Por Passa Palavra
Do horário em que acordamos ao tardar da noite, deparamos com o conflito de classe. Isso ocorre quando pegamos a condução para chegar à labuta, durante a jornada de trabalho estabelecida pelo patrão, quando precisamos parar de trabalhar porque estamos exaustos ou porque nos acidentamos. Enfim, somos cercados pelo conflito a todo momento. E deparamos com o conflito, sobretudo, quando decidimos nos organizar para enfrentá-lo. O conflito não é uma escolha política, mas decidir organizar-se é.
Na medida em que somos forçados a vender nossa força de trabalho, não é um trabalho geral e abstrato que se realiza, mas aquele efetivamente empregue na natureza, produtor de valores de uso. Os conflitos podem se desenrolar de várias maneiras. Podem assumir caráter individual ou coletivo. Ou seja, podem ser respostas isoladas ou envolver diferentes atores. As formas de resistência também podem assumir um caráter ativo ou passivo. Isso diz respeito ao poder de barganha dos trabalhadores, o quão diretamente eles se enxergam como protagonistas de um processo de luta.
Entre as muitas derrotas que sofremos nas últimas décadas, destaca-se a relativização do que significa “conflito” para os anticapitalistas, assumindo feições identitárias ou pessoais, o que acaba por aperfeiçoar as divisões que os capitalistas nos impõem (esse tema foi debatido aqui). Ou então o conflito reduz-se a performances, espetáculos catárticos, como já debatido aqui.
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É quando coletiva e ativamente entramos em conflito com os capitalistas que alteramos a natureza do trabalho, humanizando-o, e é quando coletiva e ativamente pensamos sobre tais conflitos que passamos a vislumbrar alternativas ao capitalismo. Entre nós, anticapitalistas, praticamente não há quem atue por fora das relações capitalistas de trabalho, e por isso vivenciamos diretamente os conflitos de classe. E quando compartilhamos nossa visão sobre esses conflitos, estimulamos a reflexão coletiva e a criatividade no enfrentamento às relações de exploração.
Com esse intuito, em 2019 publicamos um editorial convidando nossos leitores a nos enviarem relatos sobre seus locais de trabalho, porque vemos aí um ponto de partida para quebrar o silêncio. E a repercussão de um relato de trabalhadores da Livraria Cultura, também publicado em 2019, incentivou outros trabalhadores da mesma empresa, e também de outras localidades, a escrever (aqui e aqui).
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Gostaríamos agora de propor algo diferente, convidando nossos leitores a nos enviarem crônicas sobre os conflitos por eles vividos em seus locais de trabalho. Situando-se na fronteira entre o texto jornalístico e a literatura, a crônica possibilita um contato do leitor com o ponto de vista mais íntimo e a visão de mundo do cronista. Mais do que um mero relato, a crônica pode incluir elementos fictícios, capazes inclusive de antecipar processos e acontecimentos reais, a depender da percepção e da capacidade de expressão do cronista.
Caso você tenha interesse em colaborar, envie-nos um e-mail com a sua crônica, para o endereço [email protected]. O coletivo avaliará sua proposta e responderá o mais brevemente possível.
As imagens que ilustram o artigo foram retiradas do filme Cantos de Trabalho, de Leon Hirszman.
O que desde já me parece mais interessante neste apelo do Passa Palavra é que nele não encontro as palavras assédio ou assediar, que parecem hoje de presença obrigatória em qualquer texto sobre as relações de trabalho. Far-se-ia um interessante artigo sobre a evolução semântica destes termos.
Sem ter essa pretensão, e limitando-me ao que disponho nas minhas prateleiras, sem pesquisar na internet, vejo na 10ª edição do monumental Dicionário de Morais (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Lisboa: Confluência, 1950) que Assediar, para além do sentido originário de fazer um cerco militar, significava «importunar, molestar com pretensões insistentes». Quanto ao termo Assédio, além de cerco militar, está indicado «envolvimento, perseguição, ataque cerrado», com um exemplo referente a luta armada, e, numa acepção considerada figurativa, «insistência, teimosia, impertinência junto de alguém», com dois exemplos de assédio sexual.
Meio século depois e do outro lado do mar, o célebre Dicionário de Aurélio (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999) informa que Assediar, além da acepção de cerco militar, significa «perseguir com insistência» e «importunar, molestar, com perguntas ou pretensões insistentes; assaltar», apresentando-se uma conotação sexual apenas para a segunda acepção. E Assédio, além do seu significado militar, apresenta-se como «insistência importuna, junto de alguém, com perguntas, propostas, pretensões, etc.», numa acepção considerada figurativa e acompanhada por um exemplo de carácter sexual.
Nem no Morais nem no Aurélio, dois monumentos da língua em Portugal e no Brasil, os termos assediar e assédio são apresentados com qualquer conotação nas relações de trabalho. Hoje, no entanto, ninguém se queixa do patrão sem dizer que «foi assediado». Bastaram duas décadas para que um termo referente, entre outras acepções, a uma perseguição de carácter sexual, tivesse conquistado a hegemonia sobre as velhas relações de exploração. Temos aqui, no campo linguístico, uma expressão da hegemonia que um dado tipo de identitarismo conquistou sobre a luta de classes. Aguardo com curiosidade as crónicas que o Passa Palavra há-de receber. Veremos se falam de exploração ou de assédio.
Separados um do outro pela perda geral de qualquer linguagem capaz de descrever a realidade (uma perda que impede qualquer diálogo real), separados por sua implacável competição no consumo conspícuo do nada e, portanto, pela mais infundada e eternamente frustrada inveja, eles são mesmo separados de seus próprios filhos, que em épocas anteriores eram a única propriedade daqueles que nada possuíam… … Por trás da fachada de arrebatamento simulado entre esses casais e seus descendentes, não há nada além de olhares de ódio.