Por Espaço Cultural Mané Garrincha

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Atualmente, é possível prolongar a vida de pacientes terminais, mas não sem dores e sofrimentos atrozes, que crescem paralelamente ao adiamento da morte. É o que a burguesia e seus comitês gestores (Estados) têm feito com o modo de produção capitalista. Escrevem o próprio destino tentando fugir dele. À medida que trabalhadores são substituídos por máquinas, para reduzir custos e enfrentar a concorrência, caem as taxas de lucro, porque só o trabalho vivo gera valor. Emparedado pela queda tendencial das taxas de lucro, o capital se torna cada dia mais fictício e menos produtivo. Ou seja, as taxas de lucro se sustentam cada vez mais na especulação financeira do que na produção concreta. Mas quando os detentores de ações e outros papéis percebem que a profecia pode não se realizar, quando a ficção se afasta perigosamente da realidade, ameaçando o reino sacrossanto das taxas de lucro, o Estado é chamado a intervir: injeta recursos na economia, compra títulos podres, evita a quebradeira generalizada. O resultado é o endividamento crescente. Na penúltima grande crise do capitalismo, em 2009, a dívida do governo estadunidense correspondia a 85,2% do PIB; um ano antes da explosão da crise atual, em 2019, a dívida do governo estadunidense correspondia 108,2% do PIB. No Brasil os números são: 59,2% (em 2009) e 75,7% (em 2019)[1]. Com a pandemia da Covid-19 e a crise do capitalismo, em 2020, o endividamento crescerá mundialmente, inclusive para empresas e famílias.

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O capitalismo se sustenta aumentando suas contradições, ganha fôlego sufocando a classe trabalhadora. Chico Science & Nação Zumbi (A Cidade – 1994): “o de cima sobe e o debaixo desce”. As dores e os sofrimentos atrozes causados pelo adiamento da morte do capitalismo recaem sobre os trabalhadores. Hoje: injeção de recursos na economia, compra de títulos podres, contenção da quebradeira. Amanhã: ajuste fiscal, retirada de direitos trabalhistas, redução de despesas sociais. O capital se concentra, as pessoas são lançadas no proletariado e forçadas a venderem suas forças de trabalho, quando encontram compradores. As máquinas de propaganda chapa branca inventam eufemismos para disfarçar o absurdo: colaborador, empreendedor, autônomo… Durante a crise capitalista e a pandemia da Covid-19, entre março e julho, 73 bilionários latino-americanos, somados, aumentaram seus patrimônios em 17%, US$ 48,2 bilhões, o que corresponde a 38% dos pacotes econômicos dos governos da região. A quem será que se destinam tais recursos? No mesmo período e na mesma região, surgiram 8 novos bilionários e 52 milhões de novos pobres[2]. Nos Estados Unidos da América, a autoproclamada terra da liberdade, 40 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza[3].

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Para minimizar a queda das taxas de lucro, o capital intensifica a exploração sobre os trabalhadores e os recursos naturais, comprometendo estes e aqueles. No Brasil, o desmatamento da Amazônia cresceu 34% em relação ao ano anterior[4]. O negacionismo dos que não creem em mudanças climáticas é comparável, em insensatez, ao afirmacionismo dos que consideram possível preservar o meio ambiente mantendo o capitalismo. Para piorar, ao derrubar florestas para expandir o agronegócio, o capital pode forçar vírus e microorganismos a adotar bois, porcos, frangos e até seres humanos como hospedeiros. Irracionalidade capitalista escancarada. Lucros privados. Prejuízos públicos. Um estudo recente informa que, com 2% do que o mundo vai gastar com a Covid-19, seria possível prevenir futuras pandemias[5].

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O capitalismo não morrerá de velho. Somente a ação revolucionária da classe trabalhadora poderá enterrar o modo de produção caduco, que se arrasta há décadas. Por um lado, empobrecimento generalizado, por outro, concentração de capital. Na média, caem as taxas de lucro, mas há setores que aumentaram o faturamento, apesar e graças à crise e à pandemia. Frigoríficos, supermercados, empresas de tecnologia, plataformas digitais aumentaram os lucros, o que só é possível porque cresceu, paralelamente, a taxa de exploração. Se a alternativa revolucionária da classe trabalhadora não se colocar, a sociabilidade do capital tende a se reposicionar em patamares rebaixados. O sonho de consumo da burguesia é a gestão just in time de mão de obra, contratando trabalho por demanda e, de preferência, por meio de plataformas digitais, sem legislação trabalhista.

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As contratendências à queda das taxas de lucro se revelam cada vez menos eficazes. Para ganhar algum fôlego de curto prazo, seria necessário desvalorizar e/ou destruir capital. Mas nem a desvalorização de capital fictício nem a destruição de capital produtivo são opções para a burguesia, que aposta exclusivamente na ampliação da exploração sobre a classe trabalhadora. O resultado é o empobrecimento generalizado e o avanço da barbárie. No México, o governo populista de Lopez Obrador ameaça os povos originários, as florestas e os animais com a construção do projeto “Trem Maia”, enquanto a guerrilha zapatista resiste. Na Colômbia, para conter a expansão de grupos paramilitares apoiados pelo exército, a guerrilha ELN ampliou as operações por regiões que antes as FARCs, hoje desmobilizadas, patrulhavam. Apesar da repressão, das torturas e das mortes (976 lideranças sociais assassinadas em quatro anos[6]), combativos movimentos sociais enfrentam o governo ultraconservador da Colômbia. Nos Estados Unidos milhões foram às ruas para denunciar a violência racista e os assassinatos praticados pela polícia contra o povo negro. No primeiro semestre de 2020, em São Paulo, cresceram os homicídios e a letalidade policial bateu recorde[7]. A pergunta é: até quando? Quanto tempo vai demorar para organizarmos a autodefesa em terras brasileiras?

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A partir dos anos 1970, o capital respondeu às lutas da classe trabalhadora e à queda das taxas de lucro com um movimento triplo: reestruturação produtiva da economia, globalização dos mercados e neoliberalismo na política. Novas tecnologias aplicadas à produção permitiram reduzir a mão de obra empregada, aumentar os intercâmbios globais e, por deslocarem a correlação de forças a favor do capital, ajudaram a viabilizar as políticas de arrocho, desregulamentações trabalhistas, ajuste fiscal em prejuízo de despesas sociais. There Is No Alternatives – Tina – era o mantra dos apologéticos. O resultado é conhecido: concentração de renda, desigualdade social, guerras, empobrecimento, frustração, violência, regressão. O arranjo representado pela reestruturação produtiva, globalização e neoliberalismo chacoalhou com a crise de 2008. Os Estados evitaram a quebradeira generalizada aprofundando o endividamento e forjando as condições para uma crise de maiores proporções, que chegou em 2020. Jair Bolsonaro e outras aberrações são as falsas alternativas de um modo de produção caduco: contra o proselitismo internacionalista (Barack Obama, Bill Clinton), o proselitismo nacionalista (Donald Trump, Boris Johnson). É o tal prolongamento da vida do paciente terminal, com dores e sofrimentos atrozes, que crescem paralelamente ao adiamento da morte. O capital é cada dia mais multinacional e se mantém ampliando suas contradições. A resistência da classe trabalhadora precisa ultrapassar fronteiras e só se sustentará radicalizando-se. No caso brasileiro, o avanço das lutas sociais passa necessariamente pelo estreitamento dos laços com os povos em luta da América Latina; e passa, necessariamente, pela afirmação de lutas históricas travadas no país e no mundo: de Canudos a Palmares; dos anarcossindicalistas do início do século passado aos que resistiram à ditadura empresarial-militar de 1964; da Revolução Russa aos que protestam, atualmente, contra o racismo, a violência policial, o pauperismo. Afirmar o que precisa ser afirmado, superar o que precisa ser superado. As lutas da classe trabalhadora têm passado, presente e futuro. Fora da história não há avanço possível para lutas proletárias. De onde viemos, onde estamos, para onde vamos.

Artes de Cléo e Custódio Ferreira
Artes de Cléo e Custódio Ferreira

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Oswald de Andrade (O Rei da Vela – 1933): “Há um momento em que a burguesia abandona a sua velha máscara liberal. Declara-se cansada de carregar nos ombros os ideais de justiça da humanidade, as conquistas da civilização e outras besteiras! Organiza-se como classe. Policialmente.” A burguesia foi revolucionária nos primórdios do capitalismo: rompeu fronteiras, enterrou dogmas, promoveu o desenvolvimento do conhecimento e das forças produtivas. Mas, em países atrasados, com histórico colonial e escravista, como Brasil, a burguesia é geneticamente entreguista: nasceu vinculada ao capital estrangeiro como sócia menor. Só na fantasia de determinados setores da esquerda, estes sim liberais, é possível construir alianças com a burguesia brasileira para se contrapor ao capital estrangeiro. O entreguismo bocó, à la Bolsonaro, não é exceção, é regra. A novidade é que as negociatas e as trapaças avançaram para além dos gabinetes e são anunciadas em horário nobre, de cara limpa. Bolsonaro representa a burguesia brasileira sem máscaras, organizada policialmente para se apropriar do pão com o suor do rosto da classe trabalhadora.

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O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão. Por aqui liberalismo e tráfico de escravos conviveram por décadas. A herança escravista é uma ferida aberta: a polícia mata mais negros, o encarceramento é maior para a população negra, o desemprego é maior entre os negros, a expectativa de vida da população negra é menor, a renda média dos negros e das negras é menor. A pandemia da Covid-19 é muito mais mortal para a população negra, o que tem a ver com as péssimas condições de vida, empregos precários, exposição ao vírus no transporte público, falta de acesso a médicos e hospitais. É a herança preservada do Brasil colonial, com suas casas grandes, senzalas, capatazes, capitães do mato, pelourinhos, chibatas. Infelizmente, em vez de tocar fogo na herança preservada do Brasil colonial e escravista, setores da esquerda criam ilusões de que é possível humanizar e gerenciar a casa grande. Tais setores pu-lula-m em tempos de eleição, logo menos reaparecerão e se colocarão como salvadores da pátria, não aprenderam, ou não querem aprender, absolutamente nada com o colapso do petismo. A política de conciliação de classes (Lula) criou condições para a chegada ao poder de um capitão do mato (Bolsonaro).

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Um fantasma no mês do cachorro louco, especialmente para os setores da esquerda que pu-lula-m em tempos de eleição: subiu a aprovação do presidente genocida. Os analistas rapidamente diagnosticaram o fenômeno: a grande explicação é o auxílio emergencial de R$ 600,00 distribuído a quase 50% da população. Um pouco no Brasil é muito. Em junho de 2020, com o repasse do auxílio emergencial, o percentual de brasileiros que vivem na faixa de pobreza caiu de 23,8% para 21,7%, já o percentual de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza caiu de 4,2% para 3,3%, é o melhor resultado nos últimos 40 anos[8]. A burguesia brasileira e seus gestores sequer falam em políticas públicas para ampliar o emprego e incluir pessoas no mercado de trabalho. A questão é quanto e como direcionar recursos para rebater, minimamente, a miséria que assola o país. Sintomático. Nem a burguesia nem os gestores do sistema creem nas possibilidades civilizatórias do capitalismo. É a nudez sem véus das personificações do capital. Antigos lemas patrióticos, como “o trabalho dignifica o homem”, viraram frases perdidas nas cartilhas de Educação Moral e Cívica. Não haverá empregos para a imensa maioria da população. A questão é como gerenciar os excluídos. Não será simples. Até agosto, a Caixa Econômica Federal pagou R$ 179 bilhões para beneficiados do auxílio emergencial[9], o déficit primário do Tesouro Nacional em 2019 foi R$ 88,9 bilhões[10]. Ou seja, o primeiro é praticamente o dobro do segundo. Jair Bolsonaro precisará se equilibrar entre uma massa de miseráveis, que precisam comer, e um bando de abutres do mercado financeiro, que se empanturram com recursos públicos e arrotam austeridades. É provável que busque uma solução intermediária para tentar agradar a todos. É provável que não agrade nem uns nem outros. A história se acelera e a luta de classes se acirra.

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O Instituto Latino Americano de Estudos Socioeconômicos (ILAESE)[11] apresenta dados impressionantes sobre a população brasileira em 2018. De um total de 208.594 milhões de pessoas, havia: 38.629 milhões fora da idade de trabalhar (18,52%); 27.313 milhões de aposentados que não trabalham (13,10%); 45.091 milhões de desempregados (21,62%); 33.621 milhões de subempregados (16,12%); 46.703 milhões de assalariados (22,39%); 17.229 milhões de autônomos, pequenos e grandes proprietários (8,26%). Excluindo as pessoas que não estão em idade para trabalhar e os aposentados, chega-se a um total de 142.652 milhões de trabalhadores em potencial. Destes, apenas 33% são assalariados. Ou seja, um pouco mais de 1/3 dos trabalhadores brasileiros tinham acesso a direitos trabalhistas, os outros quase 2/3 estavam lançados à própria sorte. 2018 foi um ano de mobilizações contra a retirada brutal de direitos promovida pelo governo Temer. Nenhum direito a menos – ouvia-se nas manifestações de rua. Só que 2/3 da população não tinham acesso a direitos trabalhistas, o que ajuda a entender o porquê das lutas não se generalizarem. A esquerda será a cada dia mais irrelevante se não encampar lutas e bandeiras que respondam às necessidades da maioria da classe trabalhadora.

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Tão longe, tão perto. Socialismo ou barbárie. O desenvolvimento das forças produtivas possibilita e exige a superação do capitalismo. O meio ambiente idem. A saúde, a educação, a igualdade, a liberdade, a arte, o desenvolvimento das possibilidades humanas idem. Mas as condições subjetivas para a superação do capital estão ausentes. A classe trabalhadora sabe o que não quer (o sistema), mas não sabe exatamente como substituir o modo de produção caduco (o capitalismo). O velho morreu, o novo ainda não nasceu. É o que permite margem de atuação para picaretas, como Trump e Bolsonaro, se apresentarem como ruptura antissistêmica. A pergunta, novamente, é: até quando? A extrema-direita é autoritária, não acredita na democracia burguesa, sabe bem que se trata apenas do regime mais favorável aos lucros capitalista. A esquerda bem comportada, que pu-lula em tempos de eleição, é o único setor que acredita verdadeiramente na democracia burguesa. Na prática, a crença utópica deste setor legitima minimamente o modo de produção caduco, que, em conjunturas específicas, retribui, permitindo a chegada dos reformistas bem-comportados a cargos no executivo, desde que seja para manter absolutamente tudo como sempre foi. Cabe aos revolucionários recolocar a superação do capitalismo e o socialismo nas bocas, nas mentes, nas práticas e nas lutas do proletariado: dos locais de trabalho aos de moradia, nas cidades e no campo, nas escolas e nas ruas. A esquerda tem se limitado a sonhar com a gestão do capitalismo, é preciso voltar a sonhar com o socialismo.

Fontes

[1]      https://www.ceicdata.com/pt

[2]      https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/27/relatoriooxfamdesigualdadepandemia.htm

[3]      https://www.bbc.com/portuguese/internacional53562958

[4]      https://jornal.usp.br/ciencias/desmatamentodaamazoniadisparadenovoem2020/

[5]      https://www.bbc.com/portuguese/geral53731461

[6]      http://www.iela.ufsc.br/noticia/colombiaquasemilmortosdesdeosacordosdepaz

[7]      https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimasnoticias/2020/07/24/sobjoaodoriahomicidiossobemeletalidadepolicialbaterecordeemsp.htm

[8]       https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/202007/taxadeextremapobrezaemenorem40anosnobrasil

[9]       https://valor.globo.com/financas/noticia/2020/08/27/caixajaefetuour179biempagamentosdoauxilioemergencial.ghtml

[10]      https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/brasiltemdeficitfiscalpelosextoanoseguido.htm

[11]      http://ilaese.org.br/

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