Por Ralf Ruckus

Este artigo sobre as políticas populacionais da China e a recusa das mulheres em serem máquinas de parir para o programa de desenvolvimento do PCCh [Partido Comunista da China] apareceu pela primeira vez no hebdomadário suíço WOZ na Alemanha em 23 de janeiro de 2020. Nesse meio tempo, a “crise do coronavírus” atingiu (não apenas) a China, e não é suficientemente claro se a política oficial de limite aos nascimentos vai ser derrubada este ano. A luta das mulheres contra as políticas populacionais do Estado e por mais controle sobre suas vidas continua e pode inclusive se intensificar frente ao aumento da interferência estatal na vida das pessoas.

O regime do PCCh tenta evitar uma crise demográfica e pede que as mulheres do país tenham (mais) filhos – sem nenhum sucesso. É a própria ordem familiar patriarcal que a mulheres cada vez mais criticam.

Observadores acreditam que a Política do Filho Único vai ser derrubada na primavera. Para as mulheres na China, relaxar o rígido controle sob o planejamento familiar iria significar um ponto de inflexão.

A direção do PCCh está tentando evitar uma crise demográfica. De acordo com dados publicados recentemente pelo National Statistic Bureau [Birô Nacional de Estatísticas], o número de nascimento caiu em 2019 para o menor nível em décadas. A taxa de fertilidade está tão baixa que a população em breve vai encolher substancialmente. A força de trabalho ou população trabalhadora já está em queda há anos.

Muitas mulheres se recusam a ter mais de um filho, e mesmo a introdução da Política de Dois Filhos em 2016 não levou ao aumento desejado dos nascimentos. Em Birth Strike. The Hidden Fight Over Women’s Work [Greve de nascimentos. A luta escondida pelo trabalho das mulheres], a autora Jenny Brown descreve o fenômeno de uma “greve de nascimentos” como uma reação das mulheres a “intoleráveis condições de trabalho.” . Recentemente, autoridades locais chinesas tentaram quebrar esta “greve” – até agora sem sucesso.

O que está em jogo é nada menos do que o futuro do país: sem o boom de nascimentos desejado pelo Estado, tanto a falta de força de trabalho quanto o envelhecimento da sociedade podem se agravar. Isto poderia sufocar o crescimento econômico.

Regulações Rígidas

A mudança esperada na política de nascimentos do Estado e a demanda por mais crianças traz uma ironia histórica. No final da década de 1950 e início da de 1960, parte do PCCh também reivindicou que as mulheres tivessem muitos filhos – na época para a construção do socialismo. No entanto, a partir da década de 1970, a direção do partido tentou cada vez mais diminuir o crescimento populacional assim como as suas consequências econômicas. Assim, quadros locais ficaram responsáveis pelo cumprimento da quota prescrita de bebês.

Em meados da década de 1970, a direção do partido iniciou uma campanha para que os casamentos ocorressem mais tarde, que os períodos entre os nascimentos fossem maiores e que houvesse menos nascimentos. Subsequentemente, a taxa de fertilidade caiu drasticamente: de 5,7 (1970) para 2,6 (1980). No mesmo período, a taxa de natalidade caiu de 33,5 por mil habitantes para 18,2.

No final da década de 1970, o regime iniciou reformas econômicas abrangentes, dissolveu os vilarejos comunas e distribuiu as terras para as famílias camponesas. No entanto, após estas mudanças, a direção do partido temia que os camponeses se aproveitassem do relaxamento do controle estatal para terem mais filhos novamente. Regulamentações estritas foram introduzidas em 1979, as assim chamadas Políticas do Filho Único, e elas foram rigidamente aplicadas – através de campanhas, abortos e esterilizações forçadas, controle de métodos contraceptivos e repressão.

Foi um largo sucesso nas cidades, pois transgressões podiam levar a pesadas multas, a perda do emprego ou mesmo do direito de viver na cidade. Além disso, as regulações foram aceitas nas cidades devido ao sistema de assistência social administrado pelo Estado, já que para esses sistemas o número de crianças (e seu sexo) era menos importante. Por outro lado, nas áreas rurais, as famílias eram muito mais resistentes à nova regra desde o início – especialmente se o primeiro nascimento fosse uma garota. De acordo com as tradições patriarcais da China, apenas os filhos homens continuam a família. Filhas se tornam parte da família do marido depois do casamento e estão “perdidas” para a própria família como força de trabalho e apoio para os idosos.

O documentário “Nação do Filho Único” feito pela diretora sino-estadunidense Wang Nanfu mostra como quadros estatais e equipes médicas esmagaram a resistência contra a regra de forma sangrenta. Os entrevistados por Wang no interior descrevem como, desde a década de 1980, as pessoas não apenas foram punidas e tiveram suas casas destruídas, mas algumas mulheres foram brutalmente forçadas a fazer abortos e esterilizações tardias. Ao mesmo tempo, camponesas mataram muitos fetos e bebês recém-nascidos ou os abandonaram em algum lugar.

Em meados da década de 1980, o regime reagiu contra o descontentamento e a resistência no interior. Como tinha medo de perder o controle sobre os vilarejos, ele permitiu que famílias rurais tivessem um segundo filho se o primeiro fosse uma menina. O regime também introduziu medidas excepcionai para “minorias”, logo o termo ‘Política do Filho Único” é na verdade enganador. A restrição de se ter apenas um filho no final se aplicou a apenas um terço das mulheres da China.

Efeitos Inesperados

Mesmo que o regime diga que “salvou” 400 milhões de nascimentos, o “sucesso” da Política do Filho Único é no mínimo questionável. Por exemplo, taxas de fertilidade já tinham caído significativamente antes da introdução da política. Em países próximos, como a Coreia do Sul ou Tailândia, as taxas caíram de forma similar sem a necessidade de medidas coercitivas – através da crescente urbanização, melhor educação e melhorias econômicas.

A partir dos anos 2000, os efeitos indesejáveis da Política do Filho Único se tornaram cada vez mais claros. Abortos relacionados ao sexo e feminicídios levaram a um excesso de homens. A distribuição de nascimentos está em torno de 115 a 130 meninos para cada 100 meninas, dependendo da província. Em 2017, havia 32,7 milhões de homens a mais do que mulheres na China. Em 2010, havia aproximadamente 13 milhões de “crianças ilegais” – cerca de um por cento da população total. Elas não foram registradas para evitar multas, mas sendo ilegais não tem direito a receber educação e benefícios sociais, entre outros direitos.

Nos anos recentes, o número de nascimentos caiu significativamente, o que também é consequência do número decrescente de mulheres em idade fértil. Em 2019 houve 14,6 milhões de nascimentos, comparado a 23,9 em 1990. A taxa de fertilidade foi de apenas 10,5 a cada mil habitantes, alcançando o nível mais baixo desde 1949. Devido ao baixo número de nascimentos, uma fonte crucial do crescimento econômico pode secar: força de trabalho jovem (e de preferência “barata”).

A população trabalhadora também está diminuindo porque o regime não permite que um número significativo de trabalhadores migrantes entre no país. Além do mais, o regime não se arriscou ainda a aumentar a idade de aposentadoria (60 anos para homens e entre 50 a 55 anos para mulheres). Hoje em dia o crescente envelhecimento da população é exacerbado pelo aumento da expectativa de vida na China. Em 2017, a proporção de pessoas acima de 60 anos é de cerca de um sexto, em 2030 espera-se que seja por volta de um quarto e em 2050 cerca de um terço. Cada vez menos jovens tem que sustentar mais idosos, sem um sistema adequado de aposentadoria – especialmente em áreas rurais.

O Sexismo do Regime

Durante anos a direção do PCCh tentou adaptar sua política populacional. Em 2013, ela permitiu que pais que viessem de famílias com filho único pudessem ter dois filhos. Em 2016, ela introduziu a Política dos Dois Filhos, e ela esperava que até 2020 a limitação fosse abolida completamente uma vez que todas as medidas anteriores para aumentar o número de nascimentos tinham em última instância falhado. Em algumas áreas, líderes locais do PCCh lançaram campanhas para aumentar o número de nascimentos e apelaram para o “dever patriótico” das mulheres chinesas darem mais filhos à “nação”. Já em 2018, o Diário do Povo escreveu: “O nascimento de um bebê não é apenas um assunto privado da família mas um assunto de Estado.” Autoridades locais estão tentando resolver a falta de crianças através de incentivos materiais, auxílio para os pais, propaganda e algumas restringiram o direito ao aborto.

A direção do PCCh continua a ver as mulheres como máquinas de dar à luz e prestar cuidados a serviço do desenvolvimento do regime. Sob a direção do secretário geral Xi Jinping, os “valores do confucionismo”, i. e., conceitos sociais sexistas, são enfatizados, casamento e família são promovidos como pilares centrais da sociedade e mulheres são cada vez mais presas a papéis “tradicionais” de gênero e cuidados da família – mesmo pela Federação de Mulheres oficial. Isto é reforçado pela rígida moral heteronormativa propagada pela mídia estatal.

Na economia, a taxa de emprego feminina, que estava em torno de 73% em 1990, caiu para cerca de 60% em 2018. Além do local de origem (rural ou urbano), gênero é o principal fator para desigualdade de renda, que é muito grande na China. Em 2018, mulheres recebiam em média apenas 78% do que homens recebiam, e ainda podem ser discriminadas para vagas de emprego pois podem se ausentar devido a gravidez ou trabalho reprodutivo.

As pressões patriarcais sobre as famílias permanecem: mulheres jovens devem se casar por volta dos 20 anos e ter filhos para “continuar a tradição familiar” – e isto significa acima de tudo dar à luz a um filho. Ao mesmo tempo, mulheres solteiras acima dos 27 anos são estigmatizadas como “sobras”. E mulheres ainda são frequentemente expostas à violência sexual todos os dias na China.

Formas de Rebeldia

Resistência aberta e organizada das mulheres na China é perigoso. Sempre que militantes feministas defendem os direitos das mulheres fora dos canais oficias de representação do Estado e se defendem contra, por exemplo, violência sexual, o Estado as reprime severamente. Em 2015, as “Cinco Feministas” foram presas depois de terem planejado ações contra o assédio sexual de mulheres. Em 2018, a plataforma online “Nüquan Zhisheng” (女权之声; vozes feministas) foi tirada do ar depois de lançar a campanha #metoo. [#eutambém]

Também há outras formas de rebeldia. Muitas mulheres na China questionam a ordem familiar confucionista e tentam melhorar sua situação ruim “casando com alguém de círculos superiores”, adiam o casamento, optam por permanecem solteiras ou se divorciam rápido se tem problemas nos seus relacionamentos. O número de casamentos registrados caiu de 13,5 milhões me 2013 para 10,1 milhões em 2018, o número de divórcios aumentou significativamente, de 1,3 milhões em 2003 para 4,5 milhões em 2018, sendo a maioria dos pedidos feitos por mulheres.

Acima de tudo, muitas mulheres jovens na China não querem servir como máquinas reprodutivas e dar à luz e cuidar de (duas) crianças. Contextos sociais e geográficos tem um importante papel aqui: as (relativamente poucas) mulheres da classe média urbana podem bancar uma segunda criança, mas as (muito mais numerosas) mulheres migrantes e das zonas rurais não seriam capazes de fazê-lo ou teriam muitas dificuldades devido aos altos custos com moradia, educação e saúde.

Muitas não querem ter mais de um filho de qualquer jeito, pois não querem ter o trabalho de cuidar de uma segunda criança – ou somente têm o segundo filho depois de terem cuidado da sua carreira e empregos. Isto explica porque não houve qualquer boom de nascimentos [baby boom] depois do afrouxamento do controle dos nascimentos e das campanhas por mais filhos. O regime do PCCh vai continuar a ter problemas com a greve dos nascimentos e a resistência das mulheres.

Traduzido do inglês para o Passa Palavra por Marco Túlio Vieira. As ilustrações do corpo do texto são conhecidas como “nianhua”, muito populares durante as celebrações do Ano-Novo Chinês.

 

2 COMENTÁRIOS

  1. Ju,
    Obrigado pelos apontamentos, os lapsos da tradução foram corrigidos.

    Atenciosamente,
    Passa Palavra

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