Por Asad Haider e Salar Mohandesi

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Elevando a Consciência: a Tendência Johnson-Forest

Enquanto figuras como Pierre Naville e Simone Weil publicaram relatos sobre a vida na fábrica em primeira mão, o projeto de Marx somente foi reencarnado verdadeiramente em 1947, quando a tendência Johnson-Forest lançou um curto panfleto chamado The American Worker [O Trabalhador Americano]. Nomeada conforme os pseudônimos de seus dois principais teóricos, CLR James (J. R. Johnson), o autor trinidadiano de Os Jacobinos Negros, e Raya Dunayevskaya (Freddie Forest), antiga assistente de Leon Trotsky, a tendência Johnson-Forest aparece pela primeira vez em 1941 como uma corrente dentro do trotskista Workers’ Party [Partido dos Trabalhadores]. Em 1947, o ano em que se responsabilizaram por sua primeira enquete, essa corrente marginal, embora respeitada, deixou o WP após o que ficou conhecido então como “The Negro Question” (“A Questão do Negro”). Enquanto o Workers’ Party defendia um movimento multirracial unificado, amplo, organizado sob o slogan “Black and White, Unite and Fight” [“Brancos e Negros, Unam-se e Lutem”*], a tendência Johnson-Forest contra-argumentou que a comunidade negra tinha suas necessidades específicas, que não poderiam ser peremptoriamente subordinadas a esse movimento homogeneizador e que deveria lutar junto a outras minorias oprimidas por sua própria autonomia.[1]

Em 1951, após romperem completamente com o trotskismo, a tendência Johnson-Forest forma o Correspondence [“Correspondência”], com um jornal de mesmo nome.[2] Correspondence, cuja primeira edição foi lançada em novembro, estava para ser um novo tipo de jornal. Principalmente escrito, editado e distribuído pelos próprios trabalhadores, seu objetivo era servir como um fórum em que trabalhadores poderiam compartilhar suas próprias experiências. Refletindo a ênfase contínua da tendência na prioridade das necessidades autônomas, cada edição era deliberadamente dividida em quatro seções — para trabalhadores fabris, negros, jovens e mulheres — para que então cada setor da classe trabalhadora geral tivesse seu próprio espaço independente para discutir aquilo que mais lhe preocupava. A esperança era de que ao escrever sobre suas vidas os trabalhadores veriam que seus problemas não eram pessoais, mas sociais. Um editorial de 1955 intitulado “Gripes and Grievances” [“Queixas e Injustiças”] atestou o propósito do jornal: “Quando milhões de trabalhadores estão expressando a mesma queixa sobre seu trabalho, o capataz, o sindicato e a empresa, isso não é mais uma queixa, isso se torna um problema social. Essa queixa ou injustiça não afeta somente este ou aquele indivíduo, ela afeta toda a sociedade”.[3] O objetivo do jornal, então, era fazer as pessoas entenderem a universalidade das suas experiências aparentemente particulares ao providenciar um espaço onde elas poderiam ser divulgadas. Fazendo uma analogia com a poliomielite que, eles afirmavam, já foi considerada um problema pessoal antes de ser reconhecida como uma preocupação social, os editores defendiam que principal objetivo do Correspondence era mudar as atitudes públicas em questões decisivas. O objetivo do jornal operário, em outras palavras, era o de elevar a consciência.

Esse jornal era, de várias maneiras, uma continuação lógica de tentativas anteriores de enquete pela tendência. A primeira e talvez mais famosa dessas foi The American Worker. Grace Lee Boggs, uma coautora do panfleto, lembra que ele começou como um diário. Quando Phil Singer, um trabalhador automotivo empregado na fábrica da GM [General Motors] em Nova Jersey, começou a discutir as frustrações dos operários na fábrica, CLR James sugeriu que ele escrevesse seus pensamentos em um diário.[4] Partes dele depois seriam reunidas numa obra coerente e com um ensaio teórico de Grace Lee Boggs. A primeira parte do panfleto, agora atribuída a Paul Romano, pseudônimo de Singer, se tornou um tipo de investigação etnográfica autorreflexiva sobre as condições de vida proletárias na América pós-guerra. A segunda parte, atribuída a Ria Stone, nome de Boggs no partido, conscientemente se inspirou nas experiências concretas documentadas na primeira parte com o objetivo de teorizar o conteúdo do socialismo em um mundo transformado pela automação, pela linha de montagem e pelo trabalho semiqualificado.

Quando Socialisme ou Barbarie depois traduziu o panfleto para o francês, eles o chamaram de “o primeiro de seu gênero”.[5] Um trabalhador descrevia, em sua própria voz e explicitamente para outros trabalhadores, suas condições de exploração de uma forma que teorizava a possibilidade de uma subversão estratégica.[6] O relato de Singer representava tanto uma pesquisa sobre as mudanças no processo de trabalho quanto uma prática política destinada a elevar a consciência de seus colegas de trabalho. Ele firmemente se moveu de descrições estáticas da exploração na fábrica para uma consideração dinâmica das novas formas de luta que emergiram dessas novas formas de exploração. Pesquisando as contradições no local de trabalho, os vários pontos de contestação e sinais do desgosto proletário com a gerência, a burocracia e até os sindicatos, Singer apontou para a greve selvagem, com a auto-organização dos trabalhadores como seu conteúdo, como a nova forma de luta no período pós-guerra.

Enquanto Phil Singer providenciou o primeiro exemplo desse novo tipo de enquete operária, Grace Lee Boggs explicou a problemática teórica da tendência Johnson-Forest. Ela se baseou fortemente em uma passagem de O Capital que descreve como o “indivíduo parcialmente desenvolvido”, que era restrito a “uma função social especializada”, teve de ser substituído na indústria de larga escala pelo “indivíduo totalmente desenvolvido” que poderia se adaptar a formas variadas de trabalho.[7] Lendo isso sob a luz dos primeiros trabalhos de Marx, principalmente os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 que a própria Boggs foi a primeira a traduzir ao inglês, ela aproveitou para sugerir que a indústria moderna americana no pós-guerra efetuou a alienação completa da natureza humana.

De acordo com Boggs, o capitalismo deveria ser compreendido como a alienação progressiva das forças naturais da humanidade nas coisas que ela produz. Eventualmente, contudo, esse processo chegará ao ponto em que toda a humanidade, toda a sua essência social, foi inteiramente alienada em meios de produção. Mas essa completa desumanização do indivíduo, ela afirma, é ao mesmo tempo a potencial humanização do mundo em sua totalidade. É nesse ponto que as condições objetivas finalmente estarão maduras para regenerar aquelas forças, recuperar a essência humana e finalmente reconstituir o indivíduo como um ser universal. Em suas palavras, “O trabalho abstrato encontra suas profundezas mais desumanas na produção mecânica. Mas, ao mesmo tempo, é somente a produção mecânica que estabelece a base para o mais completo desenvolvimento humano do trabalho concreto”.[8]

“O conteúdo essencial da atividade produtiva hoje é a forma cooperativa do processo de trabalho”, concluiu Boggs. Na “transformação dos instrumentos de trabalho em instrumentos de trabalho apenas utilizáveis de forma comum” e na “economia de todos os meios de produção pelo seu uso enquanto meios de produção de trabalho combinado e socializado”, a produção capitalista alcançou o ponto em que agora já era implicitamente socialista. Contudo, a realização desse socialismo implícito estava bloqueada:

“A burguesia mantém um grilhão nessa atividade essencialmente social isolando os indivíduos uns dos outros através da competição, separando as forças intelectuais de produção do trabalho manual, suprimindo os talentos organizacionais criativos das grandes massas, dividindo o mundo em esferas de influência”.

“Esse conflito entre a sociedade socialista invasora e os grilhões da burguesia impedindo seu surgimento é parte da experiência diária de todo trabalhador”.[9]

Curiosamente, esse conceito tinha surgido em um panfleto que James, Dunayevskaya e Boggs escreveram no mesmo ano, com o título The Invading Socialist Society [A Sociedade Socialista Invasora] — uma polêmica contra trotskistas que não compartilhavam a visão deles de que a URSS. representava uma nova forma de capitalismo. O panfleto elabora sobre alguns pressupostos teóricos do The American Worker, em que Boggs tinha defendido “a distinção entre trabalho abstrato para valor e trabalho concreto para necessidades humanas”. Para Boggs, a definição de Marx de “produção de valor” era “produção que expande a si mesma através da degradação e desumanização do trabalhador a um fragmento de homem”, que na sua utilização do maquinário “degrada em trabalho abstrato o trabalhador vivo que emprega”. O trabalho concreto era, em vez disso, direcionado às necessidades, “o trabalho em que o homem percebe sua necessidade humana básica para exercer seus poderes naturais e adquiridos”.[10]

Em The Invading Socialist Society, os autores argumentaram que a produção de valor estava claramente a funcionar no “capitalismo de Estado” russo, tal como estava nos Estados Unidos, e eles elaboraram sobre o “duplo caráter” do trabalho que Boggs tinha descrito no outro panfleto:

“O fundamental do trabalho, sua função eternamente necessária em todas as sociedades no passado, presente e futuro, é a de criar valores de uso. Dentro desta função orgânica de todo trabalho, o modo de produção capitalista impôs a contradição de produzir valor, e mais particularmente mais-valia. Dentro desta contradição está contida a necessidade de divisão da sociedade em produtores diretos (trabalhadores) e governantes da sociedade, entre trabalhadores manuais e intelectuais”.

A revolução gerencial, nesta concepção, era simplesmente uma expressão da produção de valor e da divisão de classe entre trabalho manual e intelectual. Se esta divisão de classe e este tipo de processo de trabalho alienado poderiam ser observados na Rússia, havia apenas uma conclusão: a burocracia estatal extraia mais-valia dos trabalhadores russos e era de fato uma classe capitalista.

O proletariado, eles continuaram argumentando, abandonou todas as ilusões de vanguardas burocráticas, que apenas instituíram uma nova forma de capitalismo, e do reformismo, que se limitou a contestar a distribuição da mais-valia. Agora o proletariado tinha “elaborado a conclusão definitiva”: “A revolta é contra a própria produção de valor”. A sociedade socialista invasora, para James, Dunayevskaya e Boggs, poderia ser observada nesta descoberta.[11]

A motivação política dessa teoria talvez seja compreensível, mas ela levou o grupo a usar as categorias de Marx de uma maneira que dissolveu as suas especificidades históricas. Duas décadas antes, I. I. Rubin, no final de um período de debate relativamente livre na União Soviética, tinha explicado em uma palestra no Instituto de Economia de Moscou que um “conceito de trabalho em que faltem todos os aspectos que são característicos de sua organização social na produção de mercadorias não pode nos levar para a conclusão que procuramos a partir de uma perspectiva marxista”. Em sua elaboração dos conceitos de Marx, Rubin perguntou diretamente se a forma-valor poderia ser observada em uma economia planificada, em que algum órgão social teria de equacionar o trabalho que produziu coisas diferentes e o que foi realizado por indivíduos diferentes. Enquanto essa equação social frequentemente foi descrita como uma “abstração” de modo geral, Rubin a distinguiu do conceito de trabalho abstrato de Marx. Em todas as épocas históricas, Rubin reconheceu, seres humanos dedicaram-se a um gasto de esforço fisiológico para reproduzir suas próprias condições de existência. Mas a teoria do valor de Marx empenhou-se em explicar certas características historicamente específicas das sociedades capitalistas produtoras de mercadorias. Em tais sociedades, o trabalho dos indivíduos, enquanto trabalho concreto que produz valores de uso, não é “diretamente regulado pela sociedade” — em contraste com uma sociedade em que a equação social é feita com base na alocação planejada desses valores de uso.[12]

Nas sociedades produtoras de mercadorias, o trabalho somente é socialmente equacionado quando os produtos de trabalhadores individuais são “comparados com os produtos de todos os outros produtores de mercadorias, e o trabalho de um indivíduo específico é assim comparado com o trabalho de todos os outros membros da sociedade e com todos os outros tipos de trabalho”. E, principalmente, esta equação social somente acontece “através da equiparação dos produtos do trabalho”; trabalho “somente toma a forma de trabalho abstrato e os produtos do trabalho a forma de valores, na medida em que o processo de produção assume a forma social da produção de mercadorias, isto é, produção baseada na troca”. Quando os proprietários de mercadorias em sociedades capitalistas engajam-se na produção, eles o fazem procurando “transformar os seus produtos em dinheiro e assim também transformar seu trabalho privado e concreto em trabalho social e abstrato”, uma vez que dependem do mercado para suas condições de existência. É através da mediação do mercado que estes custos do trabalho privado tomam uma forma social.[13]

A partir do ponto de vista da intervenção de Rubin, a tendência Johnson-Forest terminou se alinhando com os economistas soviéticos que acreditavam que o valor era uma categoria trans-histórica, reduzível para a equação social do trabalho que existiria em qualquer sociedade e necessariamente toma a mesma forma na planificação socialista, tal como no mercado capitalista. A tentativa deles em mostrar que a URSS, apesar de sua planificação da produção e consumo, competia no mercado global e, portanto, tinha as características de uma imensa empresa capitalista, simplesmente esquivou da questão da troca dos produtos do trabalho como uma expressão da dependência do mercado pelos indivíduos.

De fato, Rubin não tratou a questão de se o órgão planificador de uma sociedade socialista seria uma burocracia partidária, um conselho de trabalhadores ou qualquer outra coisa. Enquanto esta distinção seria certamente de significância política, ela não tem relevância para as questões do trabalho abstrato e do valor. Em sua compreensível guinada para criticar o caráter opressivo do trabalho na URSS, a tendência Johnson-Forest perdeu o controle sobre seus próprios conceitos críticos e, acima de tudo, por reduzir a forma-valor à alienação no processo de trabalho, confundiu completamente a distinção entre trabalho abstrato e concreto. Neste sentido, a enquete tinha um relacionamento tenso com a teoria marxista; passando para a documentação da experiência dos trabalhadores, a experiência subjetiva do chão de fábrica, a tendência Johnson-Forest aceitou e inverteu a visão de mundo econômica ortodoxa de seus adversários, deixando ela mais ou menos intacta.

E por aceitar a concepção trans-histórica das categorias trabalho e valor, o próprio socialismo tomou características trans-históricas. Ele seria um telos já contido na origem, na natureza humana que se alienou na maquinaria. A tarefa dos socialistas era revelá-lo ao remover os grilhões capitalistas. De acordo com esta visão, o socialismo não teria de ser construído; ele teria de ser descoberto. Nós podemos identificar um tipo de duplo significado neste termo: de um lado, o socialismo enquanto uma tendência inerente teria de se tornar “real”, ou atual, e de outro lado, o socialismo só poderia ser atualizado quando os trabalhadores presentemente envolvidos nessas relações socialistas embrionárias chegassem gradualmente a reconhecer, ou “descobrir”, que o socialismo já constituía a própria essência do capitalismo pós-guerra.

Essa concepção de socialismo era um comentário sobre as experiências de Singer na medida em que a enquete operária era o meio desta tomada de consciência. Era através da enquete que os trabalhadores “descobririam” que o socialismo já estava ali, escondido em seu cotidiano, esperando estourar. Ao circularem essas enquetes, outros trabalhadores com experiências similares chegariam à mesma percepção, desencadeando um diálogo sobre suas experiências universais. Desta forma, os trabalhadores tomariam consciência de si mesmos como uma classe revolucionária. A tarefa principal da organização, primeiro enquanto tendência Johnson-Forest e depois enquanto Correspondence, seria facilitar essa tomada de consciência ao criar um espaço onde conexões ou “correspondências” entre diferentes trabalhadores poderiam ser feitas.

A enquete, então, era o pilar desse projeto. Grace Lee Boggs teorizou isso, e Phil Singer providenciou o primeiro exemplo concreto. The American Worker apareceria, assim, como um tipo de paradigma. Em 1952, Si Owens publicou Indignant Heart: A Black Worker’s Journal [Coração Indignado: O Diário de Um Trabalhador Negro], sob o pseudônimo de Matthew Ward. Era muito longo, de fato praticamente um livro, e era explicitamente autobiográfico. Ele contou a história de como um jovem trabalhador negro se mudou das plantações de algodão do Tenessee para as fábricas de automóveis de Detroit e se tornou um militante, uma força radical dentro do United Automobile Workers of America [Trabalhadores Automotivos Unidos da América]. Em 1953, “Arthur Bauman”, o pseudônimo de um estudante anônimo, narrou sua história para Paul Wallis no que se tornaria Artie Cuts Out [Artie Dá no Pé] uma narrativa, novamente ao estilo de The American Worker de Singer, sobre estudantes de ensino médio em Nova York. Também naquele ano, o panfleto mais bem-sucedido do Correspondence, A Woman’s Place [O Lugar de Uma Mulher] de Marie Brant (Selma James) e Ellen Santori (Filomena D’Addario), fez sua primeira aparição. O que Singer fez pelos operários fabris, Owen pelos trabalhadores negros e Bauman pelos jovens, James e D’Addario procuraram fazer pelas donas de casa. A Woman’s Place discutia o papel do trabalho doméstico, o valor do trabalho reprodutivo e as organizações autonomamente inventadas pelas mulheres no curso de sua luta.

Seguindo o modelo de Singer e o quadro teórico de Boggs, todos eles se basearam nas experiências cotidianas do autor para investigar rigorosamente as condições sociais de uma figura particular da classe; eles então usaram aquela enquete para teorizar como o grupo social fragmentado pode se unir enquanto um sujeito político coletivo. O objetivo em todos estes — assim como seria mais tarde para o jornal Correspondence — era mostrar como experiências aparentemente pessoais eram, na verdade, sociais. O pressuposto destas enquetes era que a forma como um trabalhador em algum lugar se sentia era muito semelhante à forma como outro se sentia em outro lugar e que estas experiências compartilhadas, essas formas comuns de se viver, podem providenciar a base para a ação coletiva.[14]

Naturalmente, deve-se notar que nem The American Worker ou qualquer outro desses textos chamaram a si mesmos de enquete operária. De fato, eles poderiam ser chamados apenas de narrativas de trabalhadores, ou talvez até testemunhos.[15] Mas todos eles ainda são vistos como representantes de uma iteração, ou ao menos uma variação, do projeto que Marx formulou em 1880. A tendência era bem familiarizada com o artigo de Marx de 1880.[16] Boggs tinha lido ele e fez uma referência explícita num rodapé de sua parte em The American Worker.[17] E apesar das diferenças significantes, essas enquetes, especialmente The American Worker, reproduziram várias das intenções, motivações e objetivos do projeto original de Marx. De fato, lendo as questões de Marx ao lado de The American Worker, parece que Singer providenciou para Marx a primeira resposta compreensível ao seu questionário — foi apenas com várias décadas de atraso.

Mas a resposta de Singer tomou uma forma que Marx não antecipou. Marx imaginou que trabalhadores ofereceriam respostas linha por linha ao seu questionário. “Nas respostas”, ele fez questão de especificar, “o número da questão correspondente deve ser dado”. Singer, contudo, não produziu uma lista clara de respostas em bloco; ele fez destas respostas brutas uma narrativa literária. Esta foi talvez a característica mais distintiva de todas as enquetes organizadas pela tendência Johnson-Forest — e talvez um dos motivos pelo qual elas nunca foram chamadas formalmente de “enquetes operárias”. Enquete operária, nessa distinção, era especificamente uma narrativa subjetiva, não uma resposta para um questionário.

Essa inovação no gênero da enquete, porém, ampliou as tensões que já existiam no projeto original. Por um lado, a forma narrativa funcionou para desenvolver a enquete como uma forma de autoatividade proletária. Apesar de Marx ter deixado claro que o conhecimento da classe trabalhadora somente poderia ser produzido pelos próprios trabalhadores, seu projeto original pareceu fechar o espaço para qualquer tipo de expressão criativa, demandando respostas mecânicas para questões pré-fabricadas. O modelo narrativo de Singer permitiu aos trabalhadores promover sua própria e única voz, se expressar em sua própria linguagem, com seus próprios idiomas, ideias e sentimentos, e até colocar suas próprias questões.

Referências

[1] Kent Worcester, CLR James: A Political Biography (New York: State University of New York Press, 1996), 55-81; Paul Buhle, CLR James: The Artist as Revolutionary (New York: Verso, 1988), 66-99.
[2] Para uma breve, porém excelente introdução à história do jornal, veja “Introduction to Part 1” em Pages from a Black Radical’s Notebook: A James Boggs Reader, Stephen M. Ward (org.) (Detroit: Wayne State University Press, 2011), 37-41.
[3] “Gripes and Grievances,” Correspondence, vol. 2, no. 2 (Janeiro, 22 1955), 4.
[4] Grace Lee Boggs, “CLR. James: Organizing in the USA, 1938-1953,” em CLR James: His Intellectual Legacies, Selwyn Cudjoe e William Cain (orgs.) (Amherst: University of Massachusetts Press, 1995), 164. Paul Buhle, por outro lado, alega explicitamente que foi Grace Lee quem na verdade escreveu o texto, in Buhle, CLR James, 90.
[5] Ph. Guillaume, “L’Ouvrier american par Paul Romano,” Socialisme ou Barbarie no. 1 (Março/Abril 1949), 78.
[6] É significativo que Singer não estava se dirigindo a filantropos, especialistas burgueses ou mesmo intelectuais simpatizantes. Era para os trabalhadores. “Não estou escrevendo para ganhar a aprovação ou simpatia dos intelectuais pelas ações dos trabalhadores. Quero ao invés disso ilustrar para os próprios trabalhadores que algumas vezes, quando suas condições parecem sem fim e sem esperanças, eles estão, na verdade, revelando pelas suas reações e expressões cotidianas que são o caminho para uma mudança de longo alcance”. Paul Romano e Ria Stone, The American Worker (New York, 1947), 1.
[7] Marx, Capital, vol. 1, 618; Romano e Stone, The American Worker, 52.
[8] Romano e Stone, The American Worker, 47-48.
[9] Romano e Stone, The American Worker, 57.
[10] Romano e Stone, The American Worker.
[11] CLR James, Raya Dunayevskaya e Grace Lee Boggs, “World War II and Social Revolution” em The Invading Socialist Society, disponível online em marxists.org.
[12] I. I. Rubin, “Abstract Labour and Value in Marx’s System” Capital & Class, 2 (1978). Veja a admiravelmente concisa definição de Rubin: “O trabalho abstrato é a designação para a parte do trabalho social total que foi equalizado no processo da divisão social do trabalho através da equiparação dos produtos do trabalho no mercado”.
[13] Rubin, “Abstract Labour and Value.”
[14] “O rascunho deste panfleto foi dado a trabalhadores por todo o país. Sua reação foi quase única. Eles ficaram surpresos e gratificados em ver impressas suas experiências e pensamentos que raramente colocavam em palavras. Os trabalhadores chegam em casa muito exaustos para ler mais do que os quadrinhos diários. Ainda assim a maioria dos trabalhadores que leram o panfleto ficaram bem acordados pela noite para finalizar a leitura uma vez que começaram”. Romano e Stone, The American Worker, 1.
[15] Em sua introdução para a tradução francesa de The American Worker, Philippe Guillaume a chamou de “literatura proletária documental”. Para mais sobre isso, veja Stephen Hastings-King, “On Claude Lefort’s ‘Proletarian Experience,’” nesta edição [Nota do Passa Palavra: trata-se da terceira edição da Viewpoint Magazine, disponível aqui]
[16] “A Worker’s Inquiry”[“Uma Enquete Operária”] foi primeiro publicado nos Estados Unidos pelo The New International, em dezembro de 1938.
[17] Ela escreveu: “Veja ‘Uma Enquete Operária’ por Karl Marx, em que cento e uma questões são feitas para os próprios trabalhadores, tratando de tudo, desde lavatórios, sabão, vinho, greves e sindicatos às ‘condições gerais físicas, intelectuais e morais da vida do homem e da mulher trabalhadores em seu ofício”. Romano e Stone, The American Worker, 59.
*[Nota do Passa Palavra: os títulos de obras, artigos e demais publicações que não possuem uma edição em português foram traduzidos de forma livre pelo coletivo. O procedimento também se aplicou às palavras de ordem.]

Este artigo foi traduzido e dividido em nove partes pelo coletivo Passa Palavra. A versão original está em Viewpoint Magazine.

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