Por Fagner Enrique

1. A questão urbana

A questão urbana passou a ser objeto de discussão no Brasil num contexto de complexificação da vida urbana, os anos 1960 e 1970, marcado pela explosão demográfica, pela deterioração das condições de vida nas grandes cidades e pela provisão seletiva de serviços públicos de infraestrutura, transporte, educação, saúde, etc. Foi nesse contexto que apareceram os movimentos sociais urbanos, enquanto formas de resistência popular ao Estado autoritário e ao capitalismo e enquanto atores importantes do processo de redemocratização.[1] Enfim, a questão urbana diria respeito, em suma, ao complexo de agitações políticas decorrentes da radicalização das contradições urbanas, contradições estas que emanam da desigualdade no acesso ao consumo coletivo e das exigências capitalistas de crescimento, conforme colocado por Castells.[2]

Os movimentos sociais urbanos, esperançosos de que o PT pudesse renovar as formas de participação política, apostaram alto na construção do partido a partir de meados dos anos 1980, no contexto de uma estratégia basista de mobilização. Entretanto, o resultado foi outro e, da renovação da participação política pela base, evoluiu-se para o atrelamento dos movimentos sociais urbanos a canais de participação e estruturas estatais de negociação, levando à sua cooptação e enfraquecimento e ao estabelecimento de uma nova modalidade de clientelismo. Além disso, as políticas dos governos petistas, colocadas em prática a partir dos anos 2000, revelaram-se insuficientes para sanar os problemas urbanos.[3] Foi aí que entraram as mobilizações de 2013, que levaram os movimentos sociais urbanos ao centro do protagonismo das lutas sociais no Brasil: esse protagonismo vinha sendo exercido, nas duas décadas anteriores, por mobilizações ocorridas no campo, com especial ênfase para as lutas envolvendo o MST.[4]

As novas lutas foram uma resposta espontânea, autônoma e direta a um campo político profundamente estagnado: a falta de uma política de reforma urbana satisfatória, apesar de alguns relativos avanços, como o Estatuto da Cidade e o Estatuto da Metrópole, afetou negativamente a possibilidade de ascensão social de milhões de jovens, frustrando expectativas e negando oportunidades de acesso à cidade. As demandas expressas nas manifestações de 2013 trouxeram à tona um conjunto de problemas que assolam há tempos as grandes cidades brasileiras — principalmente o problema do transporte coletivo caro e de má qualidade, numa sociedade altamente individualista e que privilegia o transporte individual, que, por sua vez, torna mais graves as condições de vida e a mobilidade urbanas. E, na verdade, a política urbana da era petista não foi apenas insatisfatória: os megaeventos, as privatizações do espaço urbano, as operações consorciadas, etc., somaram novos problemas aos velhos. Estavam criadas, portanto, condições para que às cidades neoliberais, voltadas prioritariamente para os meganegócios, se opusessem as cidades rebeldes, marcadas pela resistência da classe trabalhadora ao cotidiano opressivo do espaço urbano.[5] À ousadia demonstrada pela classe trabalhadora num novo ciclo de greves, somar-se-ia a sua insurgência contra um cotidiano urbano insuportável. Num cenário internacional marcado pela ascensão de novos movimentos e mobilizações antissistêmicos a partir de 2011, e num cenário nacional caracterizado pela presença de grupos pautando a questão urbana e a questão do transporte coletivo — o que remontava às experiências da Revolta do Buzu[6] e da Revolta da Catraca,[7] por exemplo —, torna-se compreensível a explosão de manifestações e revoltas de 2013.

2. O precariado

O precariado é o produto do colapso de uma forma anterior de organização da classe trabalhadora, não apenas a sua organização por instituições exógenas — a empresa fordista, por exemplo — mas também a sua organização por instituições endógenas — o partido, o sindicato, etc. É uma parcela muito jovem da classe trabalhadora, sem experiência política institucional. São trabalhadores com escolarização mais longa que os da geração anterior e que conseguem elaborar e ter acesso a um conjunto de informações mais sofisticado, sobretudo por meio de novos instrumentos tecnológicos. Ele possui qualificações mais elevadas que as dos trabalhadores da geração anterior, mas paradoxalmente está submetido a condições mais degradadas e degradantes de trabalho, o que o coloca numa “condição de urgência”: ele “necessita urgentemente [de] mobilizar-se em direção à garantia dos seus direitos, da aplicação dos seus direitos, da expansão dos seus direitos, da melhoria das suas condições de trabalho, dos seus salários”, explicou Ruy Braga numa entrevista concedida a Felipe Demier.[8] É uma juventude que de certa forma deseja mais que a geração anterior: ela espera que o modelo de desenvolvimento forneça aquilo que promete, não se contenta com o pouco, inclusive do ponto de vista político, e por isso desafia a representação dos políticos tradicionais. É uma geração de trabalhadores que tem uma elevada expectativa de consumo, que já nasceu num mundo mercantilizado e que percebe que seu acesso a esse mundo é sistematicamente bloqueado pelos baixos salários que recebe, pelas péssimas condições de trabalho a que está sujeita, pela alta rotatividade e pela privação de direitos trabalhistas. Por isso, o precariado está sujeito a uma frustração generalizada. E a isso vêm somar-se as péssimas condições de vida nas periferias das grandes cidades. “Isso tudo”, afirma Braga, “produz um efeito explosivo”.[9]

O precariado está permanentemente sujeito a uma condição de subproletarização (trabalho parcial, temporário, subcontratado, terceirizado, vinculado à economia informal, sujeito à desregulamentação, etc.) e é permanentemente ameaçado pela retirada de direitos sociais e pela falta de proteção e expressão sindicais. Está sujeito, enfim, a uma individualização extrema da relação salarial.[10] A modalidade mais extrema de precarização à qual está sujeito atualmente é a uberização, “um novo estágio da exploração do trabalho” que “consolida a passagem do estatuto de trabalhador para o de um nanoempresário-de-si permanentemente disponível [para o] trabalho” e que “retira-lhe garantias mínimas ao mesmo tempo [em] que mantém sua subordinação”.[11]

3. A luta pelas Jornadas de Junho

Desde o início das manifestações contra o aumento das tarifas do transporte coletivo em várias cidades brasileiras, seu núcleo duro, suas lideranças e sua vanguarda mais aguerrida, escreveu Plínio de Arruda Sampaio Jr., eram formados por “estudantes que trabalham e trabalhadores que estudam”. Ainda segundo o mesmo autor, da “classe média remediada” para baixo, praticamente todos os segmentos da sociedade aproveitaram a oportunidade para expressar seu descontentamento com o status quo.[12] Os manifestantes nas ruas eram mobilizados por grupos de esquerda, especialmente movimentos sociais urbanos componentes do universo dos movimentos antissistêmicos. Havia também uma presença expressiva de estudantes universitários e secundaristas, de trabalhadores sindicalizados e de outros grupos.[13] A linha de frente dos protestos era muitas vezes composta por militantes anticapitalistas que, respondendo à violência policial e com a orientação de proteger os demais manifestantes, aplicavam a tática Black Bloc,[14] exercendo uma violência simbólica e performática, mas também uma violência de autodefesa, que não deixava de ser uma “(violenta) resposta para a violência [a] que cotidianamente são submetidos estes jovens […] precarizados”.[15] Por um tempo a soberania das ruas tornou-se uma soberania em disputa. Os movimentos e grupos de esquerda, o MPL entre eles, mobilizando e depois sendo levados por uma massa proletária submetida à hiperprecarização, criavam condições para uma ressignificação do espaço público, conforme escreveu Marcelo Lopes de Souza, o qual deixou de ser “‘público’ de maneira puramente formal, na condição de espaço de coletivo quotidiano gerido e mantido pelo Estado” para ser “público em sentido forte, sociopoliticamente”.[16]

Nessa primeira fase das manifestações, esses jovens trabalhadores depararam com uma oposição quase que generalizada de um amplo espectro ideológico-partidário, do PT ao PSDB.[17] Além disso, os manifestantes contaram com o desprezo generalizado da imprensa. A cobertura da mídia — da televisiva à impressa, do Estadão à Folha de S.Paulo — produziu uma narrativa que criminalizava os manifestantes, representando-os como vândalos ou baderneiros que entravam em confronto com a polícia e prejudicavam o direito de ir e vir da população. Isso era feito em prejuízo de uma discussão em torno da questão da tarifa do transporte coletivo.[18] Já a polícia, logicamente, agia com muita violência. O problema é que isso gerou um efeito contrário ao pretendido. Segundo Felipe de Queiroz Braga, “será a tentativa de combater o movimento que dará mais força a ele, pois estimulará a resistência dos participantes e gerará laços de solidariedade da população em geral com os jovens reprimidos nas ruas”.[19] Segundo o autor, a solidarização da população para com os manifestantes fez aumentar bruscamente a quantidade de pessoas presentes nos protestos, ao que correspondeu, por outro lado, uma brusca inversão na cobertura feita pela imprensa, não apenas devido ao apoio popular às manifestações, mas também porque os próprios jornalistas passaram a ser vitimados pela brutalidade policial.[20]

A mídia, todavia, não passou a apoiar a pauta original dos protestos, é claro: pelo contrário, ela buscou pautá-los à sua maneira, substituindo uma pauta objetiva e progressista — contra o aumento da tarifa do transporte coletivo — por uma pauta genérica e de viés conservador — contra a corrupção. E os manifestantes que antes eram violentos, segundo a narrativa midiática, tornavam-se agora manifestantes pacíficos, muito embora seus atos violentos — de autodefesa ou simbólicos — estivessem sendo apoiados pela maioria da população; veja-se, por exemplo, o constrangimento por que passou o jornalista José Luiz Datena ao vivo, enquanto tentava manipular uma “pesquisa de opinião” em seu programa, que questionava aos telespectadores se eles apoiavam “protestos com baderna”.[21] [22] Estava iniciada a luta pelas Jornadas de Junho e, de então em diante, seu significado e principalmente sua direção seriam disputados pelos mais distintos e antagônicos grupos sociais.

Como vimos no primeiro artigo desta série, havia um conjunto muito vasto de grupos sociais descontentes com o PT no poder. Os capitalistas já não viam muita utilidade num partido que perdera aquele que era seu principal atrativo, a tutela que exercia sobre a classe trabalhadora: tais amarras, como vimos, vinham sendo rompidas. As políticas econômicas do PT tinham, claro, favorecido o desenvolvimento interno e a expansão externa do capitalismo brasileiro, mas, no momento em que o precariado tomou as ruas e desafiou insistente e corajosamente as forças policiais, a economia já não ia tão bem. Mais ainda: seriam necessários ajustes, ajustes estes que penalizariam ainda mais uma já precarizada classe trabalhadora e que, patrocinados pelo PT, alheariam-no mais ainda de trabalhadores cada vez mais dispostos à contestação e ao enfrentamento. Por outro lado, as camadas médias tradicionais, ao lado daquela nova classe média que vestia a camisa do empreendedorismo e da meritocracia, estavam sujeitas agora — à beira do abismo da desaceleração econômica e da recessão, à beira da queda para a subproletarização — a engrossar o caldo do ódio contra as esquerdas, estes “idiotas úteis” manipulados por políticos corruptos.

“Uma massa amorfa […] vestindo bandeiras do Brasil”, pessoas “com as caras pintadas”, que “não sabiam para aonde ir, o que fazer e nem [com] o que se indignar”, começou a hostilizar os manifestantes de esquerda, chamados de “vermelhos”, “comunistas”, “petistas corruptos”. Essa massa amorfa passou, inclusive, a absorver e ressignificar à direita as palavras de ordem que vinham sendo levantadas nas manifestações: “vem pra luta” significava agora enfrentar o PT, “quem não pula quer tarifa” significava agora “quem não pula é petista”, “vem pra rua, vem (contra a tarifa)” transformou-se em “vem pra rua, vem (contra o governo)”. E as críticas à TV Globo e às demais emissoras de televisão, cuja cobertura inicial das manifestações tinha por objetivo criminalizá-las, deviam-se agora ao fato de tais emissoras serem “esquerdistas” e fazerem o “jogo do governo”. E, para além dessa massa amorfa, passaram também a integrar as manifestações e a hostilizar os manifestantes de esquerda e os trabalhadores por eles mobilizados skinheads e agentes provocadores de direita.[23] A repressão policial passava a contar agora com a colaboração de protomilícias fascistas. Digo protomilícias porque faltava ainda, como ainda falta hoje, algo que lhes desse unidade, que lhes arregimentasse de maneira centralizada, embora isso pareça estar cada vez mais próximo de se concretizar.[24]

Mas o problema não se resume aos caras pintadas, aos batedores de panelas e aos skinheads. Pouco tempo depois, em 2014, as ruas passaram a ser ocupadas também por movimentos de direita — MBL, Vem Pra Rua, etc. — que, pela estrutura que têm à sua disposição, aparentam ser muito bem financiados por quem quer que queira pautar o que se vai à rua para reclamar. Além desses movimentos, completam ainda o quadro manifestações patrocinadas por entidades patronais — a campanha Não Vou Pagar o Pato da FIESP, por exemplo — e manifestações de diversos grupos de direita e extrema-direita, em muitos casos exigindo uma “intervenção militar”. Tanto uns quanto os outros têm por objetivo canalizar a revolta do precariado das condições às quais está sujeito para um rumo que o afaste do anticapitalismo. Curiosamente esses movimentos não são reprimidos como os movimentos de esquerda e as mobilizações de trabalhadores. Pior: à repressão imediata dos trabalhadores acompanhada pela presença nas ruas daquela massa amorfa, que constitui a principal matéria-prima do fascismo, seguiu-se uma preocupação, permeando todos os poderes e diversos órgãos governamentais, com a blindagem do Estado e das empresas, não contra pressões vindas da multidão conservadora, mas do precariado.

Leia as demais partes desta série: parte 1, parte 2 e parte 4.

Notas

[1] Rafael de Souza, Cenários de protesto: mobilização e espacialidade no ciclo de confronto de junho de 2013, Doutorado em Sociologia, São Paulo, Universidade de São Paulo, 2018, pp. 35-36 e 38-40. Disponível aqui.
[2] Citado em idem, ibidem, p. 37.
[3] Idem, ibidem, pp. 39-41 e 45.
[4] Marcelo Lopes de Souza, “Cidades brasileiras, junho de 2013: o(s) sentido(s) da revolta (1ª parte)”, Passa Palavra, 9 de julho de 2013. Disponível aqui .
[5] Rafael de Souza, ibidem, pp. 45-47.
[6] Manolo, “Teses sobre a Revolta do Buzu”, Passa Palavra, 25 de setembro de 2011. Disponível aqui.
[7] Leo Vinicius, A guerra da tarifa, São Paulo, Faísca Publicações Libertárias, 2005. Disponível aqui.
[8] Ruy Braga e Felipe Demier, “Conversa com Ruy Braga”, Em Pauta, nº 36, vol. 13, 2015, p. 326. Disponível aqui.
[9] Idem, ibidem, pp. 326-327.
[10] Ricardo Antunes, Adeus ao trabalho: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade no mundo do trabalho, 15ª ed., São Paulo, Cortez, 2011, pp. 49-50.
[11] Ludmila Costhek Abílio, “Uberização do trabalho: subsunção real da viração”, Passa Palavra, 19 de fevereiro de 2017. Disponível aqui.
[12] Citado em Felipe de Queiroz Braga, O rasgar do véu: as manifestações de junho de 2013 e as contradições históricas, Mestrado em Ciências Sociais, São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016, p. 141. Disponível aqui.
[13] Idem, ibidem, p. 141.
[14] Idem, ibidem, p. 148.
[15] Mauro Iasi, citado em idem, ibidem, p. 161.
[16] Marcelo Lopes de Souza, ibidem.
[17] Felipe de Queiroz Braga, ibidem, p. 149.
[18] Idem, ibidem, p. 144.
[19] Idem, ibidem, p. 151.
[20] Idem, ibidem, pp. 152 e 156.
[21] Idem, ibidem, pp. 157-158.
[22] Marcio Bernardi, A multiplicidade de junho de 2013: uma análise a partir dos seus relatos, Mestrado em História, São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017, pp. 49-52. Disponível aqui. A “consulta” feita por Datena ao público pode ser conferida aqui.
[23] Passa Palavra, “20 de junho: a revolta dos coxinhas”, Passa Palavra, 21 de junho de 2013. Disponível aqui.
[24] Santiago Assunção, “Aliança pelo Bolsonaro”, Passa Palavra, 23 de novembro de 2019. Disponível aqui.

As obras que compõem a ilustração deste artigo são do artista catalão Antonio Saura.

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