Por Passa Palavra
Há muitas coisas acontecendo na África neste momento, que demandam nossa atenção e um posicionamento de toda a esquerda, mas sobretudo do movimento negro. Entretanto, é surpreendente como este último — em blogs, sites e perfis coletivos nas redes sociais — tem se mantido em silêncio ou, quando muito, noticiado timidamente tais fatos, sem proceder a análises mais profundas ou nem sequer às superficiais.
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Vamos começar pela luta social mais em evidência na África no momento, na ex-colônia britânica da Nigéria.
Ao contrário do que dá a entender a narrativa predominante nesses meios — bem menos eloquente do que o silêncio, diga-se de passagem —, a luta na Nigéria, que remonta a 2017 mas estourou novamente em outubro deste ano, não pode ser genericamente definida como uma luta dos negros contra a violência policial. Não cabe a comparação com a violência policial em países onde os brancos são maioria em posições de poder, nos espaços públicos e privados, como nos Estados Unidos ou no Brasil. Pois essas posições, na Nigéria, são ocupadas por pessoas negras, que exploram e oprimem violentamente a classe trabalhadora local, submetida a uma exclusão social e a uma pobreza colossais. Não se trata, pois, de uma violência policial genérica, que une os negros na luta contra um racismo genérico, mas de uma violência policial e de um racismo que beneficiam especificamente uma elite negra.
Contra essa luta, o Estado nigeriano reage violentamente, não apenas disparando contra manifestantes pacíficos e deixando vários mortos, como também alvejando pessoas alheias às manifestações e invadindo suas casas para matá-las, encarcerando centenas de pessoas, impondo toques de recolher e considerando bloquear a internet e censurar as redes sociais.
O clima de revolta e as pressões da conjuntura fizeram com que a população invadisse e saqueasse armazéns com suprimentos que, num contexto de inflação e alto índice de desemprego, já deveriam ter sido distribuídos. O governo se defende dizendo que tratava-se de uma reserva para a segunda onda da covid-19, mas os manifestantes dizem que o governo planejava vendê-los.
Protestos ocorrem também em outro país, em Angola, um dos maiores exportadores de petróleo do mundo, com uma população muito pobre e sujeita à violência policial, ao desemprego, à inflação e a uma verdadeira cleptocracia. A covid-19 veio somar-se a esses problemas. Como consequência, têm havido diversas manifestações nos últimos meses — proibidas agora pelo governo, com a justificativa de conter a disseminação do novo coronavírus —, com muitos presos e feridos. Na última quarta-feira, ironicamente a data do aniversário de 45 anos da independência, um novo protesto, com nova repressão violenta e o assassinato de um manifestante (ver aqui e aqui). Para um dos ativistas envolvidos nas manifestações, “enquanto uns querem conversar e querem dialogar, outros vêm e começam a disparar […] O responsável moral principal por isto é o Presidente da República […] Não podemos andar com rodeios nem com paninhos quentes”.
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Não bastasse esse estado de coisas, a população do norte rural da Nigéria está sujeita, também, a violências praticadas por pessoas — negras como elas — que defendem a instauração de um regime ainda mais opressivo, o Boko Haram. Um despacho recente de uma agência de notícias dá conta do que muitos nigerianos têm sido obrigados a suportar nessa região:
eles [o Boko Haram] atacaram a vila de Kumari […] matando quatro moradores enquanto dormiam […] não usaram armas de fogo para não atrair tropas de uma cidade próxima […] A área também tem sido alvo de repetidos ataques a tiros e suicidas […] fontes disseram que os jihadistas queimaram três pessoas vivas e retalharam uma quarta até a morte em outra vila […] dois agricultores também foram mortos enquanto trabalhavam no campo e vários outros foram feitos reféns.
Essa situação, porém, não é exclusividade da Nigéria. Uma notícia recente, sobre Moçambique, dá-nos uma ideia do que é estar entre uma elite autóctone opressiva e exploradora e uma insurgência jihadista ainda pior:
Mais de 50 pessoas foram decapitadas no norte de Moçambique por militantes jihadistas, noticiou a mídia estatal. Os militantes transformaram o campo de futebol de uma vila num patíbulo, onde decapitaram e retalharam os corpos, de acordo com outros relatos. Várias pessoas foram também decapitadas em outra vila, segundo a mídia estatal. As decapitações são o último de uma série de ataques que os militantes têm feito em Cabo Delgado, província rica em gás natural, desde 2017. Mais de 2.000 pessoas foram mortas e aproximadamente 430.000 foram desalojadas pelo conflito na região de maioria muçulmana. Os militantes são ligados ao Estado Islâmico (EI), dando-lhe um ponto de apoio na África Austral. O grupo tem explorado a pobreza e o desemprego para recrutar jovens em sua luta para estabelecer um Estado islâmico na área. Muitos moradores reclamam que pouco foram beneficiados pelas indústrias de rubi e gás da província.
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Não é, porém, apenas de exploração, governos autoritários e corruptos e grupos paramilitares que padecem os africanos: eles sofrem também com a xenofobia e o racismo negro antinegro. No entanto, enquanto a defesa dos africanos que buscam refúgio na Europa — e dos imigrantes que são, aí, vítimas do racismo — é generalizada na esquerda, a defesa dos refugiados ou dos imigrantes africanos vitimados pelo racismo na própria África não desperta tanto interesse. O problema, que analisamos aqui, persiste.
Embora o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, tenha enviado uma missão a vários países africanos no ano passado, para tranquilizá-los e reafirmar o compromisso da África do Sul “com os ideais de unidade e solidariedade pan-africanas”, como noticiado acriticamente aqui, a situação é outra, como demonstra uma notícia recente:
Autoridades sul-africanas dizem ter começado a deportar 20 refugiados e imigrantes que participaram de um sit-in de vários meses, em protesto contra a xenofobia. Eles são, em sua maioria, de países africanos e exigiam ser reassentados fora da África do Sul. Uma das preferências dos imigrantes foi o Canadá, declarou o Departamento de Assuntos Internos da África do Sul. O sit-in começou diante do gabinete do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados na Cidade do Cabo, em outubro de 2019. Centenas de pessoas participaram da campanha, que durou cinco meses, tendo uma igreja lhes servido de refúgio. Na época, os imigrantes disseram que não se sentiam seguros por causa de ataques xenófobos em cidades sul-africanas, e que eles eram maltratados e discriminados. Desde 2008 têm havido vários surtos de violência xenófoba contra estrangeiros do resto do continente, em várias cidades pelo país. Os imigrantes são geralmente atacados nas comunidades onde vivem, acusados de tomar empregos e recursos.
Isolados, perseguidos e chacinados em casa, discriminados e maltratados por outros africanos ao buscarem asilo ou refúgio em outros países… A África produz os seus próprios náufragos. Ficarão a salvo em algum lugar? Cabe à esquerda e aos trabalhadores em todo o mundo criar condições para que fiquem, combatendo, com atos e palavras projetando-se além das fronteiras, todas as instituições responsáveis por transformá-los em desterrados e apátridas. Infelizmente estamos muito longe disso.
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Somam-se aos problemas as instabilidades políticas e sociais envolvendo disputas eleitorais, em que grupos políticos rivais estimulam conflitos étnicos para conquistar ou sustentar-se no poder.
Um exemplo é a Costa do Marfim, definida (aqui) como uma gerontocracia onde as disputas entre políticos velhos levam os jovens a matar-se uns aos outros. O atual presidente do país, Alassane Ouattara, depois da morte do homem escolhido para sucedê-lo em julho, decidiu concorrer a um terceiro mandato, alegando que uma mudança na Constituição durante seu governo deu-lhe o direito de ficar no poder por mais dois mandatos. O conselho constitucional do país aprovou a manobra e, ao mesmo tempo, impugnou 40 das 44 candidaturas oposicionistas, incluindo a de um ex-presidente, Laurent Gbagbo, que responde a um processo no Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade.
Ouattara proibiu manifestações e, afinal, participou das eleições — boicotadas pela oposição, que convocou a população à desobediência civil —, sendo reeleito. 21% das seções eleitorais permaneceram fechadas e algumas foram destruídas, com manifestantes impedindo a votação em outras, em meio a conflitos étnicos que provocaram dezenas de mortes e a fuga de 3.600 pessoas para a Libéria. Um dos candidatos oposicionistas, ex-presidente do país, Henri Konan Bédié, teve sua casa cercada por uma tropa de choque e vários de seus partidários presos; o próprio Bédié foi mantido em cárcere privado pela polícia, que também atacou os jornalistas que estavam presentes.
O conselho constitucional do país, a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental e a União Africana validaram as eleições.
Já na Tanzânia, o presidente em exercício, John Magufuli, que ao lado de líderes como Bolsonaro e Lukashenko constitui, com Trump, o rol dos negacionistas da pandemia, foi reeleito em eleições fraudulentas, ao mesmo tempo em que seu partido obteve assentos suficientes para abolir o limite de mandatos previstos na Constituição. Um dos líderes oposicionistas, depois de ter sido rejeitado na embaixada americana, foi preso em frente às embaixadas europeias e, em seguida, interrogado pela polícia, enquanto diplomatas alemães esperavam do lado de fora da delegacia.
Enquanto isso, Cyril Ramaphosa congratulou Magufuli pelas “eleições pacíficas”, ao passo que a Comunidade da África Oriental, na qualidade de observador, aprovou as eleições. A tendência, entre os líderes africanos e nos órgãos multilaterais do continente, por conseguinte, é a de favorecer os presidentes em exercício: o autoritarismo local é, assim, sustentado pela própria comunidade de Estados africanos.
Por fim, não podemos deixar de mencionar o caso da Etiópia, onde acaba de irromper um conflito que poderá levar a uma guerra em larga escala, cuja causa imediata é a disputa entre o primeiro-ministro, Abiy Ahmed Ali, vencedor do prêmio Nobel da paz, e a província de Tigré, dominada pela Frente de Libertação do Povo Tigré (FLPT), partido que dominou o país até que Abiy chegou ao poder na esteira de grandes protestos da etnia oromo em 2018.
Abiy dissolveu a coalizão em que se sustentava o governo e fundiu os partidos que a compunham — que representam as diversas etnias do país — num só, o Partido da Prosperidade, que a FLPT recusou-se a integrar. O governo começou a expurgar membros da FLPT e adiou as eleições, alegando razões de saúde pública devido à covid-19, prolongando, assim, o mandato de Abiy. Entretanto, opondo-se ao adiamento, a província de Tigré realizou eleições locais, consideradas ilegais por Abiy, que então bloqueou o acesso da FLPT a recursos federais. Por fim, um ataque a uma base militar, atribuído por Abiy à FLPT, que nega envolvimento, foi o estopim para a campanha militar lançada agora contra Tigré, com uso de artilharia pesada e ataques aéreos.
Agrava a situação o fato de Abiy enfrentar um conflito contra separatistas da Oromia, sua própria província, e tentar sufocar outros protestos por toda parte; nesse cenário, têm havido massacres, principalmente de amaras (ver aqui), outra etnia do país. E forças ligadas à FLPT, segundo testemunhas ouvidas pela Anistia Internacional, que teve também acesso a imagens, têm atacado civis — “trabalhadores sem envolvimento com o conflito” — com facas e facões no sudoeste de Tigré, levando à morte de várias pessoas, possivelmente centenas (ver também).
Como se não bastasse, o conflito ameaça levar vários países do Chifre da África à guerra: as forças tigrés, por exemplo, confirmaram o disparo de vários mísseis contra Asmara, capital da Eritreia, que apoia o governo central etíope; por outro lado, aproximadamente 25.000 refugiados etíopes já cruzaram a fronteira do Sudão (ver aqui). Por fim, a construção de uma barragem na Etiópia, que ameaça reduzir o escoamento de água do Nilo para o Sudão e o Egito, complica ainda mais a situação.
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Enquanto a esquerda, e particularmente o movimento negro, não articularem a luta contra a opressão e a exploração num país com a luta contra a opressão e a exploração em todos os outros, será impossível internacionalizar as lutas anticapitalista e antirracista. Resumindo: nada servirá para nos separar mais de quem trava essas batalhas na África do que deixar de analisá-las como elas são realmente — lutas do proletariado autóctone contra opressores e exploradores autóctones —, ou silenciar tais problemas ou mencioná-los vaga e genericamente (enquanto lutas contra a violência policial, por exemplo).
O mesmo ocorre quando o movimento negro celebra os reinados de soberanos africanos de outrora, os quais prosseguiram as suas próprias políticas imperialistas e/ou impuseram as suas próprias formas de exploração do trabalho, ou quando deixa de proceder à crítica cultural das tradições locais. Estamos, nessas situações, da mesma forma, nos afastando do proletariado em luta na África.
É esse o rumo que tem tomado o movimento negro. E assim ficamos perante uma enorme contradição: as mesmas pessoas que defendem que as pautas específicas dos negros tenham visibilidade deixam de dar visibilidade às lutas específicas do proletariado africano em face dos seus próprios algozes, lutas estas que se inserem no quadro global da luta da classe trabalhadora contra os capitalistas em todo o mundo. Enfim, articular o particular ao geral e internacionalizar as lutas, e o próprio método de análise dessas lutas, nunca foi tão urgente e necessário, mas muitos têm preferido voltar as costas para a África.
Uma exceção que merece ser mencionada é a posição do Quilombo Vermelho, que numa carta-programa recente escreveu que:
A luta antirracista que se levanta nos EUA é contra Trump e os Republicanos, mas também precisa se enfrentar com a tentativa da cooptação dos Democratas, pois não esquecemos que foi no governo de Obama que surgiu o Black Lives Matter, que a violência policial contra os negros sequer diminuiu e que dezenas de países foram bombardeados por esse governo. Nossa luta não é por mais negros no poder, para gerir a barbárie capitalista, não é para ter negros entre os grandes bilionários do mundo, enquanto a ampla maioria do nosso povo é deixada na miséria e na fome. Não é para uma suposta representatividade das empresas capitalistas, enquanto segue a exploração e a opressão da ampla maioria da humanidade.
Salvo a exceção que identificamos, militantes de esquerda e ativistas do movimento negro em geral não parecem estar se esforçando para proceder a uma análise e para assumir um posicionamento político sobre o assunto — internacionalista e antirracista — imprescindível para a luta anticapitalista.
Ilustram este artigo obras de Gonçalo Mabunda (1975-).
na Falha de SP:
” Paes reconhece erros e faz concessões à direita e à esquerda em propostas
Ex-prefeito defende armar Guarda Municipal e equidade racial em secretariado”
Como é fácil se dizer à esquerda com as políticas identitárias. É fácil colocar um gabinete colorido. Enquanto arma as polícias que matam os negros e pobres.
As políticas identitárias servem para alguns ascenderem ao poder, para implementar as políticas que mantém ou pioram a exploração e opressão.
Há pouco tempo este site publicou um texto (https://passapalavra.info/2020/10/134871/) que aborda, entre outras coisas, o modo como o regime da Tchetchênia busca controlar os tchetchenos da diáspora. Uma notícia publicada hoje (https://news.yahoo.com/loyalty-oath-keeping-rwandans-abroad-010533189.html) traz um quadro muito parecido, não na Europa mas na África, em Ruanda.
O artigo acima analisa rapidamente as “lutas do proletariado autóctone contra opressores e exploradores autóctones” em alguns países africanos, mas esse é um assunto interminável, que deverá ocupar ainda muitas e muitas páginas, se não depender dos identitários, claro.
As evidências estão aí para quem quiser ver, demonstrando como a substituição de capitalistas brancos por negros e de governantes brancos por negros muda tudo para que tudo fique na mesma.
Entretanto, para uns isto é a própria “revolução”. Um colunista da Folha de S.Paulo, por exemplo, escreveu há dois dias (https://www1.folha.uol.com.br/colunas/thiago-amparo/2020/11/a-revolucao-comeca-preta-e-trans.shtml), a propósito dos resultados das eleições municipais brasileiras do último fim de semana, que “a esquerda está viva nos corpos pretos e trans que elegeu” e que “a revolução começa preta e trans”, concluindo que “os ventos que a esperança sopra levam corpos pretos, trans para o centro do poder. O que para os outros é identidade para nós é existência […] E é só o começo. Quando esses corpos se movem para o centro da política, todos nós nos movemos. Nos movemos, sabendo que à espreita está o bolsonarismo, enfraquecido, e o centrão e direita tradicionais, fortalecidos”.
E, na verdade, ele não está errado, na medida em que a “revolução” identitária, o fascismo radical da atualidade, ou a ala esquerda do fascismo atual, só poderá se afirmar procedendo a três operações simultâneas: 1) destruir qualquer resquício de anticapitalismo e internacionalismo na classe trabalhadora; 2) tirar do caminho o fascismo conservador nacional-populista de líderes como Bolsonaro, ocupando o seu lugar; e 3) ter uma direita tradicional contra quem se projetar.
O colunista da Folha de S.Paulo sintetizou, talvez num ato falho, a própria dinâmica de ascensão do fascismo identitário, que se desenvolve agora mesmo, na nossa frente, por toda parte. Pelo menos a operação 1 tem sido cumprida com sucesso.
Conseguirá a classe trabalhadora desvencilhar-se dessa outra variante do fascismo? Se depender da maior parte da esquerda e da concepção de luta antirracista que nela predomina, a resposta é, infelizmente, um grande não.
Caros Leo e Fagner,
Nós — o Passa Palavra e aqueles que aqui fazem a crítica aos identitarismos — não inventamos nada, respondemos a situações existentes. Quando o Passa Palavra, no artigo Racismo negro antinegro na África, mostrou que «racismo e xenofobia não têm cor» ou quando eu, no ensaio Outra face do racismo (aqui a primeira parte, as partes seguintes estão linkadas) critico a biologização da cultura operada pelo movimento negro, não estamos a inventar nada, porque são os próprios racistas negros, africanos ou não, que o afirmam.
Vou citar mais extensamente Thiago Amparo, cuja coluna na Folha de S. Paulo Fagner referiu no seu comentário: «A esquerda está viva nos corpos pretos e trans que elegeu. Erika Hilton, a co-vereadora Carolina Iara em SP, Duda Salabert em Belo Horizonte, Benny Briolly em Niterói, Linda Brasil em Aracaju. Foram 25 candidaturas trans eleitas em 2020, segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Vitórias também foram vistas em cidades médias como Bom Repouso, Uberlândia (MG), Batatais, Araraquara, Limeira (SP), Natividade (RJ), Rio Grande (RS) e Canauba do Dantas (RN). Os ventos que a esperança sopra levam corpos pretos, trans para o centro do poder. O que para os outros é identidade para nós é existência. Negras quebraram o teto de vidro em Curitiba, com a eleição da primeira vereadora negra, Carol Dartora, pelo PT. Viúva de Marielle Franco, Monica Benício se elegeu no Rio, junto com as potências negras de Tainá de Paula e Thais Ferreira. Quilombo periférico em São Paulo, o que é lindo demais. Diversas candidatas apoiadas pelo Instituto Marielle Franco se elegeram Brasil afora. São as Marielles e Dandaras presentes, eleitas que encarnam as vozes de multidões por uma política radical, porque genuína. A revolução começa preta e trans. E é só o começo. Quando esses corpos se movem para o centro da política, todos nós nos movemos. Nos movemos, sabendo que à espreita está o bolsonarismo, enfraquecido, e o centrão e direita tradicionais, fortalecidos».
Mas Thiago Amparo fingiu esquecer a situação dos e das homossexuais em África e a prática da mutilação genital feminina. Há dois dias o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou a Suíça por ter extraditado para a Gâmbia um cidadão desse país que em 2008 pedira asilo pelo facto de ser homossexual; as autoridades suíças haviam rejeitado o pedido, com o argumento de que a situação dos homossexuais melhorara na Gâmbia (ver aqui). O problema não é só da Gâmbia, é de praticamente todos os países africanos. Dizer que a «a revolução começa preta e trans» é uma falsidade, porque o facto de a África ser negra não impede aquelas sociedades de perseguirem os homossexuais e os transgéneros.
Porquê, então, tanta hipocrisia? É que ela serve de instrumento para aqueles que — qualquer que seja a cor de pele que tenham e quaisquer que sejam as preferências sexuais que tiverem — pretendem convencer os seus congéneres que basta isso para os defenderem a todos. Não, não basta, como a África o demonstra.
Assim, o silêncio do movimento negro perante o que se passa em África revela que ele se encontra do lado dos dirigentes africanos e não do das suas vítimas. No meu artigo Classe / identidades um comentador, que se pretendia irónico, escreveu: «Parabéns ao autor, ao Holiday e ao Passa Palavra por jogarem luz nesse processo tão ruim que é ter negros nas elites!» Há casos em que se trata de diálogos de surdos. Aqui não é isso. Aqui trata-se de sintonia. Nós acusamo-los de pretenderem ser novas elites. E eles reivindicam-se de pretenderem ser novas elites. O confronto político não podia ser mais claro.
Quanto a quererem se tornar uma nova elite, também faz parte de correntes da esquerda “classista”. Leninismo, social-democracia e as correntes que buscam virar governo, ir para “o centro da política” estatal. Colocar (ex) operários no governo, entre os gestores, como se isso resultasse a libertação do proletariado.
No final a grande praga são esses mascates da liberdade, usando o desejo das massas para sua própria mobilidade social. A grande questão é como quebrar esse ciclo da energia dos movimentos sociais ser dissipada na ascensão de uma nova classe de gestores.
Caras e Caros do Passa Palavra e comentadores.
Como sempre, excelentes as reflexões e provocações trazidas pelo texto em um momento que os agrupamentos que (pelos mais variados motivos) se intitulam de esquerda comemoram a Revolução (feita nas urnas) consubstanciada pela eleição de mulheres negras e trans nas mais diversas cidades do país, inclusive na minha.
Uma questão que trago, especialmente para os 3 quesitos levantados por Fagner Enrique em seu comentário, é se (dentro do quesito 2) poderá ocorrer um acirramento ideológico mais violento entre, de um lado, o identitarismo negro representado pelos mais variados grupos ditos ‘progressistas’ (sem aprofundar nos problemas dessa nomenclatura) e de outro o identitarismo branco e heterossexual representado pelos tradicionais reacionários e em especial pelo Presidente da Rep.
A segunda questão que levanto, dialogando com o comentador que falou a respeito da renovação das elites, é a seguinte: até que ponto o discurso estético/cosmético e representativo será capaz de capturar as populações negras super exploradas do país que, mesmo votando em seus irmãos para os mais variados cargos das adm. pública, não perceberão melhoras efetivas nas condições gerais de vida (excetuando-se é claro as burocracias desse movimentos cataputadas às elites políticas de suas cidades).
Breno,
Eu não tenho uma resposta para o que você pergunta, o tempo dirá. E acho, na verdade, que ninguém tem. Mas o que me parece é que esses dois campos, ou melhor, essas duas faces de um mesmo campo têm sido capazes de fragmentar politicamente a classe trabalhadora e até os capitalistas, aproveitando e aprofundando a grave crise por que passam as suas instituições mais tradicionais e tentando fazer com que a prática política em ambas as classes, sujeita a essa fragmentação, seja ao mesmo tempo afunilada, convergindo para um projeto marcadamente racista e sexista e virtualmente totalitário de poder. É claro que essa fragmentação tem também outras raízes: a ampliação da soberania das companhias transnacionais, a fragmentação das cadeias produtivas, a desmoralização e o esgotamento dos principais partidos à esquerda e à direita, a diminuição da relevância dos sindicatos enquanto mecanismos de contenção das lutas e a sua conversão em verdadeiras empresas, a rápida conversão dos movimentos sociais em mecanismos de ascensão de novos gestores, a difusão da informalidade e da subcontratação, o fracionamento dos processos de trabalho em modalidades materiais e imateriais… Enfim, existem vários outros fatores. O importante é que essas duas faces do fascismo têm contribuído para essa fragmentação e para esse afunilamento, é claro que competindo entre si. E em vez de buscar soluções para esses problemas e pretender refundar uma política que articule anticapitalismo, internacionalismo, antirracismo, antimachismo e anti-imperialismo, pessoas que já estiveram na linha de frente das lutas anticapitalistas têm contribuído para a formação de um populismo identitário racista e sexista.
O nacionalismo brasileiro olhando a África:
https://jornalggn.com.br/coluna-economica/445672/
O que poderia ter sido e o que foi, à luz mortiça do que é: “This is the way the world ends / not with a bang but with a whimper” (T. S. Eliot).
Carrefour cria Comitê de Diversidade e Inclusão.
“Fazem parte do grupo que irá assessorar a empresa em diretrizes e ações contra o racismo em todas as unidades da rede: Rachel Maia, Adriana Barbosa, Celso Athayde, Silvio Almeida, Anna Karla da Silva Pereira, Mariana Ferreira dos Santos, Maurício Pestana, Renato Meirelles e Ricardo Sales.”
“A seguir, a lista de medidas elaboradas pelo Comitê e que serão colocadas em prática pelo Grupo Carrefour no Brasil, que afirmou que voltar a público em 15 dias, com ações mais detalhadas sobre o tema:
1. Adotar uma política de tolerância zero ao racismo e à discriminação por razões de raça e etnia, origem, condição social, identidade de gênero, orientação sexual, idade, deficiência e religião no Carrefour e em toda sua cadeia de valor, conforme estabelecida na Constituição Federal e em diferentes leis brasileiras e em acordos internacionais reconhecidos e firmados pelo país. Uma cláusula de combate ao racismo será inserida em todos os contratos com fornecedores e, se comprovado o fato, seu descumprimento implicará em rompimento do contrato. Fornecedores que já têm essa cláusula em contrato serão valorizados.
2. Iniciar imediatamente a transformação radical do modelo de segurança do Carrefour, internalizando as equipes das três lojas da cidade de Porto Alegre com apoio da ICTS Brasil, empresa especializada em transformação da segurança privada, e estabelecendo regras rigorosas de recrutamento e treinamento para transformar profundamente o time de segurança, com orientação e apoio e em parceria com organizações reconhecidas do movimento negro no combate a todo tipo de discriminação e de violência aos direitos humanos e fundamentalmente ao racismo estrutural. O Carrefour manterá ações estruturantes e regulares de educação para os direitos humanos para todos os seus funcionários e demandará que seus fornecedores, sobretudo na área de segurança e vigilância, também o façam, sempre em parceria com organizações reconhecidas do movimento negro. Pesquisas regulares vão permitir o monitoramento dessa educação para os direitos humanos, identificação de oportunidades e correções de rumo, quando e onde se fizerem necessários. Revisão do modelo de validação das empresas de segurança terceirizadas e dos procedimentos junto com as associações de segurança privada e de transporte. A prática de treinamento, seleção e recrutamento a partir de valores de respeito e direitos humanos será aplicada e monitorada em toda a cadeia de valor do Carrefour.
3. Divulgar de forma clara, ostensiva e permanente uma Política de Tolerância Zero a todo tipo de discriminação, com treinamento de todos os colaboradores em todas as unidades do Carrefour.
4. Oferecer qualificação diferenciada para 100 negros e negras por ano para aceleração na carreira no Carrefour, permitindo que cheguem mais rapidamente a cargos de liderança. Haverá metas anuais para a formação e ascensão em carreiras dentro do Carrefour, em diferentes áreas, de pessoas negras. Haverá metas específicas para ocupação de cargos de liderança por pessoas negras. Haverá medidas específicas de engajamento de profissionais negros da área de Saúde e Psicologia para apoiar o desenvolvimento de pessoas negras em cargos de liderança, estagiários e trainees.
5. Apoio a instituições de ensino distribuídas pelo país para formação profissional de jovens negros e negras. Investimento em três áreas de impacto para a população negra, sobretudo mulheres e jovens: Educação, Mercado de trabalho e Empreendedorismo.
6. Contratação aproximada de 20 mil novos colaboradores por ano respeitando a representatividade racial da população de cada estado do país, mas com percentual mínimo de 50% de negros entre os novos contratados. Apoiar o processo de letramento racial para o correto desenvolvimento do Censo Demográfico Brasileiro.
7. Implementação de um dispositivo digital para denúncias domésticas, raciais e de violência contra a mulher no site e aplicativos do Carrefour, garantindo anonimato, para posterior encaminhamento aos órgãos competentes.
8. Criação de uma Aceleradora voltada ao desenvolvimento do empreendedorismo negro nas comunidades no entorno das lojas de Porto Alegre.
https://www.meioemensagem.com.br/home/marketing/2020/11/26/carrefour-cria-comite-de-diversidade-e-inclusao.html
Além dos olhos que precisamos ter na África também precisamos olhar como esse mecanismo de formação das novas elites tem se dados no Brasil. Aqui, além da uso da identidade negra, tem se valido de uma “identidade da favela”. O incentivo ao empreendedorismo periférico que já vinha em uma crescente, deu um salto com pandemia. Assim se desfaz discursivamente as clivagens de classe para adotar uma prática de avanço das relações de exploração no interior das favelas. Isso feito, como não poderia deixar de ser, em parceria com grandes empresas que vem ali tanto um público consumidor, como trabalhadores.
Vejam aqui: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/08/20/celso-athayde-da-favela-holding-pessoas-sao-maior-potencia-das-favelas.htm e aqui: https://economia.uol.com.br/reportagens-especiais/favela-s/a/?fbclid=IwAR2utDUfHmluecCo7TIKot9c48v1jC-EJ7HUi_6jQ0dV8MpTetNvdRJjOio#page4
“A campanha chegou a tentar se aproveitar do movimento Black Lives Matter para limpar sua imagem por meio de estratégias de marketing evocando questões de justiça racial. Assim, as companhias propuseram reformular a lei para eliminar o piso salarial de uma mão de obra majoritariamente composta por minorias e imigrantes. A campanha buscou se apropriar da linguagem do ativismo de minorias para tentar persuadir o eleitorado a crer que a aprovação da Proposta 22 seria uma conquista para as comunidades não-brancas.”
https://revistaopera.com.br/2020/12/14/a-campanha-da-uber-e-da-lyft-contra-os-direitos-trabalhistas-de-motoristas-de-aplicativos/
Mais sobre a África:
1) Militares etíopes filmaram a si mesmos matando civis de Tigray e jogando-os de um penhasco: https://edition.cnn.com/2021/04/01/africa/tigray-mahibere-dego-massacre-video-cmd-intl/index.html. Essa reportagem da CNN diz que “o massacre […] é um dos vários que têm sido noticiados ao longo dos cinco meses de conflito na Etiópia, durante os quais acredita-se que milhares de civis foram mortos, estuprados ou maltratados”. Esses crimes têm sido cometidos também, segundo a notícia, por soldados da Eritreia.
2) E no norte de Moçambique, na vila de Palma, as pessoas não têm alternativa senão fugir para o mato e caminhar quilômetros para fugir dos jihadistas que aterrorizam a região: https://observador.pt/2021/03/29/ataques-em-mocambique-fuga-de-palma-leva-centenas-para-fronteira-com-a-tanzania/. No despacho da agência Lusa acima, publicado pelo Observador, lê-se que “os grupos [de sobreviventes] incluem muitas crianças e estão todos a caminhar desde quarta-feira pelo mato, depois de deixarem tudo para trás quando grupos armados entraram na vila”.
Mais do que nunca é preciso ter os olhos na África.