Por Dan Santana

Esse Achado & Perdido faz parte do especial “Causos de trabalho”: uma seleção, feita pelo Passa Palavra, de threads relatando o cotidiano e curiosidades de diferentes trabalhadores.

O autor da thread demonstra o perfil de parte dos motoristas de aplicativos, além de expor o cotidiano massacrante do trabalho. Publicamos alguns dos tweets que compõem o “fio”, sem os vídeos:

1. No meio do ano passado pedi demissão do meu trabalho. Estava trabalhando com arquitetura, estava muito mal mentalmente e não consegui conciliar paternidade, emocional e um ambiente abusivo de trabalho (de novo). Não demorou muito para apelar para a Uber para poder pagar os boletos.

2. Como podem imaginar, essa é a realidade de muitos motoristas. Sem opções no mercado de trabalho ou por ganharem salários insuficientes, eles(as) passam horas dirigindo [por] uma grana. Pode perguntar pra qualquer motorista, a grande maioria vai falar a mesma coisa.

3. Além disso, você encontra facilmente conteúdo sobre como ser motorista Uber e tem toda uma cultura de cultuação ao overwork. Se você não consegue trabalhar de 10 à 12 horas por dia, você só vai perder seu tempo — dizem em vários vídeos.

4. Vamos entender como a plataforma funciona para depois eu poder falar melhor das histórias. A Uber avalia o motoristas por 3 parâmetros:

– Nota: 1.0 à 5.0

– Taxa de Aceitação: 0 à 100%

– Taxa de Cancelamento: 0 à 100%

5. A Uber usa esses parâmetros para entregar corridas aos motoristas. Também é usado para definir se o motorista vai receber uma corrida de embarque próximo ou longe. Motoristas que recusam muitas corridas têm baixa taxa de aceitação. Logo, a Uber “tesoura” as corridas mais vantajosas.

6. O que é uma corrida vantajosa? A corrida vantajosa é aquela que a distância percorrida com o passageiro embarcado é maior que a distância percorrida para chegar ao local de embarque. Acontece muito do motorista ter que percorrer, digamos, 5km para fazer uma corrida de 2km.

7. Enxergando a falta de vantagem em algumas corridas, ou por não se sentirem seguros de entrarem em algumas áreas, os motoristas recusam várias [corridas] e são punidos pela plataforma.

A Uber faz a restrição que disse.

A 99 [outra plataforma] suspende o motorista por minutos, horas ou dias.

8. Infelizmente, com medo de serem punidos ou terem suas taxas afetadas e ficarem sem trabalho, vários motoristas se arriscam em corridas desvantajosas ou perigosas. E aqui começam meus relatos.

9. Eu registrei boa parte do que me aconteceu porque usava um app chamado Rebu, bem difundido entre os motoristas. Nele, eu recebia alerta de áreas de risco, monitor de sinal de celular e ainda tinha a função de câmera espiã que filmava com a tela desligada.

10. A primeira situação chata que eu vivi foi pegar um playboy no Morumbi (bairro de São Paulo) que me xingou por errar uma entrada. Me chamou de burro, incompetente e idiota. A minha vontade era de parar o carro e esmurrar ele, mas a gente nunca [sabe] se as pessoas estão armadas.

11. Você fica sem muita opção. Ou presta atenção no volante ou se estressa com o passageiro. Eu sou mais ponderado, então só pedi desculpas pelo erro (não queria levar uma nota baixa). No final da corrida, o cara jogou o dinheiro em mim (literalmente) e saiu falando merda.

12. Esse tipo de situação me desestabilizava demais e geralmente fazia eu perder meu dia. Eu desligava o app e voltava para casa. Chorei demais no carro. Xinguei demais o cara depois que ele saiu. Me acalmei, reportei pra Uber e voltei pra casa. O que a Uber fez? Nada.

13. Apesar da grande maioria dos passageiros ser educada, a plataforma dá muita margem para que as pessoas sejam abusivas e fiquem impunes. Outra situação chata que eu vivi foi um cara que entrou bêbado e começou a dizer que se eu não parasse onde ele queria, eu ia me arrepender.

14. Eu devo ter desligado a câmera sem querer nesse dia e não registrei a conversa com o passageiro bêbado. Na hora eu não estava com medo, mas ele já tinha me falado merda. A ficha só cai depois. Na hora eu estava só “outra pessoa bebaça falando merda”.

15. Outro bêbado na mesma manhã. Playboy que deixei na Granja Julieta. Mas esse só foi chato. Começou a reclamar do dono da casa onde ele morava e depois cismou que a corrida tinha sido paga no cartão, quando na verdade estava no dinheiro. Eu consegui a grana.

16. Numa outra situação, uma mulher pediu uma corrida no centro de São Paulo tarde da noite para desembarcar em Taboão da Serra. Durante a viagem, ela começou a passar a mão no meu braço, falar que o marido tava viajando e depois que não dei bola, começou a dizer que só tinha R$50,00.

17. Uma viagem do centro de São Paulo para o centro de Taboão àquela hora não ia sair só R$ 50,00. Comecei a gravar para o caso dela querer dar calote. E ela tentou quando viu o valor final de R$ 81,00. Tentei ser didático e sugerir um milhão de coisas como transferência via app, ir ao banco…

18. Eu tenho um vídeo inteiro dessa situação com essa mulher, mas não vou expor o rosto dela pra não me complicar. Depois de muita discussão, ela resolveu me dar os 50 [reais] e foi buscar mais R$10,00. Tinha aceitado ficar no prejuízo em R$21,00 porque era 11PM e eu estava na rua desde às 7AM.

19. Nessa noite, eu precisava comprar remédio para Layla e fralda pra Aretha. Fiquei indignado e liguei pra um amigo que faz 99. Ele me ouviu e me explicou o golpe que a passageira aplicou (não vou falar pra não difundir). Na mesma hora liguei pra policia.

20. Esperei pela polícia no carro. Depois de alguns minutos, reparei que a mulher estava na janela da casa dela observando pela fresta. Ela mandou uma criança vir me questionar o que eu estava fazendo lá. Eu disse pro guri: “sua tia me aplicou um golpe e chamei a polícia”.

21. A criança saiu correndo na mesma hora gritando “TIAAA A POLÍCIAAA”. Na mesma hora a mulher desceu com o restante da grana. Ela me disse “pra que fazer isso por causa de R$21,00???”. E eu disse que era metade do valor do remédio da minha esposa e que eu estava na rua desde cedo.

22. Os assédios são bem comuns entre os motoristas, principalmente à noite. Comigo aconteceu duas vezes, essa da mulher do golpe e outra vez que uma mulher não tinha dinheiro. Não dei bola. Triste porque você fica desconfortável e porque vê a pessoa usando o corpo como moeda.

23. A PIOR SITUAÇÃO que eu vivi foi num dia muito quente em São Paulo que eu decidi ir trabalhar com meu shortinho favorito. Ele é bem fresquinho. Apesar da plataforma recomendar o uso de calças, tava um calor de 35° para ficar de calça.

24, A esposa do cara gritou e afastou ele na mesma hora dizendo “NÃO FAZ ISSO AQUI, FULANO”. Eu liguei o carro, abaixei o freio de mão e o cara se inclinou pra mim de novo. “Se eu te pegar dirigindo com esse short de novo, vai ser a última vez”. A esposa do cara afastou ele do carro.

25. Eu comecei a chorar muito quando olhei pra polaroid que carregava da Aretha e da Layla no carro. Arranquei de volta pra Raposo, mesmo chorando. Quando parei, desabei.

26. Nessa mesma semana, toda a minha grana foi embora num conserto do carro e meu relacionamento chegou ao fim. Ainda tentei trabalhar mais alguns dias, mas outra merda aconteceu.

27. Estacionei o carro numa rua da Barra Funda (muito longe da minha casa). Era noite e eu estava esperando uma passageira sair de um show. Como fiquei várias semanas mal, acumulou parcelas do carro e a Localiza Hertz mandou um portador me expulsar do veículo às 11 horas da noite.

28. Me fizeram levar o carro até a estação Barra Funda, onde fica o guichê mais próximo da Localiza. Lá tentei pedir para deixarem eu levar o carro no dia seguinte. Disse que não tinha como voltar pra casa. Ficaram com o carro e me deram uma sacola pra colocar minhas coisas.

29. Sai do terminal meio sem rumo. Pra ajudar, a porra da sacola rasgou e caíram todas as minhas coisas no chão (kkkk cada k é uma lágrima). Sentei na calçada e chorei. Liguei para uma amiga e depois para um amigo e pedi que ele me buscasse. Ele chegou em 15 min.

30. Esse foi o último dia que eu fiz Uber e a partir daí passei vários dias recluso. A depressão me abraçou foda. Tive sorte de apesar de ter perdido meu trampo e relacionamento, vários amigos e amigas me acolheram e ficaram do meu lado. Isso tudo afetou a dinâmica com Aretha.

31. Mas isso é meio off topic. Tô mencionando porque trabalhar na Uber não chegou nem perto de ser uma experiência positiva. São muitos riscos para pouca segurança e retorno financeiro.

32. Os motoristas só continuam porque não existe outra opção no mercado. Ao contrário do que pode parecer, ficar sentado o dia inteiro dirigindo em São Paulo é uma atividade estressante e que precisa de muita atenção a todo momento.

33. Também exige muita paciência e flexibilidade. Muitas pessoas dão notas ruins sem motivo (tem gente que dá 3 estrelas só porque não tinha bala no carro) e outras são estúpidas na sua cara. Se você não tiver paciência, ou arruma briga ou fica muito mal.

34. Para os passageiros que leram isso tudo, eu só tenho a dizer que sei que existem motoristas escrotos e vocês devem reportar a Uber. Fora isso, tentem ser generosos nas notas. Se o carro tá sujo, será que não é porque choveu ontem e ele não teve tempo de fazer uma limpeza boa?

35. Se ele não foi simpático, não desejou bom dia, será que não aconteceu algo em casa? Se ele quer falar muito, será que não é porque passa o dia inteiro só dirigindo? Seja educado e paciente também. No fim, estamos todos na merda. Quer silêncio? Peça com educação.

36. No carnaval, não entre no carro bebendo. Às vezes o motorista deixa para não levar nota baixa. Se você derrubar a bebida no carro, a limpeza custa uma fortuna. Seja empático.

37. Alguns motoristas não têm muita prática com celulares. Se puder ajudar, ajude. Não seja cuzão. Seja uma boa pessoa. Se você está dirigindo na plataforma espero que consiga um emprego melhor em breve. Aguente firme e respeite seus limites sempre.

38. Eu tenho muitas outras histórias. Apesar de não estar trampando ainda, eu estou em tratamento psicológico e psiquiátrico. Fica a foto do meu maior tesouro por quem eu faria tudo. Obrigado e fogo nos fascistas.

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