Por Asad Haider e Salar Mohandesi
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Assim como o Pouvoir Ouvrier se viu afastar de seus objetivos originais, Information et Liaisons Ouvrières também encontrou algumas dificuldades. Ao contrário da maioria do Socialisme ou Barbarie, que afirmava a necessidade de um partido formal, integrado com um tipo de comitê central, a minoria do ILO tinha defendido uma estrutura mais descentralizada, baseada em células operárias autônomas, onde tudo poderia ser discutido abertamente. O núcleo do grupo seriam essas células, baseadas em várias empresas, e o papel do ILO. não seria disseminar ideias vindas de cima, como o Pouvoir Ouvrier logo faria, mas circular experiências, informação e ideias entre essas várias células. Ele deveria ser algo como uma rede, estabelecendo ligações entre diferentes trabalhadores, muito nas linhas do Correspondence. Considerando que o Pouvoir Ouvrier queria propagar o projeto socialista entre os trabalhadores, o ILO, Lefort mais tarde relembrou, objetivava “distribuir um boletim que fosse o mais não programático quanto possível, tentando principalmente dar uma voz aos trabalhadores e ajudar na coordenação de experiências na indústria – isto é, as experiências resultantes de tentativas de luta autônoma”.[1]
Deve-se notar que a minoria que rompeu para formar o ILO era menos unida por uma perspectiva comum e mais por uma oposição geral à maioria que pressionava por um partido. Não é uma surpresa, portanto, que este novo grupo de cerca vinte membros em breve se depararia com suas próprias diferenças internas. Uma fissura começou a aparecer entre os principais animadores do grupo: Lefort, que desejava combinar a autenticidade da voz operária com algum tipo de teoria, sentia que Simon não apenas queria abandonar quaisquer sinais de direção, orientação e linha partidária, mas mesmo de interpretação e teoria. Ele depois refletiria:
O essencial era que essas pessoas falassem de suas experiências na vida cotidiana. Em certo sentido [Simon] estava absolutamente correto. Todos nós pensávamos que havia um feitiço maléfico de Teoria separado da experiência e do cotidiano, concebido para mascará-los. Mas isso ainda era uma questão de experiência enquanto experiência real e cotidiana, não de banalidade. A experiência não é crua; ela sempre implica um elemento de interpretação e se abre à discussão. O discurso na vida cotidiana tacitamente ou explicitamente recusa outro discurso e solicita uma resposta. Para Simon, o discurso dos explorados, seja quem for, seja lá o que disser, era em essência bom. Ele sabia, como todos nós, que a burguesia dominante ou o discurso democrático pesa muito no discurso dos explorados. Este conhecimento não enfraqueceu sua convicção. O discurso dos explorados era suficiente por si só. Essencialmente, ele disse que uma pessoa fala sobre o que ela vê e sente; nós apenas temos que escutá-la ou, melhor ainda, registrar suas observações em nosso boletim, que é nossa raison d’êtrê.[2]
Lefort, que deixou o grupo em 1960 (levando-os a renomear a si mesmos como Informations et Correspondance Ouvrières, ICO), defendia que não importava o que fosse, algum tipo de interpretação sempre resvalará na enquete, mesmo se apenas na seleção de textos, na ordem em que eles serão publicados, e assim por diante. Negar isso é iludir a si mesmo.
Em outras palavras, o projeto original de enquete operária desmantelou em ambos os lados. Pouvoir Ouvrier se tornou outro jornal vanguardista, indistinguível de um jornal trotskista, tentando educar a classe trabalhadora através de versões simplificadas de teorias esotéricas desenvolvidas sem referência às experiências concretas da classe trabalhadora. Do outro lado, o ICO se enrolou por ignorar o papel dos intelectuais, apenas para encontrar-se imobilizado, perseguindo alguma experiência proletária pura, sem a mácula da interpretação teórica.
Quanto a Castoriadis, ele rompeu com seu próprio grupo em 1962. Suas reflexões sobre esses debates produziram um efeito ainda mais drástico: Castoriadis tinha chegado à conclusão de que o marxismo enquanto uma teoria tinha sido definitivamente refutado. “Capitalismo Moderno e Revolução”, inicialmente escrito entre 1959 e 1961, tinha sido publicado antes dele deixar a declaração de que suas “ideias não são necessariamente compartilhadas por todo o grupo Socialisme ou Barbarie” (226). A partir do seu trabalho como economista profissional para a OCDE, Castoriadis elaborou um balanço devastador para a teoria marxista. No contexto do boom pós-guerra, os marxistas continuavam a afirmar que o capitalismo, através do desemprego estrutural e aumento da taxa de exploração, estava empobrecendo e pauperizando o trabalhador. Mas na realidade o sistema tinha produzido pleno emprego e os salários estavam crescendo mais rapidamente do que nunca, levando a uma massiva expansão do consumo que proporcionou também uma fonte estável de demanda efetiva e representou um grande aumento no padrão de vida da classe trabalhadora. Os militantes marxistas tinham se mostrado pior do que inúteis; os sindicatos tinham se tornado “engrenagens no sistema” que “negociavam a docilidade dos trabalhadores em troca de maiores salários”, enquanto a política “realiza-se exclusivamente entre especialistas”, os supostos partidos operários dominados por burocratas (227).
Como o próprio Lefort tinha sugerido, a experiência proletária que as enquetes do Socialisme ou Barbarie tinham tentado alcançar teria que ser contraposta às determinações rígidas das leis econômicas. “Para o marxismo tradicional’, escreveu Castoriadis, “as contradições ‘objetivas’ do capitalismo eram essencialmente econômicas e a incapacidade radical do sistema em satisfazer as demandas econômicas da classe trabalhadora fazia destas a força motriz da luta de classes”. Mas por detrás desta premissa estava uma falácia “objetivista e mecanicista” que reforçava a noção de que especialistas e burocratas, que podiam entender as “leis objetivas” da história, seriam responsáveis pela análise da sociedade capitalista e pela “eliminação da propriedade privada e do mercado”. Presos nesta falácia, os marxistas tradicionais não poderiam sequer explicar suas próprias fixações; eles falharam em entender que os salários tinham aumentado porque eles eram verdadeiramente determinados pela luta de classes e que as demandas propostas pelas lutas salariais poderiam ser satisfeitas desde que não excedessem os aumentos de produtividade (227).
Como a tendência Johnson-Forest, Castoriadis argumentou que a contradição do capitalismo tinha que ser localizada na “produção e no trabalho” e especificamente nos termos da “alienação experimentada por todo trabalhador”. Mas ao contrário de seus vigorosos predecessores marxistas, Castoriadis reconheceu que essa teoria era incompatível com a linguagem do valor e rejeitou definições “econômicas” de classe. A oposição entre diretores e executantes substituiu completamente aquela entre proprietários dos meios de produção e não proprietários. Isso tinha grandes implicações para a visão do próprio desenvolvimento capitalista: a “tendência ideal” do “capitalismo burocrático” seria “a constituição de uma sociedade totalmente hierarquizada em contínua expansão onde a crescente alienação das pessoas em seus trabalhos seria compensada por um ‘crescente padrão de vida’ e onde toda a iniciativa seria dada aos organizadores” (229). Esse projeto, contudo, era propenso à contradição da racionalidade burocrática, “a necessidade do capitalismo de reduzir os trabalhadores ao papel de meros executantes e a inabilidade desse sistema funcionar se ele conseguir alcançar esse objetivo exigido”. A contradição, então, era que o “capitalismo precisa realizar simultaneamente a participação e a exclusão dos trabalhadores no processo de produção” (228). Essa tendência inerente do capitalismo não poderia “nunca prevalecer completamente”, desde que o “capitalismo não pode existir sem o proletariado” e a luta contínua do proletariado para mudar o processo de trabalho e o padrão de vida cumpria um papel fundamental no desenvolvimento capitalista: “A extração de ‘valores de uso da força de trabalho’ não é uma operação técnica; é um processo de luta amarga em que metade do tempo, por assim dizer, os capitalistas acabam sendo perdedores” (248).
A experiência dessa luta e a inadequação do reformismo dentro dela tinham despojado os executantes de qualquer fé ilusória nas contradições “objetivas” enquanto a garantia das organizações burocráticas. Agora o proletariado finalmente poderia reconhecer que o verdadeiro horizonte revolucionário era a “gestão operária e a superação dos valores capitalistas de produção e de consumo” (230).
Em outras palavras, as demandas desse movimento não estariam no nível dos salários, que representavam um substituto alienado para uma motivação movida pelo trabalho criativo. A fonte de motivação necessária para coesão social não estava mais em atividades “significantes”, mas apenas na procura de renda. Mesmo o objetivo carreirista clássico de promoção na hierarquia da burocracia levava, em última instância, a uma renda maior (276). Mas visto que a renda pessoal não pode levar à acumulação – ela não pode fazer dum trabalhador um capitalista – “a renda, portanto, apenas tem significado através do consumo que ela permite”. Visto que o consumo não pode apenas firmar-se em necessidades existentes, que estavam “no ponto de saturação, devido a aumentos constantes na renda”, os capitalistas tinham que gerar novas necessidades através da introdução de novas mercadorias e pela cultura alienada da propaganda que incorporaram na vida cotidiana (277).
No entanto, o aumento no output que era necessário para um nível constantemente crescente de consumo apenas poderia ser assegurado através da automatização da produção, a tentativa do capitalismo de “abolição radical de seus problemas de relação laboral pela abolição do trabalhador” (283). E esse é o contexto em que a “relação salarial se torna uma relação intrinsecamente contraditória”, já que uma tecnologia em rápido desenvolvimento, oposta à tecnologia estática de sociedades anteriores, impediu a administração de determinar um meio permanente para a “estabilização das relações de classe no local de trabalho” e impediu “o conhecimento técnico de se tornar cristalizado para sempre em uma categoria específica da população trabalhadora” (260). Toda a história da luta de classes dentro do modo de produção capitalista poderia ser entendida nesses termos. A introdução do maquinário no começo do século 19 foi de encontro com os atos primordiais de sabotagem industrial. Apesar da derrota de seu princípio ludista, a luta dos trabalhadores continuou dentro da fábrica, levando a introdução do trabalho por peça e dos salários baseados na produção. Agora que as “normas” de produção eram a linha principal de luta, o capitalismo contra-atacou com a administração científica taylorista das normas. A resistência dos trabalhadores à administração produziu as respostas ideológicas da psicologia e sociologia industriais, com seus objetivos de “integrar” os trabalhadores em locais de trabalho alienados. Mas era impossível, mesmo com essas medidas, suprimir o antagonismo fundamental dos trabalhadores em relação ao processo produtivo – de fato, nos países de capitalismo mais avançado, com os maiores salários e o método mais “moderno” de produção e administração, o “conflito diário no local de produção alcança proporções incríveis” (264).
De acordo com Castoriadis, a tradicional concepção marxista era incapaz de compreender esse processo histórico. Para o marxismo, “os próprios capitalistas não agem – eles são ‘levados a agir’ por motivos econômicos que os determinam tal como a gravitação governa o movimento dos corpos” (262). Mas a história provou que a classe dominante adaptou suas estratégias de acordo com sua experiência subjetiva da luta de classes, aprendendo que os salários podem comprar a docilidade dos trabalhadores, que a intervenção estatal pode estabilizar a economia e que o pleno emprego pode impedir o levante revolucionário que resultaria duma repetição de 1929 (269-90).
Então a nova critica revolucionária da sociedade tinha que se livrar da distração da teoria objetivista e denunciar diretamente os resultados irracionais e desumanos da administração burocrática e do trabalho alienado. E o desenvolvimento capitalista tinha tornado a superação da alienação definitivamente possível, visto que no nível técnico “toda a burocracia de planejamento já pode ser substituída por calculadoras eletrônicas” e no nível social a irracionalidade da organização burocrática da sociedade havia sido completamente desvelada (299).
Assim como Castoriadis fez um balanço do “marxismo tradicional”, nós podemos agora avaliar esse momento particular de ruptura. A nova teoria de classe foi conveniente para uma análise da economia planificada da União Soviéticas como um “capitalismo burocrático”, formulada em diálogo com a tendência Johnson-Forest. Castoriadis radicalizou as afirmações deles de que o capitalismo surgiu das relações no chão de fábrica, mais do que na propriedade dos meios de produção.[3] O núcleo racional de sua teoria era claro: o processo que começou com o entusiasmo bolchevique pelo taylorismo, a adoção pela burocracia russa de formas pioneiras de organização do processo de trabalho desenvolvidas pela administração e sociologia capitalistas, arruinou a filosofia da história da Segunda Internacional. O progresso das forças produtivas, sejam elas de propriedade pública ou privada, tinha se tornado um elemento da racionalidade que governava formas cada mais complexas de estratificação social.
Contudo, a nova teoria de Castoriadis estava sujeita aos mesmos pontos cegos de seus antecessores, incapaz de explicar as relações de classe em sua unidade com as relações de troca. A questão do próprio desenvolvimento tecnológico coloca questões fundamentais sobre sua análise. Enquanto Castoriadis critica corretamente a identificação do desenvolvimento das forças produtivas com o projeto político do socialismo, ele não explicou como esse processo estava situado dentro das relações sociais do capitalismo. O desenvolvimento tecnológico era uma expressão da racionalidade da administração; enquanto Castoriadis brilhantemente delineou as contradições dessa racionalidade no nível da empresa, as questões subjacentes à análise de Marx sobre todo o sistema, das quais cada volume do Capital foi dedicado, foram deixadas sem resposta. Se o desenvolvimento tecnológico era um processo desperdiçador, por que uma empresa à procura de lucro o realizaria? Como ela é capaz de fazer grandes gastos em capital fixo, em maquinário caro, e continuar reproduzindo suas condições vigentes de produção? Na análise de Castoriadis, o desenvolvimento tecnológico é na prática resultado de uma falta de motivação, que somente pode ser superada pela expansão no consumo que é permitida pelo desenvolvimento tecnológico e seu aumento de produção. Faltam-nos agora os recursos teóricos para compreender por que a produção se tornou a finalidade da existência humana ou o que “produção máxima” significaria – como se o objetivo dos capitalistas fosse possuir mais coisas e não fazer mais lucro.
Igualmente fundamental foi a questão das pré-condições básicas desse sistema. Enquanto Castoriadis explicou o capitalismo como a expressão maior da alienação e reificação, não ficou de modo algum claro de que modo estes fenômenos eram específicos do capitalismo e o que eles tinham a ver com as dinâmicas econômicas que ele se apressou em dispensar. Por trás da tentativa da administração de direcionar a força de trabalho para a produção máxima possível, estava o fato de que a administração capitalista foi compelida a explorar a força de trabalho na medida mais lucrativa – e que os trabalhadores igualmente eram compelidos a vender sua força de trabalho em troca de um salário. O que explica essa compulsão?
Se estas questões eram de algum modo incompatíveis com a análise da empresa capitalista, isso não apenas invalidaria o marxismo – isso faria a natureza capitalista da empresa inexplicável. Mas ao começar pelas enquetes sobre a transformação do processo de trabalho e mudando para uma explicação histórica da lógica do desenvolvimento capitalista, Socialisme ou Barbarie serviu como um fundamento indispensável.
Referências
[1] “Interview with Lefort,” 179.
[2] “Interview with Lefort,” 183.
[3] Veja “The Relations of Production in Russia” em Political and Social Writings, Volume 1, 1946-1955: From the Critique of Bureaucracy to the Positive Content of Socialism, trans. and ed. David Ames Curtis (Minneapolis: University of Minnesota Press, 1988), e nosso comentário em “ Deviations, Part 1: The Castoriadis-Pannekoek Exchange.”
Este artigo foi traduzido e dividido em nove partes pelo coletivo Passa Palavra. A versão original está em Viewpoint Magazine.
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