Arrrivee des ouvriers specialises (OS) a l'usine Renault de Sandouville au Havre 14 septembre 1971 -- Workers arriving in Renault car factory in Le havre (France) september 14, 1971

Por Asad Haider e Salar Mohandesi

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Em 1955, Tribune Ouvrière começou a passar por dificuldades. O coletivo não tinha realmente crescido, os trabalhadores em geral pareciam indiferentes ao jornal e o corpo editorial permaneceu pequeno, com não mais do que talvez 15 trabalhadores. Parte desta falta de interesse geral resultava de desafios logísticos. A equipe editorial tinha recursos mínimos e não poderia sustentar cobrar preços elevados, já que nenhum trabalhador pagaria um jornal caro. Também era muito difícil distribuí-lo. Enquanto um jornal clandestino, ele só poderia ser circulado de mão em mão. E suas reuniões não poderiam ser organizadas abertamente, fazendo ser muito difícil estabelecer relações de longo prazo com leitores interessados.

Mas havia ainda outro problema em jogo, talvez mais fundamental. Daniel Mothé usou a oportunidade para escrever um artigo programático sobre o significado do jornal operário, passando uma porção significativa do artigo discutindo o relacionamento entre trabalhadores e intelectuais. Deve ser notado desde o início que Mothé não era realmente um observador “neutro”. O único a possuir um pé em ambas as organizações, Mothé era um dos agitadores principais por trás do jornal, assim como um membro do Socialisme ou Barbarie desde 1952 – portanto, ele tinha um interesse atribuído em “resolver” o vexado relacionamento entre as duas publicações.[1] É altamente significativo, além disso, que Mothé publicou seu longo artigo sobre o Tribune Ouvrière no Socialisme ou Barbarie.

Ao contrário do Correspondence, que mencionou diretamente em seu artigo, Mothé argumentou que um jornal operário, apesar de ser inteiramente escrito pelos próprios operários, ainda tinha que participar de algum tipo de diálogo com militantes intelectuais – na verdade, isto tinha que ser sua função primária. Para Mothé existe uma clara divisão do trabalho, determinada pelo próprio modo capitalista de produção, que não poderia ser obstinadamente ignorada. A política revolucionária tinha de levar em conta esta divisão, ao invés de querer deixá-la de lado. Mothé prossegue nesta observação para construir uma dicotomia entre dois tipos ideais: o trabalhador de um lado e o intelectual militante no outro. Eles são primariamente distinguidos, diz ele, por sua formação, sugerindo que “se a formação do militante revolucionário é uma formação que é quase exclusivamente intelectual”, especialmente durante um período em que “minorias revolucionárias” tinham se desenraizado da classe trabalhadora, a “formação política dos trabalhadores é, ao contrário, quase exclusivamente prática”. Esta formação prática era adquirida em conjunto da experiência de luta e tornou-se a base de novos métodos de luta. A chave do problema é achar uma maneira de associar estes dois polos distintos, criar uma forma que possa unir a “experiência imediata dos trabalhadores e a experiência teórica do militante revolucionário”.[2]

Mothé argumentou que cada polo tinha que cumprir uma função única que era, no entanto, dependente da outra. O militante revolucionário articula teoria revolucionária, comunica essa teoria para a classe trabalhadora e combate ideias falsas.[3] Os “elementos essenciais” dessa teoria, contudo, são eles mesmos elaborados das experiências vividas pela classe trabalhadora. Eles formam um relacionamento recíproco: “Neste sentido, se a classe trabalhadora necessita da organização revolucionária para teorizar sua experiência, a organização necessita da classe trabalhadora para poder elaborar sobre essa experiência. Este processo de osmose possui uma importância decisiva”.[4]

O pilar desta relação, afirmou Mothé, é precisamente o jornal de trabalhadores. A função real do jornal operário é mediar entre esses dois polos. Ele é o meio pelo qual os trabalhadores podem expressar suas experiências cotidianas, que podem então ser teorizadas pelos militantes revolucionários. Os militantes podem então ler estes relatos, peneirar neles tendências políticas latentes e trabalhar suas ideias rudimentares dentro da teoria revolucionária. Ao mesmo tempo, presume-se, o jornal pode servir como o veículo em que estas novas teorias desenvolvidas serão então transmitidas de volta para a classe trabalhadora.

O modelo de Mothé, contudo, levantou tantas questões quanto respondeu. Para começar, havia a noção imprecisa de experiência e a questionável hipótese de que, em sua base, todas as experiências proletárias articulavam um conjunto de atitudes universais. A tendência Johnson-Forest e Claude Lefort compartilhavam esta suposição. Com efeito, em “Proletarian Experience”, Lefort chegou a escrever:

Dois trabalhadores em situações muito diferentes têm em comum que ambos suportaram uma ou outra forma de trabalho e exploração que é essencialmente a mesma e que absorve três quartos de sua existência pessoal. Seus salários podem ser bem diferentes, suas situações de vida e convívio familiar podem não ser comparáveis, mas ainda permanece o caso de que eles são profundamente idênticos em seus papéis como produtores ou operadores de máquina, e em sua alienação.

Mesmo que se limite a classe trabalhadora aos operários fabris, o que Lefort pareceu fazer, tal afirmação reduz a heterogeneidade da classe trabalhadora para uma essência humana compartilhada: os trabalhadores são iguais em toda parte porque eles têm suas forças criativas universais alienadas nas coisas que produzem. Mas tal concepção nos impede de compreender as muitas formas que a força de trabalho assume, a pluralidade de maneiras em que é colocada para trabalhar e os diversos processos pelo qual é explorada.

Tudo isso nos leva a perguntar quem realmente são estes “trabalhadores” de que Mothé fala. Se os militantes revolucionários têm de elaborar sobre as experiências proletárias, estas incluem as das donas de casa e trabalhadores rurais? Os militantes revolucionários devem elaborar sobre todas estas experiências, ou será apenas a experiência de um setor suficiente, e se assim for, quem falará por todo o resto? A terminologia volátil de Mothé expõe sua preferência. O artigo começa por delinear uma distinção entre “militantes revolucionários” e “trabalhadores”, mas Mothé logo fala de “militantes revolucionários” e “trabalhadores de vanguarda”. O movimento assinala sua priorização de um tipo de trabalhador sobre outros. De fato, para Mothé, assim como para a maioria do Socialisme ou Barbarie, quando eles falavam da classe trabalhadora, eles falavam na verdade da classe trabalhadora industrial, particularmente nas fábricas automotivas; mas até mais especificamente sua figura ideal, sua vanguarda idealizada, eram trabalhadores semiqualificados. É importante notar que enquanto o Socialisme ou Barbarie procurava evitar toda a noção de partido de vanguarda, indo diretamente para a classe trabalhadora, mesmo seus elementos mais “anarquistas”, como Lefort, permaneceram envoltos na problemática geral do vanguardismo: o elemento vanguardista não era mais exterior à classe, mas interior.

Mothé acrescentou uma qualificação adicional para essa redução. O trabalhador deveria não apenas ser o mais politicamente consciente de sua classe, mas também deveria ser capaz de expressar suas experiências de uma maneira que elas pudessem ser teorizadas. Isto requereria não apenas um alto grau de alfabetização geral, assim como uma razoável porção de confiança, mas também certa fluência em um léxico político mais desafiador. “Neste sentido”, esclareceu Mothé, “os trabalhadores mais adaptados para a escrita serão ao mesmo tempo os mais conscientes, os mais educados, mas também os que mais se libertarão da influência ideológica burguesa ou stalinista”.[5] Então Mothé queria um trabalhador que poderia não só refletir sobre sua situação ou transcrevê-la numa narrativa que imitasse a cultura oral natural do trabalhador médio, mas que também estivesse livre de toda ideologia não revolucionária. Não é surpresa, assim, que Mothé e a maioria do Socialisme ou Barbarie encontraram apenas um trabalhador que preenchesse os requisitos: o próprio Daniel Mothé.[6]

A substituição sinédoque de um único trabalhador fabril politicamente consciente para a classe trabalhadora como um todo marca um significante passo para trás em relação às posições desenvolvidas pela tendência Johnson-Forest, e depois pelo Correspondence, que tinham identificado ao menos quatro segmentos distintos da classe trabalhadora: trabalhadores industriais, negros, mulheres e jovens.

Talvez a parte mais complicada do modelo de Mothé, contudo, tinha a ver não tanto com o primeiro passo neste processo – dos trabalhadores para os intelectuais – mas com o segundo, dos intelectuais para os trabalhadores. Mothé gastou um bocado de tempo discutindo o primeiro processo, mas muito pouco sobre o segundo. Isto era devido em grande parte porque este segundo processo provou ser controverso tanto entre os militantes revolucionários do Socialisme ou Barbarie quanto entre os operários fabris que formavam o núcleo editorial do Tribune Ouvrière.[7]

Alguns apoiavam fortemente o “retorno” das ideias socialistas para a classe trabalhadora. Castoriadis era o primeiro a defender, já em junho de 1956, que o grupo tinha que criar um “jornal operário” separado e direcionado explicitamente à classe trabalhadora, não só em Paris, mas em toda a França. Era imperativo, ele pensava, introduzir mais trabalhadores ao trabalho teórico do Socialisme ou Barbarie e avivar a própria teoria, pela necessidade de se envolver com uma audiência mais ampla e assim escrever de forma mais acessível, o que levaria os militantes a trabalhar de uma maneira mais “concreta”, evitando abstrações e prestando maior atenção aos desenvolvimentos na luta de classes.

Essa proposta foi rejeitada. Alguns, como Mothé, aceitaram a posição teórica de Castoriadis sinceramente e concordaram com a necessidade de tal jornal, mas sentiam que ele era impraticável pela falta de recursos e pelo fato de que o jornal provavelmente não encontraria uma audiência pronta, dado que eles ainda não desfrutavam de laços fortes com a classe trabalhadora mais ampla na França. Além disso, Mothé tinha visto diretamente, pelo seu trabalho com o Tribune Ouvrière, o quão difícil era operar um “jornal operário” mesmo que em apenas uma fábrica, quanto mais em toda a França, como esperava Castoriadis.

Outros, como Henri Simon e Claude Lefort, se opunham ao jornal em bases teóricas, ressaltando mais uma vez uma divisão importante sobre a vexada “questão da organização”. Simon perguntou em que medida o jornal realmente seria um jornal operário se ele era forçadamente direcionado a transmitir teoria revolucionária aos trabalhadores.[8] Como é que isto seria diferente dos outros jornais “operários”, como aqueles patrocinado pelo PCF, que eles criticavam tão duramente?

Numa linha semelhante, Lefort, que tinha sempre se oposto à imposição de qualquer tipo de “direção” para os movimentos autônomos da classe trabalhadora, depreciou o jornal proposto por Castoriadis como “uma operação vinda de cima”. Como ele colocou, “Chaulieu decidiu ter esse jornal a qualquer custo, mesmo que não haja público da classe trabalhadora para difundi-lo, e ainda menos trabalhadores para tomar parte ativamente nele”.[9] De fato, Lefort nunca se opôs à noção de um jornal operário, nem mesmo a tal organização ou teoria. Mas sua convicção de que tudo tinha que fluir organicamente da própria classe trabalhadora se traduziu numa profunda desconfiança em relação aos programas: quaisquer que sejam as intenções por trás do esboço de tal documento e mesmo que fosse elaborado em referência à classe, um programa sempre acabaria por ossificar numa forma exterior, em última análise servindo de camisa de força para a espontaneidade da classe trabalhadora. Tal posição, que implicava um papel extremamente circunscrito aos militantes, era antitética à posição de Castoriadis, já revelando uma diferença irreconciliável entre os dois principais teóricos por trás da revista. E foi precisamente a enquete operária, na forma de jornal, que revelou isso de forma mais marcante. Embora ambos tenham se reunido por conta da enquete operária, cada um tinha um objetivo bem diferente em mente. Para Lefort, o objeto da pesquisa eram as atitudes proletárias universais; para Castoriadis, era o conteúdo rudimentar do programa socialista.

Embora a proposta tenha sido derrotada, o assunto voltou a explodir plenamente em 1958. O golpe de De Gaulle criou uma situação inteiramente nova. A esquerda estabelecida parecia paralisada, uma onda de novos recrutas inundou o Socialisme ou Barbarie e muitos, liderados por Castoriadis, acreditavam que o momento de transformar o grupo em uma organização revolucionária havia finalmente chegado, integrada com uma linha e um jornal popular como o que ele tinha proposto anteriormente em 1956.[10] Uma ruptura tomou forma por conta das velhas falhas sísmicas e em setembro a minoria, liderada por Lefort e Simon, saiu para formar o Information e Liaisons Ouvrières [Informação e Conexões Operárias, ILO].[11]

Uma das primeiras ações deste reinventado Socialisme ou Barbarie foi criar um novo jornal, Pouvoir Ouvrier [“Poder Operário”], em dezembro daquele ano. A forma do jornal refletia os objetivos de Mothé e Castoriadis, inicialmente dividido em duas seções: uma política, que publicava versões simplificadas das teorias desenvolvidas na sua organização-mãe, e outra intitulada “La parole aux travailleurs” [“A Palavra aos Trabalhadores”], que publicava depoimentos de trabalhadores na tradição de Paul Romano.

Argumentando pela necessidade estratégica do jornal, Castoriadis elaborou sua concepção do relacionamento do intelectual e o trabalhador em “Proletariado e Organização, Parte 1”, escrito no verão de 1958 enquanto a ruptura com a facção de Lefort estava ocorrendo. Enquanto o modelo de jornal de Mothé era algo como uma linha de transmissão, movendo-se para frente e então para trás entre trabalhadores e intelectuais, como se ao toque de um interruptor, neste texto Castoriadis fornece uma imagem mais dinâmica, mais como um circuito. Militantes não disseminam simplesmente suas teorias entre trabalhadores para convertê-los ao socialismo, eles submetem suas teorias para verificação. A teoria revolucionária “não terá valor, consistência com o que proclama em outra parte serem seus princípios essenciais”, Castoriadis defendeu, “a não ser que ela esteja sendo constantemente reabastecida, na prática, pela experiência dos trabalhadores enquanto toma forma nas suas vidas cotidianas”; era este processo que permitiria os trabalhadores “educarem o educador”.[12] Isso significava que o Socialisme ou Barbarie, que tinha sido até o momento uma revista excessivamente “intelectual”, teria que repensar sua prática. “A tarefa que a organização tem pela frente nesta esfera”, ele continuou, “é unir intelectuais com trabalhadores enquanto trabalhadores, e enquanto simultaneamente elabora os seus pontos de vista. Isto significava que as perguntas feitas e os métodos para discutir e trabalhar estes problemas devem ser alterados para que seja possível que o trabalhador tome parte”. A teoria revolucionária tinha que ser mais acessível, a organização tinha que se tornar mais disciplinada e sua composição tinha que mudar:

Apenas uma organização formada como uma organização operária revolucionária, em que trabalhadores predominem numericamente e a dominem em questões fundamentais, e que crie amplas vias de troca com o proletariado, permitindo-se assim aproveitar da mais vasta experiência possível da sociedade contemporânea – somente uma organização deste tipo pode produzir uma teoria que será outra coisa que não o trabalho de especialistas isolados.

Como Mothé, ele argumentou que os militantes tinham que “extrair o conteúdo socialista naquilo que estava sendo constantemente criado pelo proletariado (quer se trate de uma greve ou de uma revolução), formulá-lo coerentemente, propagá-lo e mostrar sua importância universal”.[13] A teoria deve fluir a partir da “experiência e ação histórica e cotidiana do proletariado”, e mesmo a “teoria econômica tinha que ser reconstruída em torno do que está contido em embrião na tendência dos trabalhadores para a igualdade salarial; toda a teoria de produção em torno da organização informal dos trabalhadores na fábrica; toda a teoria política em torno dos princípios incorporados nos sovietes e nos conselhos”. Mas depois caberia aos militantes extrair “o que é universalmente válido na experiência do proletariado”, trabalhar isto numa “perspectiva socialista” geral, então propagar esta perspectiva entre os trabalhadores cujas experiências serviram como sua própria condição de possibilidade (214).

Castoriadis tentou precisamente isso na terceira parte de seu “Sobre o Conteúdo do Socialismo”, também em 1958. Depois de criticar a experiência da burocracia bolchevique e então imaginar uma gestão conselhista da sociedade nas partes um e dois, ele se voltou na última parte para a análise do processo de trabalho no nível da empresa. O conteúdo do socialismo é o “centro privilegiado, ponto focal” sem o qual só existe “mera sociologia empírica”. O conteúdo do socialismo poderia apenas ser demonstrado na “luta do proletariado contra a alienação” (156).

A contradição principal do capitalismo, argumentou Castoriadis, está na definição da troca de força de trabalho, entendida como a tensão entre o “tempo humano” do trabalhador e a racionalização imposta pela administração. Apenas pode haver um equilíbrio de forças temporário entre os dois, o trabalhador resignando a um compromisso estabelecendo um certo ritmo de trabalho, que deve ser dissolvido e reinventado quando o processo de manufatura é transformado pelo novo maquinário. A função do taylorismo era reduzir a heterogeneidade do tempo humano para a “‘única melhor maneira’ de cumprir cada operação”, padronizando os procedimentos de trabalho e determinando uma produção média em relação à qual os salários poderiam ser determinados – uma tentativa da administração de eliminar a possibilidade de conflitos salariais (159-60).

Mas a “única melhor maneira” do taylorismo não poderia explicar a realidade do processo de trabalho, realizado por indivíduos com multiplicidades de “melhores maneiras” – com seus próprios gestos e movimentos, suas próprias formas de adaptação às suas ferramentas, seus próprios ritmos de execução. A coletividade de indivíduos no chão de fábrica teria que realizar sua própria forma de “associação espontânea” contra a racionalização da administração, mesmo que para cumprir os objetivos da administração (163).

Aqui o conceito de “grupo elementar”, o “núcleo vivo da atividade produtiva”, extraído tanto de The American Worker e dos diários de Mothé quanto da sociologia industrial, se tornou decisivo (170).[14] Cada empresa, escreveu Castoriadis, tinha uma “dupla estrutura”, sua “organização formal” representada em gráficos e diagramas, e sua organização informal, “cujas atividades são levadas e sustentadas por indivíduos e grupos em todos os níveis da pirâmide hierárquica conforme as exigências de seu trabalho, os imperativos da eficiência produtiva e as necessidades de sua luta contra a exploração” (170) A distinção entre as duas não era meramente uma questão de “teoria contra prática”, de uma ilusória ideologia dos patrões contra a realidade confusa do chão de fábrica, como alguns sociólogos liberais poderiam conceber. Ela representava a verdadeira luta pela qual a administração tentava envolver todo o processo de produção.

Contra a “administração separada [direction]” da burocracia, o grupo elementar constituía “a administração [gestion] de sua própria atividade” (169-70, 171). A oposição entre os dois, Castoriadis argumentou, era o verdadeiro caráter da luta de classes, a organização formal coincidindo com o “estrato administrativo” e a organização informal representando “um modo diferente de operação da empresa, centrado na situação real dos executantes”. Esta luta entre “diretores e executantes” caracterizava o local de trabalho capitalista, começando no nível do grupo elementar e se estendendo a toda a empresa. Visto que a “posição de cada grupo elementar é essencialmente idêntica a dos outros”, a cooperação entre os grupos os leva “a se unir em uma classe, a classe dos executantes, definida por uma comunidade de situação, função, interesses, atitude, mentalidade” (171).

Se a sociologia industrial da perspectiva administrativa era incapaz de reconhecer esta divisão de classe no local de trabalho e, portanto, se perdeu em abstração teórica, o mesmo ocorreu com os marxistas cujo conceito de classe não começa com “as articulações básicas no interior da empresa e entre os grupos humanos no interior da empresa”. Sua ideologia os bloqueou de “ver o processo vital de formação de classe do proletariado, da autocriação como o resultado de uma luta permanente que começa no interior da produção” (172).

Essa ideologia tinha consequências políticas diretas. Para Castoriadis, mesmo reivindicações salariais eram expressões nascentes da luta pela qual a organização informal dos executantes tendia para um ataque à administração capitalista da produção. Se os partidos marxistas e sindicatos tentavam restringir o conteúdo destas lutas à administração burocrática da redistribuição de renda, isso somente poderia reforçar a divisão de diretores/executantes. “Ao conceito abstrato de proletariado corresponde o conceito abstrato de socialismo como nacionalização e planificação”, escreveu Castoriadis, “cujo único conteúdo concreto se revela, em última análise, ser a ditadura totalitária dos representantes dessa abstração – a burocracia partidária”. Para que a luta dos trabalhadores se realize verdadeiramente ela deverá avançar em direção à autogestão operária da produção (172).

Sem essa transformação completa da sociedade o capitalismo continuaria em seu curso corrente, com o “tremendo desperdício” gerado por seu processo de produção irracional. Cada empresa tentou vacilantemente harmonizar entre a decomposição dos executantes em indivíduos atomizados e sua reintegração em novas totalidades unificadas que correspondem a um novo processo de produção racionalizado (172-3). Mas o plano administrativo é inevitavelmente incapaz de estabelecer uma hierarquia de tarefas que reflita as exigências reais da produção – enquanto a administração desconhece a realidade do processo no chão de fábrica, o executante é separado do plano e desinteressado nos resultados, propenso a tomar atalhos (175). Apenas “a prática, a invenção, a criatividade da massa de executantes”, a coletividade do grupo elementar, pode preencher as lacunas nas diretrizes de produção da administração (176).

Mas apesar da afirmação de Castoriadis sobre a criatividade dos executantes na produção de mercadorias, seu papel na produção de teoria estava declinando bruscamente. Como Simon, Lefort e outros temiam, as narrativas operárias cada vez mais se tornaram um mero ornamento no Pouvoir Ouvrier. Confirmando essa preocupante tendência, em novembro de 1959 o grupo votou para mudar a ênfase do jornal mais ainda para a seção “política”. Pela primavera de 1961, a seção separada intitulada “La parole aux travailleurs” desapareceu completamente.[15] O jornal, portanto, terminou apenas cumprindo a segunda função delineada por Mothé – transmitir teoria revolucionária para a classe trabalhadora. Mas sem a primeira função – expressar experiências proletária – Pouvoir Ouvrier se tornou simplesmente outra publicação vanguardista, indistinguível dos vários jornais que Mothé originalmente criticou.

Para sermos justos, parece que o desaparecimento de “La parole aux travailleurs” foi em grande parte resultado de uma falta de narrativas operárias. De fato, esse problema atravessou as rupturas no Socialisme ou Barbarie. Quaisquer que fossem as diferenças entre as concepções de Lefort, Mothé e do Pouvoir Ouvrier sobre a enquete e a relação entre trabalhadores e intelectuais, todos eram dependentes de um fluxo constante de relatos de trabalhadores. Mas para sua decepção, eles descobriram que os trabalhadores simplesmente não queriam escrever.[16]

É significativo aqui que todos esses modelos imaginavam a enquete operária da mesma maneira: não o questionário, como Marx sugeriu, mas o testemunho escrito iniciado por Romano. Lefort se exaustou a criticar explicitamente a estratégia “baseada estatisticamente” de trabalhadores fazendo “centenas de perguntas” entre si, uma vez que estas resultariam em meras correlações numéricas e seriam incapazes de trazer à tona os “sistemas de vida e pensamento” de “indivíduos concretos”. Ainda pior, uma “pergunta imposta de fora pode ser irritante para o sujeito sendo questionado, dando forma a uma resposta artificial ou, em qualquer caso, imprimindo-lhe um caráter que de outro modo não teria”.[17] Mas é difícil não pensar se a escassez de respostas de trabalhadores tinha a ver com esta forma específica de enquete. Apesar das narrativas operárias poderem permitir os trabalhadores se expressarem mais organicamente, elas são, no entanto, muito mais difíceis de compor do que responder um questionário.

Referências

[1] Mothé era um dos poucos trabalhadores no grupo, o que fazia com que muitos o colocassem num tipo de pedestal. Como relembra Lefort, “As propostas de Mothé, frequentemente muito ricas, mas às vezes confusas, tinham peso para muitos porque ele deveria ‘representar’ a Renault. Mothé era consciente do papel de que era encarregado e enquanto ele tirava vantagem disso, ele também era exasperado por isso. O clima seria bem diferente se tivéssemos mais trabalhadores entre nós”. “An interview with Claude Lefort,” Telos 30 (Winter 1976-77): 178. Essa falta de trabalhadores no grupo talvez fosse uma razão para a escassez de narrativas operárias que constantemente atormentou o Socialisme ou Barbarie. Isso também marca uma diferença significante entre o Correspondence e o Socialisme ou Barbarie. O primeiro era esmagadoramente operário. Em 1954 se vangloriavam de ter 75 trabalhadores filiados e apenas 5 que se autodescreviam como intelectuais; veja The Correspondence Booklet (Detroit: Correspondence, 1954), 1. Em contraste, a lista de membros do Socialisme ou Barbarie consistia largamente de intelectuais ou estudantes.
[2] Daniel Mothé, “Le problème d’un journal ouvrier,” Socialisme ou Barbarie no. 17 (juillet-septembre 1955), 30; traduzido [ao inglês] nesta edição da Viewpoint.
[3] Mothé frequentemente usa o termo “ideologia revolucionária” ao invés de teoria revolucionária.
[4] Note como Mothé substitui “organização revolucionária” por “militantes revolucionários”. Isso parece sugerir que, de acordo com esse modelo, a organização pode ser composta apenas de militantes. Isso pode ser um reflexo da situação que o Socialisme ou Barbarie se encontrava: um grupo que era composto quase que inteiramente por intelectuais é transformado em um grupo de tipo teórico.
[5] Mothé, “Le problème d’un journal ouvrier,” 47.
[6] Essas qualificações rigorosas exacerbaram o grande problema encarado por esse projeto: a relutância da maioria dos trabalhadores em escrever.
[7] O núcleo editorial do Tribune Ouvrière já estava em ruínas por disputas ideológicas internas. Embora ele tenha apoiado um relacionamento próximo entre os dois jornais, Mothé não queria tornar o Tribune Ouvrière um jornal político, em outras palavras, ele se opôs a ideia de que o jornal deveria comunicar ideias manifestamente políticas aos trabalhadores e defendeu que ele deveria ser principalmente um espaço onde trabalhadores pudessem discutir suas experiências. Gottraux, “Socialisme ou Barbarie”, 67.
[8] Para mais sobre a posição de Henri Simon sobre a enquete, o jornal operário e essa experiência mais ampla, veja a contribuição dele para esta edição.
[9] Gottraux, “Socialisme ou Barbarie”, 86.
[10] Para mais sobre essa conjuntura, veja “Interview with Castoriadis,” Telos 23 (Spring 1975), 135.
[11] Para mais sobre essa ruptura, Marcel van der Linden, “Socialisme ou Barbarie: A French Revolutionary Group (1949-1965)”. Para uma breve análise da perspectiva de um militante que estava envolvido, veja Henri Simon, “ 1958-1998: Communism in France: Socialisme ou Barbarie, ICO and Echanges”, disponível online em libcom.org.
[12] Daniel Blanchard viu uma perfeita ilustração disso no relacionamento entre Mothé e Castoriadis: “Considerando que as organizações leninistas mantiveram os trabalhadores manuais e intelectuais estritamente separados em papéis específicos (os últimos educando os primeiros em qualquer caso), no SouB nós devotamos esforços especiais – que frequentemente eram malsucedidos – para abolir essa separação. Por exemplo, o relacionamento entre Mothé e Castoriadis era um exemplo interessante da colaboração de um trabalhador muito inteligente, como era Mothé, e um teórico como Castoriadis. As ideias que Castoriadis elaborou ajudaram Mothé a entender sua própria realidade na fábrica. E Mothé era então capaz de analisar sua experiência de uma maneira muito concreta, que por sua vez nutria os trabalhos teóricos de Castoriadis; Blanchard, “ Autonomy.” Henri Simon também comentou sobre esse par, mas de uma perspectiva mais crítica: “No Socialisme ou Barbarie havia um tipo de harmonia [osmose], simbiose Mothé/Castoriadis. Havia quase sempre lado a lado no Socialisme ou Barbarie um artigo teórico de Castoriadis e um artigo concreto de Mothé. Mothé via a fábrica pelas lentes teóricas de Castoriadis”; “ Entretien d’Henri Simon avec l’Anti-mythes (1974)”, disponível online em raumgegenzement.blogsport.de.
[13] Cornelius Castoriadis, Political and Social Writings, Volume 2, 1955-1960: From the Workers’ Struggle Against Bureaucracy to Revolution in the Age of Modern Capitalism (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988), 213. Referências posteriores a essa coleção são dadas no texto.
[14] Para uma fascinante explicação autobiográfica do fenômeno veja Stan Weir, “The Informal Work Group” em Rank and File: Personal Histories by Working-Class Organizers, ed. Alice and Staughton Lynd, expanded edition (Chicago: Haymarket Books, 2011).
[15] Gottraux, “Socialisme ou Barbarie”, 120-121.
[16] De fato, parece que o Pouvoir Ouvrier nunca aprendeu realmente as lições do Tribune Ouvrière; Castoriadis se encontrou escrevendo outro artigo, dessa vez no Pouvoir Ouvrier, em que ele tentou, mais uma vez, teorizar sobre o porquê de os trabalhadores simplesmente não estarem escrevendo. Veja Cornelius Castoriadis, “What Really Matters” em PSW 2, 223-5.
[17] Claude Lefort, “Proletarian Experience.”

Este artigo foi traduzido e dividido em nove partes pelo coletivo Passa Palavra. A versão original está em Viewpoint Magazine.

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