorme partido catch-all como é o MDB, cujas bases sociais são muito distintas daquelas do partido que encabeça o executivo, neste caso o PT. É acreditar que a política segue sempre os caminhos “normais”. O problema da posição dos defensores da tese do “golpe” está precisamente em não ver que em países de economia já bastante desenvolvida como é o Brasil — não custa lembrar que “economia bastante desenvolvida” não é igual a “economia com menos desigualdade social” — os meios para operar as mudanças políticas resultantes dos acordos, articulações, conchavos, “conspirações” etc. não são, via de regra, os meios de um golpe de Estado, mas os meios mais sutis da disputa política, que vão das entrelinhas jurídicas nos processos eleitorais, dos bloqueios recíprocos às pautas e podem chegar aos votos de desconfiança (nos parlamentarismos) e aos impedimentos (nos presidencialismos). A tese do “golpe” é, no seu campo restrito de aplicação, o equivalente do “socialismo da miséria”, e por isto mesmo um desserviço aos trabalhadores. Impedem ver a complexidade da luta de classes na atualidade, os muitos meios pelos quais ela é travada, e de tirar as conclusões adequadas para a luta política no momento. Que por sinal não são nada unívocas.
4. A comparação entre o plano de teto de gastos de Nelson Barbosa (ministro de Dilma), materializado no PLP 257/2016 e o de Henrique Meirelles, materializado na Emenda Constitucional 95, é bem rotineira e conhecida. (Como o plano de teto de gastos de Antônio Palocci (de 2005) nunca chegou a ser materializado em qualquer proposta antes que Dilma o desautorizasse em público, infelizmente não é possível conhecer o que a equipe econômica do primeiro governo Lula projetava sobre o assunto na época.) Muitos economistas já compararam os dois planos, dos mais “ortodoxos” aos mais “heterodoxos”; todos apontam como a EC 95 é inexequível. Isto é fato, basta ver em primeiro lugar seus mecanismos e em segundo lugar seu longo prazo. Qualquer pessoa interessada, entretanto, verá que entre o PLP 257/2016 (http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1445370&filename=PLP+257/2016) e a EC 95 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc/emc95.htm) há muitas semelhanças de mecanismos, escondidas sob a enorme divergência de prazos. Nomeadamente, no que diz respeito aos casos de descumprimento: proibição à concessão de vantagem, aumento, reajustes ou adequação de remunerações a qualquer título, ressalvadas as decorrentes de atos derivados de sentença judicial; limitação do crescimento das despesas ao crescimento da inflação; proibição à edição de novas leis ou a criação de programas que concedam ou ampliem incentivo ou benefício de natureza tributária ou financeira; suspensão à admissão ou contratação de pessoal etc., tudo está lá no PLP 257/2016. Muitas dos mecanismos da Emenda Constitucional 95 parecem um literal corta-e-cola do PLP 257/2016, mas para reconhecê-lo seria preciso ter lido e comparado as duas normas, o que parece que Leo Vinicius não fez, atendo-se somente ao prazo. Há questões na EC 95 muito piores que o prazo, como o fato de precisar de 2/3 para alteração (já que é de constituição que se trata, não de lei ordinária). Há mecanismos comuns aos dois planos que promovem um literal suicídio fiscal. Mas — e é o que importa para o debate — é preciso reconhecer um “golpe” contra o governo Dilma para tratar da sucessão de ataques à classe trabalhadora representados pela EC 95? Não. É um non sequitur. Por sinal, houvesse correlação de forças para aprovar o PLP 257/2016 quando de sua proposição, ele estaria hoje em vigor, com efeitos muito semelhantes aos da Emenda Constitucional 95, dado que o prazo dele é de quatro anos, revisável a cada quatro. A história não se faz com os “se”, mas é de se perguntar se o quadro de literal desinvestimento estatal em várias áreas, dada a semelhança de mecanismos e o fato de em 2018 ainda nos encontrarmos no que seria a vigência inicial do PLP 257/2016, não seria muito semelhante.
5. A existência de setores abertamente fascistas em meio às forças armadas não é novidade alguma. Que eles estejam nos altos escalões do comando não é, da mesma forma, novidade alguma. Que eles falem idiotices em redes sociais, não é, também, novidade alguma. Que estas idiotices sejam perigosas vindo de quem vem, trata-se igualmente de novidades velhas. Aquilo a que Leo Vinicius não se dedica, todavia, é a entender qual a representatividade destes setores em meio à tropa. Tampouco eu tenho a resposta, mas o conflito de posições entre o general Villas Boas e o comandante da Aeronáutica, Nivaldo Rossato, mostra que declarações como a de Villas Boas não são unanimidade. O que interessa a Leo Vinicius nisto tudo, entretanto, é pinçar somente a fala dos setores mais extremistas, pois serve à tese do “golpe”. (Sem falar, é claro, que a mensagem de Villas Boas presta-se também à interpretação oposta, ou seja, a de que ele estaria, na verdade, alertando aos setores extremistas das forças armadas que o exército não interferiria na conjuntura. Trata-se inclusive da leitura mais coerente, dado o comportamento e posicionamento político do general. Mas como foi a “mídia golpista” externa a levantar esta lebre, por sinal a mesma “mídia golpista” externa que defende o mesmo que os defensores da tese do “golpe”, não vale.)
6. Todo o processo contra Lula (gosto de dar nomes aos bois ao invés de falar “por alto”) é uma sequência de aberrações. Desde o recurso quase exclusivo às delações como meio de prova por parte do ministério público e do judiciário até os documentos que a própria defesa de Lula forjou. Isto tudo só seria novidade na conjuntura, só seria um elemento novo, se se ignorasse a existência, desde há muito, de setores em meio aos políticos e empresários que são radicalmente antipetistas e antiesquerda. Que eles fazem o que for necessário para acabar com toda e qualquer organização de esquerda, seja ela controlada por trabalhadores ou gestores. Mas é o processo de Lula uma novidade? Não está na sequência das acusações dos tempos do “mensalão”? Não vem o PT desde 2005 anunciando que haveria um “golpe”? A não ser que não se veja como, desde lá, o PT vem sendo progressivamente “decapitado” muito tranquilamente por meios jurídicos aos quais o próprio PT deu causa. A diferença da situação dos anos mais recentes está na correlação de forças: não bastasse a agitação “anticomunista” destes setores, há uma série de fatores econômicos, políticos e sociais determinantes de uma virada na correlação de forças de 2005 a 2018, que leva setores do judiciário mais alinhados com o “antiesquerdismo” a se sentirem respaldados para agirem como quiserem. Mas interessa a entender estes fatores? Não, interessa que o “golpe” os inaugurou.
7. Por último, há o “argumento Luttwak”. O “manual de ciência política”. Para começo, como eu disse em comentário anterior, “manuais” podem ser rebatidos por outros “manuais”. Um exemplo: “…o golpe de Estado […] significa simplesmente tomada do poder por meios ilegais. […] seria preconizado para aqueles países onde a instabilidade das instituições políticas e sociais não permite o emprego normal dos mecanismos constitucionais de sucessão do poder” (Paulo Bonavides, Ciência política. Rio de Janeiro: Forense, 1988, pp. 529-531). Do mesmo “manual”: “Através da ocupação de pontos chaves […] os autores do golpe de Estado imobilizam a reação do governo, cuja queda acarretam numa reação rápida e fulminante […]. Em geral, no espaço de 24 horas um golpe se define” (idem, pp. 531-532). Poderia pegar uns outros “manuais” que já li, de Curzio Malaparte a Carl Friedrich, Samuel Huntington e Samuel Finer, mas seria tedioso demonstrar o óbvio: que um golpe se define de modo rápido, abrupto, e processa-se por fora da institucionalidade estabelecida. Parece-me muito mais interessante entender a política por trás das tentativas de impedimento contra Clinton, FHC, Lula e por que não deram certo, assim como as razões por trás do sucesso de uma das tentativas de impedimento movida contra Dilma, comparando-as sempre com a literatura internacional sobre impedimentos, que me ater a uma só teoria — teoria que, por sinal, sequer aparece no longo perfil-entrevista compartilhado por Leo Vinicius. Por outro lado, nenhuma teoria em política é infalível. Edward Luttowak é um cientista político muito respeitado, mas também é conhecido por seus erros em previsão estratégica. “Previu”, por exemplo, que a invasão soviética ao Afeganistão seria exitosa; que a URSS entraria em guerra com a China caso o “Ocidente” aumentasse seu volume de armas nucleares (viu-se na verdade o contrário quando o poderio nuclear dos EUA aumentou); que a perestroika e a glasnost resultariam num aumento do poderio militar da URSS (isto às vésperas da queda do Muro de Berlim); que os combates terrestres na Guerra do Golfo resultariam num massacre de tropas estadunidenses (sabemos hoje que os combates terrestres mal duraram quatro dias, com pouquíssimas baixas para os EUA); que Donald Trump não se envolveria em guerras contra a Síria e Líbia, não promoveria cortes orçamentários nem travaria guerras comerciais.
Como se vê, a questão do “golpe” diz respeito, primeiro, a encobrir continuidades lá onde elas existem, mesmo quando as dessemelhanças são muitas. Segundo, a encobrir com uma retórica fácil, simplificadora, uma realidade complexa. Terceiro, a recompor um campo político que, na luta política, vem sendo paulatinamente esgarçado — ainda que esta recomposição se dê por meios zdanovistas. Vejo os mesmos processos que Leo Vinicius, vejo neles ataques à classe trabalhadora, mas chegamos a conclusões distintas quanto ao “golpe”. O “golpe” é, enquanto palavra-de-ordem, o equivalente tático e conjuntural do que é o “socialismo da miséria” na estrutura e na estratégia. Palavra-de-ordem plenamente inserida na luta de classes — restando ver, obviamente, ao que serve. Espero ter dado algumas pistas a respeito.
Em resumo: (golpe ≈ “golpe”) ≡ ∑‚‘„‹”«’golpe’»”›‟’‛ .
Peço desculpa por me intrometer neste debate, mas, se me derem licença, gostaria de ampliar um pouco o horizonte. Uma das características marcantes dos acontecimentos a que o debate faz referência é o grau de iniciativa assumido pelo poder judiciário, precisamente o único poder não eleito do aparelho de Estado convencional, a que eu tenho chamado Estado Restrito. Ora, um grau de iniciativa comparável, ou mesmo superior, tem caracterizado o poder judiciário em acontecimentos políticos recentes ocorridos noutros países. Não faltam exemplos na América Latina, mas mais importante ainda me parece ser o processo de destituição de Jacob Zuma na África do Sul. Igualmente relevante, se não mais, foi a mudança presidencial ocorrida na Coreia do Sul. O caso da Malásia é também significativo. A mesma iniciativa do judiciário é visível em diversos países no Leste da Europa, nomeadamente na Roménia, onde há pouco deu lugar a graves confrontos de rua.
Estes casos parecem indicar uma tendência para reforçar a componente não eleita do Estado clássico, o que implicaria, se esta análise estiver correcta, um reforço do poder assumido directamente pelos gestores.
ALVÍSSARAS
Intrometido que sou & intromisturado que estou neste debate, já não careço de pedir licença nem de me desculpar.
Menos uma desvantagem? Talvez.
JB, parece-me, inaugura uma abordagem pregnante, ao relacionar metodicamente (em covariação) instâncias do poder estatal com as frações do capital e os seus respectivos agentes (burguesia e gestores).
No horizonte ampliado que JB nos promete, vislumbro uma futurível análise da estrutura de classes. Quem (sobre)viver verá. Ou não…
aliás, QUANDO OUTUBRO VIER : VOSSTANIE
A paraître – Des révoltes d’esclaves au panafricanisme – João Bernardo et Manolo http://www.mondialisme.org/spip.php?article2692 …
https://t.co/sL0P974eAg
OUTUBRO OU NADA