Por Asad Haider e Salar Mohandesi

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Construindo o Circuito: Socialisme ou Barbarie

Essas experiências americanas de enquete operária ressoaram bem amplamente, se tornando um ponto de referência explícito para um grupo francês em particular. Socialisme ou Barbarie seguiu uma trajetória notavelmente similar àquela de seus equivalentes americanos – os dois grupos estavam em contato, compartilhando suas descobertas, traduzindo seus trabalhos e até sendo coautores de um livro em certa altura. Ele começou como a “tendência Chaulieu-Montal”, uma corrente interna na seção francesa da Quarta Internacional trotskista, nomeada conforme os pseudônimos de seus principais agitadores, Cornelius Castoriadis (Pierre Chaulieu) e Claude Lefort (Claude Montal). Como a tendência Johnson-Forest nos Estados Unidos, a tendência Chaulieu-Montal logo se encontrou em oposição ao movimento trotskista oficial, estimulando uma ruptura no final de 1948. Cerca de vinte militantes saíram para formar uma nova organização, Socialisme ou Barbarie, com um novo jornal de mesmo nome. A primeira edição foi lançada em março do ano seguinte.[1]

Tal como o Correspondence, Socialisme ou Barbarie colocou muita ênfase na noção de experiência proletária. Para ambos os grupos a teoria socialista e a estratégia, até mesmo o próprio conteúdo do projeto socialista, só poderia derivar da experiência cotidiana da classe trabalhadora. Daniel Blanchard, um ex-integrante do Socialisme ou Barbarie, refletiu sobre a concepção da organização de um projeto socialista de sociedade: ele seria “não o resultado seja de um sonho utópico ou de uma alegada ciência da história, mas das criações do movimento dos trabalhadores. O proletariado é, por sua prática, o perpétuo inventor da teoria revolucionária e a tarefa dos intelectuais é limitada a sintetizá-la e sistematizá-la”.[2]

Nesse aspecto, Socialisme ou Barbarie contestou o Partido Comunista Francês (PCF) que defendia que o socialismo tinha que ser trazido de fora para a classe trabalhadora. Para ambos, Correspondence e Socialisme ou Barbarie, ao contrário, o socialismo na verdade viria de dentro das experiências proletárias cotidianas. Mas estes grupos concordavam que os trabalhadores eram em grande medida socializados pelo capitalismo e então ainda continuam marcados pela ideologia capitalista, ao menos em algum grau. Uma vez que quase ninguém estava livre do raciocínio capitalista, a consciência socialista não irromperia espontaneamente, mesmo que ela estivesse sempre à espreita. A ideologia capitalista ainda tinha que ser combatida; e algum outro mecanismo era necessário para permitir essa consciência latente aparecer.

Esse mecanismo era a enquete operária. Então, enquanto a tendência Johnson-Forest foi a primeira a recodificar a enquete operária na forma de narrativa operária, Socialisme ou Barbarie explicou o porquê: a narrativa proletária poderia expressar a experiência proletária de modo que faria seu conteúdo socialista embutido aparecer.

Socialisme ou Barbarie adotou essa forma específica de enquete operária – a enquete enquanto relato narrativo – partindo do que já tinha sido feito pelo Correspondence. O grupo se empenhou em traduzir The American Worker, que apareceu em série nas primeiras oito edições de seu jornal homônimo. Esses militantes saudaram o panfleto como uma nova e revolucionária forma de escrita; Philippe Guillaume o introduziu com a declaração de que “o nome Romano estará na história da literatura proletária e isso significará mesmo uma virada nessa história”.[3]

A enquete operária nesse contexto francês inicial tomou, portanto, aproximadamente a mesma forma que tomou com os americanos, com The American Worker estabelecendo novamente o paradigma. Ele não apenas formou a base empírica para “Proletarian Experience” [“A Experiência Proletária”] de Claude Lefort, a teorização mais séria da enquete pelo Socialisme ou Barbarie, mas também geraria uma série de enquetes francesas baseadas no relato de Singer. A primeira veio em 1952, quando Georges Vivier, um jovem trabalhador na Chausson, começou uma série sobre a vida proletária intitulada “La vie em usine” [A Vida na Fábrica]. As mais famosas destas narrativas, porém, foram os diários de Daniel Mothé, nome de guerra de Jacques Gautrat, um operador na Renault-Billancourt.[4] Seus escritos, que apareceram primeiro nas páginas de Socialisme ou Barbarie, atraíram tanta atenção que uma versão editada logo foi publicada pela Les Éditions de Minuit em 1959, sob o título Journal d’um ouvrier 1956-1958 [Diário de Um Trabalhador]. Foi bem recebida o suficiente para motivar a publicação de um segundo diário, chamado Militant chez Renault [Militância na Renault] pela Les Éditions du Seuil em 1965.

Haveria um segundo momento nessa circulação transnacional. No momento em que Correspondence saiu do movimento trotskista oficial para virar uma entidade própria, o grupo decidiu revolucionar ainda mais a forma da enquete operária: as narrativas de trabalhadores se tornaram um jornal de trabalhadores. O jornal de trabalhadores era para ser mais uma forma dinâmica da enquete, onde diferentes setores da classe trabalhadora poderiam não somente compartilhar suas experiências com tipos similares de trabalhadores, mas poderiam de fato trocar essas experiências entre si através de cartas aos editores.

Socialisme ou Barbarie certamente possuía algumas reservas quanto às suposições teóricas subjacentes do projeto do Correspondence, mas o grupo era suficientemente inspirado pelo modelo do jornal de trabalhadores para promover um próprio na França. Assim como The American Worker tinha criado um novo gênero de escrita, também, eles acreditavam, Correspondence significava um tipo inteiramente novo de publicação. “Ele representa um esforço profundamente original para criar um jornal que em sua maior parte é escrito por trabalhadores para falar com outros trabalhadores a partir de um ponto de vista dos trabalhadores”, eles escreveram em 1954. “Deve simplesmente ser reconhecido que Correspondence representa um novo tipo de jornal e que ele abre um novo período no jornalismo operário revolucionário”.[5] Então assim como Socialisme ou Barbarie foi inspirado pelo The American Worker para promover suas próprias narrativas de trabalhadores, também foi motivado a defender a formação de um jornal de trabalhadores na mesma linha do Correspondence.

Mas apesar de ambos os grupos usarem as narrativas operárias e o jornal operário como um meio de acessar as experiências proletárias, ainda havia ao menos uma diferença significativa. Para o Correspondence, o socialismo já existia embrionariamente nas experiências proletárias, que simplesmente tinham que ser expressadas e compartilhadas com outros trabalhadores. Foi o suficiente para proporcionar um fórum no qual se pudessem fazer circular essas experiências; a “sociedade socialista invasora” emergiria por conta própria.

O Socialisme ou Barbarie permaneceu cético. Cornelius Castoriadis comentaria muitos anos depois, se “você fala da sociedade socialista invasora”, então você “mantém a linha messiânica e apocalíptica; a ideia de que há um fim definitivo na estrada e, a não ser que tudo se exploda, nós estamos indo para lá e estamos destinados a acabar lá, o que não é verdade”.[6] Para o Socialisme ou Barbarie, o desenvolvimento do socialismo não era uma força irresistível, mas a própria questão a ser respondida. Enquanto havia certamente elementos rudimentares, incipientes, fragmentados, que poderiam ser encontrados nas experiências proletárias, eles não poderiam ser ativados simplesmente através da escrita ou mesmo no compartilhamento dessa escrita com outros trabalhadores. Alguns do Socialisme ou Barbarie até acreditavam que estes elementos não poderiam ser propriamente articulados em um projeto socialista coerente até que fossem retrabalhados pela teoria.

Então os elementos ocultos recuperados pela enquete tinham que ser politizados antes do socialismo poder ver a luz do dia. Essas diferenças imediatamente colocam em questão a função potencial dos intelectuais militantes. Para o Correspondence, o papel dos intelectuais era ambíguo. Seu objetivo era proporcionar o espaço para as experiências operárias serem compartilhadas, mesmo se isto resultasse num potencial ventriloquismo como no caso de Constance Webb e Si Owens. Como um editorial de 1955 chamado “Must Serve Workers” [“Há que Servir os Trabalhadores”] colocou, “A tarefa primária de qualquer indivíduo que vem de outra classe ao movimento dos trabalhadores é deixar seu passado para trás e se adaptar e identificar completamente com a classe trabalhadora… A função do intelectual é ajudar o movimento, é colocar sua realização intelectual à disposição dos trabalhadores”. [7]

De fato, a própria estrutura da organização era determinada por essa crença. Grace Lee Boggs depois relembrou em sua autobiografia que o grupo tentou se basear na noção de Lenin de que a melhor forma de combater a burocracia do “primeiro escalão” dos intelectuais era desenvolver o “terceiro escalão” dos trabalhadores.[8] Correspondence se dividia em três escalões: “trabalhadores de verdade” no primeiro, “intelectuais”, que agora estavam empregados em trabalhos tradicionalmente feitos por “trabalhadores”, no segundo, e os “verdadeiros intelectuais” no terceiro. Como um ex-membro evidentemente descontente lembra:

Os verdadeiros proletários eram colocados no primeiro escalão, pessoas de status misto, como donas de casa, no segundo, e os intelectuais eram colocados no terceiro. Nossas reuniões consistiam no então agora prestigiado primeiro escalão tagarelando, normalmente de uma maneira desarticulada e aleatória, sobre o que eles pensavam sobre tudo que existia sob o sol. O resto de nós, especialmente nós intelectuais de terceiro escalão, éramos aconselhados a ouvir.[9]

Em contraste disso, Socialismo ou Barbarie afirmava que as experiências operárias tinham que ser interpretadas e desenvolvidas, o que abriu espaço para um papel diferente para os intelectuais. O maior espaço que o Socialisme ou Barbarie concedia à produção teórica o forçou a mais diretamente, e talvez mais controversamente, questionar o relacionamento entre trabalhadores e intelectuais, especialmente como ele se associava com a prática da enquete operária.

Mas para compreender os problemas levantados pelo jornal operário temos que voltar para 1952 num artigo não assinado de Claude Lefort, intitulado “Proletarian Experience”.[10] Ocultas no interior de suas experiências cotidianas estão atitudes proletárias básicas, talvez até universais: “Antes de qualquer reflexão explícita, de qualquer interpretação sobre seu destino ou seu papel, os trabalhadores têm comportamentos espontâneos no que diz respeito ao trabalho industrial, à exploração, à organização da produção e da vida social tanto dentro quanto fora da fábrica”.[11] Para acessar essas atitudes, que para Lefort formavam a própria base do projeto socialista, os militantes tinham que coletar relatos de experiências proletárias. Com efeito, aprender sobre as experiências da classe trabalhadora e investigar a sua vida diária tinha que ser um aspecto fundamental de quaisquer organizações revolucionárias. “Socialisme ou Barbarie gostaria de solicitar depoimentos de trabalhadores”, ele anunciou, “e publicá-los ao mesmo tempo em que dá um papel importante a todas as formas de análise referentes à experiência proletária”.[12]

Como essas atitudes, no entanto, permanecem latentes e porque elas eram necessariamente parciais, depoimentos deveriam não só ser coletados, mas também interpretados. E aí reside o verdadeiro problema: quem tinha o direito de interpretar esses relatos? Lefort concluiu seu ensaio programático com exatamente essa pergunta, que ele respondeu com outra:

Quem revelará por trás do conteúdo explícito de um documento as intenções e atitudes que o inspiraram e justaporá os depoimentos? Os camaradas do Socialisme ou Barbarie? Mas isto não contrariaria suas intenções, dado que eles propõem um tipo de pesquisa que permitiria aos trabalhadores refletir sobre sua experiência?[13]

Naquele momento essas questões não pressionavam tanto, já que o Socialisme ou Barbarie permanecia nas margens e a enquete na escala imaginada por Lefort era uma mera proposta. Mas elas se tornaram uma preocupação prática no maio de 1954, quando um jornal operário efetivamente surgiu na França. Tudo começou na Renault-Billancourt, uma fábrica de automóveis nos subúrbios de Paris. Uma fábrica monstruosa, empregando cerca de 30.000 trabalhadores, era também um local lendário de militância proletária e amplamente considerado uma fortaleza do Partido Comunista. Mas pelos anos de 1950 o partido lentamente começou a perder sua adesão, crescentemente estando sob o fogo de elementos mais radicais, como os trotskistas. Era neste contexto que, em abril de 1954, uma ruptura ocorreu quando alguns trabalhadores de um dos chãos de fábrica começaram a circular um panfleto sobre os níveis salariais. Isso foi calorosamente recebido por outros trabalhadores e, encorajados por essa recepção entusiasmada, alguns trabalhadores decidiram lançar um jornal mensal, independente e clandestino, chamado Tribune Ouvrière [“Tribuna Operária”].[14]

“O que queremos”, anunciou a primeira edição do jornal operário, se posicionando tanto contra a administração da Renault quanto à direção do PCF, “é acabar com a tutela que as assim chamadas organizações operárias exerceram sobre nós por muitos anos. Nós queremos que todos os problemas relativos à classe trabalhadora sejam debatidos pelos próprios trabalhadores… O que sugerimos é fazer deste jornal uma tribuna na qual solicitamos sua participação. Nós gostaríamos que este jornal refletisse as vidas e opiniões dos trabalhadores. É sua responsabilidade fazer isso acontecer”.[15]

Socialisme ou Barbarie rapidamente apoiou o jornal, oferecendo suporte financeiro, ajudando a distribuí-lo e até publicando extratos do jornal em sua própria revista. Mas o relacionamento exato entre as duas publicações – uma um jornal clandestino escrito, editado e gerenciado por operários fabris, o outro um jornal teórico quase inteiramente produzido por intelectuais – era ambíguo e, por vezes, altamente divisivo. Alguns viam o jornal operário como um local independente para a voz crua da classe trabalhadora, seja lá o que isso significasse, e, portanto, apenas frouxamente aliado com o projeto teórico levado pelo Socialisme ou Barbarie; outros queriam formalmente integrá-lo com o Socialisme ou Barbarie, esperando que o jornal operário pudesse introduzir as rigorosas ideias do grupo a uma audiência proletária mais ampla.

Referências

[1] Para uma excelente introdução ao grupo em inglês, veja Marcel van der Linden, “Socialisme ou Barbarie: A French Revolutionary Group (1949-1965)”, Left History vol. 5, no. 1, 1997. Republicado em http://www.left-dis.nl/uk/lindsob.htm. Para uma história geral, veja Philippe Gottraux, “Socialisme ou Barbarie”: Un engagement politique et intellectuel dans la France de l’après-guerre (Paris: Editions Payot Lausanne, 1997).
[2] From Workers’ Autonomy to Social Autonomy: An interview with Daniel Blanchard by Amador Fernández-Savater”, disponível online em libcom.org.
[3] Philippe Guillaume, “L’Ouvrier Americain par Paul Romano,” Socialisme ou Barbarie no. 1 (Mars/Avril 1949), 78; traduzido [ao inglês] nesta edição da Viewpoint.
[4] Para mais sobre essa figura fascinante, veja o livro que será lançado em breve de Stephen Hastings-King sobre o Socialisme ou Barbarie. [Nota do Passa Palavra: trata-se do livro “Looking For The Proletariat: Socialisme Ou Barbarie And The Problem Of Worker”, publicado em 2014]
[5] “Un journal ouvrier aux Etats-unis,” Socialisme ou Barbarie, no. 13 (jan-mars 1954): 82.
[6] Cornelius Castoriadis, “CLR James and the Fate of Marxism,” em CLR James: His Intellectual Legacies, ed. Selwyn Cudjoe and William Cain (Amherst: University of Massachusetts Press, 1995), 287.
[7] “Workers and Intellectuals,” Correspondence, vol. 2, no. 3 (February 5, 1955): 4.
[8] Grace Lee Boggs, Living For Change: An Autobiography (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1998), 67.
[9] Um ex-membro anônimo do Correspondence citado em Ivar Oxaal, Black Intellectuals Come to Power (Cambridge: Schenkman Books, 1968), 78.
[10] Para uma discussão detalhada da visão de Lefort sobre esse problema, veja Stephen Hastings-King, nesta edição.
[11] Claude Lefort, “ Proletarian Experience”, traduzido [ao inglês] nesta edição.
[12] Lefort, “Proletarian Experience.”
[13] Lefort, “Proletarian Experience.”
[14] Para uma explicação fascinante desse jornal por um militante intimamente envolvido em seu desenvolvimento, veja a contribuição de Henri Simon para esta edição.
[15] “Que voulons-nous?” em Tribune Ouvrière no. 1 (mai 1954), reimpresso em Socialisme ou Barbarie nos. 15/16: 74.

Este artigo foi traduzido e dividido em nove partes pelo coletivo Passa Palavra. A versão original está em Viewpoint Magazine

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