Por Fagner Enrique
1. Mais do mesmo
As eleições de 2022 no Brasil parecem muito familiares quando comparadas com as eleições de 2018. Naquela época como hoje, deparávamos com uma forte polarização política entre dois campos, o do conservadorismo político, capitaneado por Luís Inácio Lula da Silva, e o da extrema-direita populista, orbitando em torno da figura de Jair Bolsonaro. Em meio à polarização, tem havido um grande esforço, sobretudo à direita, para viabilizar uma alternativa política intermediária, indevidamente chamada de “terceira via” pela generalidade da imprensa. Esse esforço tem sido, até o momento, um grande fracasso.
Lula, como já escrevi noutro lugar, é a maior liderança política do país, espaço que Bolsonaro tenta ocupar, devido à sua capacidade de viabilizar o que chamei de “mobilidade social ascendente pela via da acomodação”. A habilidade de Lula de integrar às elites novos burgueses e gestores, sem contudo desalojar os antigos; sua capacidade de promover a inclusão de setores historicamente excluídos, inserindo-os no mercado de trabalho e consumo; o estímulo à participação de movimentos sociais e sindicatos na formulação de políticas públicas — a burocracia participativa; a aptidão para firmar pactos com a direita em nome da governabilidade; sua competência para conciliar o desenvolvimentismo e o neoliberalismo e promover o imperialismo brasileiro na América Latina e na África; tudo isso faz de Lula não apenas a maior liderança política nacional, mas um verdadeiro trunfo para os capitalistas, tanto mais porque tudo isso foi feito, e continua a ser, abdicando por completo de qualquer traço de radicalismo anticapitalista ou mesmo de quaisquer veleidades de reformismo social-democrata. As condições para a governabilidade de Lula e Dilma sempre foram, de um lado, a domesticação da militância que lhes dava sustentação e, de outro, a capacidade de impedir que a classe trabalhadora colocasse em causa o próprio mercado de trabalho e consumo e o sistema de poder e exploração como um todo. Respeitadas tais condições, os governantes petistas puderam pactuar o consenso conservador. Ao contrário do que pensa a esquerda, Lula é o verdadeiro expoente do conservadorismo brasileiro, isto é, daquela forma de fazer política onde toda mudança deve ajustar-se ao estabelecido e na qual busca-se sempre uma mediação moderadora dos campos em disputa. Por isso Lula é (quase) um nome de consenso e, para as camadas populares inseridas no mercado e os movimentos admitidos na mesa de negociações, uma figura verdadeiramente messiânica. O maior partido de esquerda no país deu origem a um caudilhismo messiânico promotor de uma política conservadora.
Bolsonaro, por outro lado, representa, como bem definido aqui, os “enjeitados da mobilidade social ascendente”, uma fração da “classe média” — trabalhadores qualificados, pequenos burgueses, subgestores — que perdeu renda durante os governos petistas ou manteve-se no mesmo patamar, frustrada em suas expectativas de ascensão social. A economista Laura Carvalho demonstra que, entre 2001 e 2015, os 10% mais ricos aumentaram sua participação na renda total de 25% para 28%, ao passo que os 50% mais pobres perceberam um aumento de 11% para 12% e os 40% intermediários uma redução de 34% para 32% (L. Carvalho. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia, 2018). Na concorrência no mercado de trabalho, na competição por cargos de gestão, na luta pelo controle de fatias do mercado, o bolsonarismo representa uma solução política para impasses econômicos: mesmo alargadas, as oportunidades criadas no período de maior expansão econômica e inclusão social das últimas décadas, correspondente aos governos petistas, nunca foram para todos, quer dizer, o capitalismo nunca deixou de ser capitalista. A solução para os bolsonaristas consiste portanto em criar condições, ou remover restrições, a uma competição no mercado, e por representação política, pautada na supremacia de quem encarna valores supostamente “tradicionais” confundidos com um individualismo exacerbado e uma virilidade masculina grosseira. Exatamente por isso que o bolsonarismo agrega, de um lado, o ativismo “anticomunista” e anti-LGBT e, de outro, setores indignados com a criminalidade e a corrupção e que apostam no armamento da população, na truculência policial e no reforço das tendências mais autoritárias do Estado como soluções viris e ultraindividualistas para o reerguimento da nação, que confundem com o reerguimento de si mesmos. E como o ódio de quem teve as expectativas frustradas na quadra petista faz parte da equação, o bolsonarismo recoloca em primeiro plano o radicalismo político, na forma de um raivoso populismo de direita. Personificando o ressentimento e o engajamento ativo do indivíduo em sua própria atomização, Bolsonaro afirma-se também como liderança messiânica, mas avessa à moderação e ao consenso. E igualmente como Lula, tenta se afirmar como caudilho, só que do reacionarismo protofascista, e figura paternal, não das organizações dos trabalhadores, mas das “classes médias” ressentidas.
Ocorre que a polarização política não corresponde de fato aos extremos do espectro ideológico, ou melhor, tais polos não se confundem, pelo menos à esquerda, com o extremismo político. Com efeito, como já escrevi noutra ocasião, o papel histórico do PT, instrumento da hegemonia lulista, tem sido o de isolar, dispersar e subordinar as esquerdas que se situam à sua esquerda, atrelando-as e arrastando-as para a direita, removendo do horizonte, portanto, qualquer ímpeto de radicalidade. Na verdade, trata-se de um desdobramento da dinâmica interna do próprio PT, que permite a formação de facções mas mantém-nas atreladas à orientação partidária hegemônica (ver aqui). Assim, sob a liderança de Lula e do PT, as esquerdas têm sido convertidas em paradigmas de conservadorismo e moderação. Noutra direção, o modus operandi do lulismo consiste em tentar conquistar a confiança e em seguida firmar acordos políticos com a direita, inclusive com o chamado Centrão, partidos de direita dispostos a garantir, mediante transações nada republicanas, a governabilidade de quem quer que ocupe a Presidência da República. Na contramão desse processo, embora não deixe de firmar acordos com os mesmos grupos, Bolsonaro recoloca em primeiro plano a radicalidade política, muitas vezes reduzida a uma encenação.
O apelo da ascensão social, de um lado, e o apelo do ressentimento social, de outro, inviabilizam não só o desenvolvimento de uma “terceira via”, mas o de alternativas à esquerda. Quanto às alternativas de esquerda, as três candidaturas apresentadas este ano — Vera Lúcia (PSTU), Sofia Manzano (PCB) e Leonardo Péricles (UP) — limitam-se a marcar posição e deverão, muito provavelmente, declarar apoio a Lula no segundo turno (se houver um segundo turno). O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que em 2018 lançou a candidatura de Guilherme Boulos, a mais lulista que poderia ter lançado, optou este ano por não apresentar candidatura própria, declarando apoio imediato a Lula. Quanto à dita “terceira via”, é no geral constituída por políticos de direita, que não poderiam ocupar o lugar já ocupado por Bolsonaro. Soraya Thronicke (União Brasil), atacando a carga tributária, e Felipe d’Avila (Novo), defendendo um ultraliberalismo privatizante, tentam inutilmente ganhar terreno no campo da direita mais reacionária, hegemonizado por Bolsonaro, enquanto Simone Tebet, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), tenta margear pela direita o campo conservador hegemonizado por Lula, depois de Lula, como é habitual em sua trajetória política, ter provocado um racha em seu partido, colocando seu prestígio eleitoral à disposição de lideranças regionais do MDB em diversos estados (ver aqui e aqui). São, portanto, candidaturas de direita puro-sangue, representativas unicamente dos interesses dos capitalistas, não podendo ser classificadas como terceira via no sentido tradicional do termo, isto é, uma política centrista que tenta conciliar o capitalismo liberal com um intervencionismo estatal moderado, focado sobretudo em infraestruturas sociais, e que busca atrair o apoio de organizações endógenas à classe trabalhadora, fazendo-lhes concessões, assegurando-lhes representação e pactuando o consenso conservador. É exatamente isso o que o PT faz: ele já é a terceira via.
A única candidatura que pode ser classificada como terceira via é a de Ciro Gomes, do Partido Democrático Trabalhista (PDT). Herdeiro do nacionalismo de esquerda outrora capitaneado por Leonel Brizola, Ciro tem feito diversos acenos à classe trabalhadora, apresentando algumas propostas que tendem a mobilizar as esquerdas: renda básica universal, um projeto antigo de Eduardo Suplicy; revogação da reforma trabalhista de 2017 e da emenda do teto de gastos, regulamentação do trabalho por aplicativos, etc. Digno de nota, a própria personalidade de Ciro Gomes situa-se a meio do caminho entre Lula e Bolsonaro: Ciro tem a truculência de Bolsonaro quando confrontado por opositores, promove a indignação contra a corrupção, um dos catalisadores do bolsonarismo, e tenta emular o carisma e a imagem de moderação politicamente correta construída em torno de Lula, sem abrir mão da verve polêmica e dos arroubos que caracterizavam as intervenções públicas de Brizola. Em 2018 tentou em vão firmar alianças à esquerda, uma de suas prioridades. Manteve conversas com o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), setores do PT, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) e a Rede Sustentabilidade, sem descartar a possibilidade de uma aliança com partidos do Centrão, mas tais partidos fecharam-lhe as portas. Em 2022 tentou nova aliança com a Rede Sustentabilidade, para a formação de uma federação partidária, contando com o apoio de Heloísa Helena, mas o partido decidiu pela federação com o PSOL, que declarou apoio a Lula. Também manteve-se aberto, em 2022, para uma aliança com a direita — União Brasil, PSDB (Partido da Social-Democracia Brasileira) e MDB —, mas o União Brasil decidiu apresentar candidatura própria, o PSDB embarcou na campanha de Simone Tebet e o MDB, por fim, divide-se entre o apoio a Tebet e Lula. Assim, Ciro iniciou a campanha deste ano completamente isolado. Privado de uma base à esquerda, o discípulo de Leonel Brizola tentou em vão aplicar o ensinamento do mestre, igualmente sem sucesso: “fazer política de esquerda com gente de direita”. Ciro Gomes é a segunda terceira via, uma outra versão do centrismo conservador chefiado por Lula, entretanto relegada à terceira posição e fadada ao fracasso.
Comparadas com as eleições de 2018, portanto, as eleições de 2022 são, de certa forma, um déjà vu.
2. O que há de novo
A principal diferença com relação a 2018, a mais evidente, é a presença de um Lula favorito e desimpedido na corrida eleitoral. Lula foi impedido de concorrer à Presidência da República em 2018, um dos efeitos extrapenais — a inelegibilidade — de sua condenação por Sérgio Moro, confirmada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o que o obrigou a tentar transferir votos para Fernando Haddad, seu ex-Ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo. Ficou evidente em 2018 que a atração exercida por sua personalidade é consideravelmente maior do que seu potencial de transferência de votos, como aliás já haviam evidenciado as eleições de 2014, com a vitória apertada de Dilma Rousseff, e esse potencial foi ainda mais prejudicado pela situação atípica em que se encontrava, preso em Curitiba e tendo contra si uma condenação confirmada em segunda instância. No início de 2018 já se discutia que o voto afetivo e pragmático em Lula — motivado mais pela identificação com sua personalidade e pela memória positiva de seu governo que por ideologia — tinha o potencial de transferir votos para outros candidatos, inclusive Bolsonaro, com seu discurso anticorrupção, de defesa da ordem e tolerância zero à criminalidade (ver aqui e aqui). Desta vez, porém, Lula concorre pessoalmente à presidência, e novamente é o vínculo afetivo a predominar, pois mesmo não tendo a intenção de apresentar um plano de governo, pedindo como que um cheque em branco à população brasileira, as pesquisas de intenção de voto dão-lhe invariavelmente a vitória. A pesquisa mais recente do instituto Datafolha, realizada entre 20 e 22 de setembro, mostra que Lula ampliou sua vantagem sobre Bolsonaro em 14 pontos percentuais, voltando a registrar 47% de intenções de voto, enquanto Bolsonaro manteve-se no percentual de 33%. Considerados apenas os votos válidos, aumentam as chances de Lula vencer no primeiro turno. As últimas pesquisas haviam registrado um quadro de estabilidade na disputa entre Bolsonaro e Lula, confirmando seu favoritismo, e de estagnação das demais candidaturas. Percentuais semelhantes são registrados pelas pesquisas dos institutos Quaest e Ipec. Mesmo a redução dos preços do gás de cozinha e da gasolina não serviram para catapultar a candidatura de Bolsonaro, e o Auxílio Brasil, programa que substituiu o Bolsa Família de Lula, não foi recebido com o mesmo entusiasmo (ver aqui e aqui).
Contrastando fortemente com o favoritismo de Lula, deparamos com um Bolsonaro cada vez mais isolado e enfraquecido, enfrentando resistências da grande imprensa, dos meios jurídico e intelectual, do setor cultural e até do grande capital, sem contar as dissidências em espaços onde tenta firmar sua hegemonia, como as Forças Armadas e as polícias. Enquanto Lula obtém vitórias nos tribunais, Bolsonaro coleciona derrotas e depara com resistências pontuais no parlamento. Trata-se, na verdade, de um desdobramento do progressivo isolamento de Bolsonaro desde o início da pandemia, quando tentou e teve êxito parcial em sabotar os esforços de contenção da doença, entrando em choque com prefeitos, governadores, o Congresso Nacional e sobretudo o Supremo Tribunal Federal (STF). A tentativa de gerar um cenário de terra arrasada e fragmentação política para viabilizar um golpe de Estado fracassou miseravelmente, pois as maiores empresas e as principais autoridades do país convenceram-se da necessidade de conter simultaneamente a covid-19 e o apetite antidemocrático de Bolsonaro.
Em março de 2020, por exemplo, Bolsonaro lançou a campanha O Brasil não pode parar, para combater as medidas de isolamento e distanciamento social decretadas por governadores e prefeitos. Dias antes o presidente havia editado uma medida provisória concentrando no governo federal a competência para tomar decisões acerca das medidas de isolamento e distanciamento, quarentenas, restrições de locomoção e interdição de atividades e serviços essenciais. No mês seguinte, em 15 de abril, o STF firmou a tese da competência concorrente entre governo federal, governos estaduais e governos municipais para a adoção de medidas de combate à pandemia (ver também). Além disso, o STF proferiu inúmeras outras decisões contrariando o presidente, inclusive proibindo a veiculação da campanha O Brasil não pode parar (ver aqui). Essa sucessão de derrotas levou Bolsonaro, em 19 de abril, a participar de um protesto em Brasília exigindo o fechamento do Congresso e do STF. A partir de 27 de abril, entretanto, seria a vez do Senado de criar novas dificuldades para Bolsonaro, instalando a comissão parlamentar de inquérito que ficou conhecida como CPI da Pandemia. A CPI foi a mais significativa oposição do parlamento brasileiro às políticas de Bolsonaro, estendendo-se até 26 de outubro e fazendo revelações intensamente divulgadas pela imprensa e transmitidas ao vivo em diversos canais de televisão, criando novos embaraços para Bolsonaro.
Com a aproximação das eleições presidenciais deste ano e a divulgação de pesquisas que colocavam Lula em primeiro lugar, Bolsonaro passou a focar nos ataques à lisura do sistema eleitoral brasileiro, questionando a segurança das urnas eletrônicas, defendendo a adoção do voto impresso e fazendo ameaças de que, se as eleições não forem auditáveis, não transmitirá pacificamente o poder ao candidato eleito (ver aqui e aqui). Isso obrigou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a se manifestar e esclarecer que as urnas eletrônicas são auditáveis e permitem a recontagem dos votos. Bolsonaro também tem pressionado os militares a intervirem no processo eleitoral como fiadores das eleições (ver aqui e aqui). Isso tem contribuído para aliená-lo cada vez mais do empresariado e do meio jurídico. Em agosto deste ano, uma carta em defesa da democracia, idealizada por juristas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), alcançou rapidamente mais de 800 mil assinaturas. E outro documento, apelidado de “carta dos empresários”, possibilitou a união de associações patronais e centrais sindicais (ver também). Outras categorias como juízes e advogados, e inclusive peritos e delegados da Polícia Federal, divulgaram notas de repúdio às mentiras e ameaças de Bolsonaro. Por fim, os próprios comandantes das Forças Armadas vêm tentando se distanciar dos ataques do presidente ao sistema eleitoral.
Enfim, o isolamento do presidente vem num crescendo e, além disso, Bolsonaro tem sido obrigado a lidar com dissidências na própria da extrema-direita. A primeira grande dissidência nesse campo foi a do lavajatismo. A operação Lava Jato, que antecipou alguns dos componentes ideológicos do bolsonarismo, já havia sido abalada pelo escândalo que ficou conhecido como Vaza Jato, devido ao vazamento de mensagens trocadas entre membros da força-tarefa e o próprio Sérgio Moro através do aplicativo Telegram. As reportagens publicadas por The Intercept e outros sites de notícias entre junho de 2019 e janeiro deste ano revelaram que as investigações e os processos judiciais no âmbito da Lava Jato desrespeitaram o devido processo legal, o que resultou na anulação das condenações de Lula e minou a credibilidade de Moro e da operação como um todo, impondo-lhes vários revezes. Enquanto a imagem da operação era comprometida, Bolsonaro nomeava Augusto Aras, um opositor da Lava Jato, como Procurador-Geral da República, atraindo críticas dos lavajatistas (um exemplo, aqui). A ruptura consumou-se em abril de 2020, quando Moro renunciou ao cargo de Ministro da Justiça e acusou Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal para ter acesso a informações sigilosas de investigações sobre seus aliados. Divisões e tensões no interior de um mesmo campo evoluíram para a oposição aberta: movimentos que se notabilizaram pelo apoio à Lava Jato e pela defesa do impeachment de Dilma Rousseff, como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Vem Pra Rua, passaram a integrar manifestações contra Bolsonaro que contaram com a presença de partidos de esquerda, e o próprio Moro cogitou compor uma frente ampla com a esquerda contra Bolsonaro, em negociações mediadas por Luciano Huck. A colaboração entre o PT e os lavajatistas, entretanto, foi mutuamente vetada (ver aqui e aqui). Enquanto isso, Bolsonaro adotava diversas medidas para enfraquecer a Lava Jato, até declarar, num evento no Palácio do Planalto em outubro de 2020, que havia acabado com a operação. Essa ruptura deve ser entendida, na verdade, como uma tentativa de Bolsonaro de proteger seu núcleo familiar e seus aliados mais próximos e como uma garantia do presidente aos líderes do Centrão, muitos deles sob investigação da operação. A perda de apoio entre os lavajatistas foi, portanto, compensada pelo estabelecimento de uma boa relação com a maioria do parlamento, principalmente na Câmara dos Deputados, viabilizada por um maior controle dos parlamentares sobre o orçamento. Ocorre que a relação com os deputados é completamente assimétrica, pois evitam participar das ofensivas de Bolsonaro contra o STF e o regime democrático.
Bolsonaro teve, porém, de lidar com outras dissidências ainda mais graves. Em março de 2021, os comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica demitiram-se depois de serem pressionados por Bolsonaro para intervir contra as medidas de isolamento e distanciamento social adotadas por governadores e prefeitos, e em setembro fizeram questão de se distanciar das manifestações então previstas para 7 de setembro, Dia da Independência, demandando uma “intervenção militar com Bolsonaro no poder” (ver também). Além disso, Bolsonaro deparou com a mobilização de governadores de oito estados (São Paulo, Bahia, Paraíba, Espírito Santo, Maranhão, Piauí, Amazonas e Roraima) para impedir a participação de policiais militares nas manifestações de cunho golpista e prevenir motins de policiais militares. A crise política gerada pelas manifestações fizeram Bolsonaro recuar e divulgar uma carta à nação em tom conciliatório, que teria sido redigida sob orientação do ex-presidente Michel Temer, que interveio como mediador.
Foi então o momento de Bolsonaro sofrer duras críticas, desta vez de sua base radical (ver aqui e aqui). E em dezembro do mesmo ano foi a vez de Olavo de Carvalho, principal mentor e ideólogo do bolsonarismo, voltar a fazer-lhe duras críticas, dizendo que “Bolsonaro não é obedecido em praticamente nada, nada. Quem manda no Brasil é a turma do STF, da mídia, do show business. Acabou. E o pessoal das Forças Armadas? Assiste a tudo isso”. Em junho do ano anterior, Carvalho já havia divulgado um vídeo repleto de xingamentos contra o presidente, chamando-o, entre outras coisas, de “inativo” e “covarde”. É certo, entretanto, que tais críticas, ao contrário do que sucedeu com o lavajatismo, não resultaram numa ruptura. De todo modo, porém, contribuíram para enfraquecer o presidente.
Ignorando essas críticas, Bolsonaro, como tem sido habitual, fez promessas no sentido de melhorar as relações com o Congresso e o STF. Contudo, como tem sido igualmente habitual, o presidente volta e meia retoma a ofensiva contra os demais poderes para, de um lado, tentar recuperar credibilidade junto à base radical e, de outro, tentar proteger seus familiares e aliados próximos e alimentar o discurso de vitimização que caracteriza o bolsonarismo, representativo de uma camada da população que se julga marginalizada por um suposto mainstream de esquerda. O alvo principal dos ataques tem sido o Poder Judiciário, instituição com maior capacidade de anular atos do presidente, limitar-lhe o âmbito de atuação e impor-lhe obrigações, já que o desrespeito a ordens judiciais configura crime de responsabilidade e de desobediência, podendo levar ao impeachment do presidente. E o principal alvo no Judiciário é o ministro do STF Alexandre de Moraes, que já proferiu diversas decisões contrariando Bolsonaro, sobretudo no polêmico Inquérito das Fake News, aberto por iniciativa do então presidente do STF Dias Toffoli e repleto de inconstitucionalidades. Ademais, Moraes é o atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), órgão máximo da justiça eleitoral, tendo sido eleito para um mandato de dois anos em março de 2020, quando declarou que “notícias fraudulentas divulgadas por redes sociais que influenciem o eleitor acarretarão a cassação do registro daquele que a veiculou”. Isso não impede que Bolsonaro divulgue notícias falsas diariamente, mas o TSE tenta dificultar a repetição de 2018, quando as fake news desempenharam um papel fundamental na vitória de Bolsonaro, como quando o tribunal proibiu repasses financeiros de redes sociais a canais bolsonaristas. Bolsonaro tem optado então por uma campanha mais profissional — sem a aparência de amadorismo que o projetou como outsider em 2018 — e de forte cariz clientelista.
Digno de nota, diferentemente de 2018, quando mais de 70% do eleitorado evangélico declarava voto em Bolsonaro, pesquisas realizadas no início deste ano mostravam um empate técnico entre Lula e Bolsonaro. Com a aproximação das eleições, o presidente ampliou sua vantagem no segmento evangélico, mas ao que tudo indica Bolsonaro conta com um menor entusiasmo dos evangélicos em 2022, o que motivou acenos de outros candidatos, sobretudo Ciro Gomes e Lula, ao eleitorado evangélico. Lula tem inclusive se reunido com lideranças do setor para tentar romper o isolamento do PT nesse âmbito. O problema é que Lula não tem nada de específico a oferecer aos eleitores evangélicos, quer dizer, tem a oferecer-lhes o mesmo que a todos os demais, uma memória de prosperidade e a promessa de ascensão social. Ocorre que o eleitorado evangélico tende a votar segundo as orientações dos pastores, que por sua vez tendem a priorizar afinidades ideológicas. Mais vale para os líderes religiosos, sobretudo os neopentecostais, eleger representantes que defendam os valores reacionários por eles defendidos, que vão desde um ensino teocêntrico e tutelado pela família — ensino religioso confessional nas escolas, home schooling, etc. — até aquilo que se convencionou chamar “conservadorismo nos costumes” — pautas anti-LGBT, antiaborto, etc. Apesar disso, os líderes evangélicos têm adotado uma postura mais reservada e indicado disposição para dialogar com Lula. Por outro lado, o apoio da bancada evangélica a Bolsonaro tem sido condicionado a uma maior reciprocidade na relação entre parlamentares e governo federal.
Por fim, a cobertura desfavorável da grande imprensa, tanto interna quanto externamente, somada à oposição quase generalizada do setor cultural e do meio universitário, contribuem fortemente para o isolamento do presidente. A grande imprensa vem sofrendo ataques diários do presidente e seus aliados desde o início do governo. A Federação Nacional dos Jornalistas, por exemplo, afirmou em 2021 que em 2020 a violência contra jornalistas aumentou em 105,77%, sendo o próprio presidente responsável por 175 casos de violência contra a categoria (40,89%, de um total de 428 casos). Em 2021, por sua vez, foram 801 ataques à imprensa, cometidos por Bolsonaro e seus filhos. Além disso, o presidente censurou a EBC (Empresa Brasil de Comunicação) 64 vezes e a transformou num órgão publicitário. E todo o governo Bolsonaro tem sido marcado por tentativas de impedir a publicação de informações de interesse público, forçando, por exemplo, os jornais O Globo, Extra, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e UOL a formarem um consórcio de órgãos de imprensa durante a pandemia para a divulgação de dados relativos a casos e mortes por covid-19. Foram ainda registrados, nos últimos três anos, 192 episódios de censura contra o setor cultural, além de ataques a pesquisadores, cortes de verbas de institutos de pesquisa, ataques à autonomia universitária, tentativas de proibição de atos político-partidários nas universidades, entre outros ataques à intelectualidade universitária. Porém nada disso tem sido eficaz para impedir que a grande imprensa divulgue notícias e informações desfavoráveis a Bolsonaro, sua família e seus aliados, a exemplo dos vários indícios de corrupção divulgados desde 2019, a mais recente vindo à tona já durante as eleições, levantando suspeitas de lavagem de dinheiro por parte da família Bolsonaro, devido à compra de dezenas de imóveis com dinheiro vivo. Bolsonaro tentou impedir a divulgação do escândalo, obtendo decisão favorável de um desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, porém quase imediatamente cassada por decisão do ministro do STF André Mendonça.
Coroando esse processo, soma-se ao isolamento interno o isolamento externo de Bolsonaro. Ele tem sido notado pela imprensa há muito tempo, como quando Bolsonaro foi ignorado pelos demais chefes de Estado na reunião do G20 em outubro de 2021. Recentemente Bolsonaro tentou transformar o funeral da rainha Elizabeth II num comício, evidenciando que restam-lhe poucas alternativas para tentar mostrar algum prestígio internacional. Em fevereiro deste ano, Bolsonaro já havia tentado mostrar alguma relevância quando visitou a Rússia pouco antes da invasão da Ucrânia, ocasião em que tentou apresentar-se como um mediador do conflito (ver também). Na ausência de palanques internacionais, Bolsonaro tenta inventá-los.
Enquanto isso, Lula vai beneficiando do isolamento e do desgaste de Bolsonaro, dentro e fora do Brasil, e apresentando-se como uma figura equilibrada, moderada, razoável, confiável, previsível, com quem se pode dialogar.
3. E à esquerda?
As lutas políticas intraelites no Brasil, e também os conflitos sociais, desde que as pressões dos trabalhadores foram sendo canalizadas para dentro das instituições pelo governo Lula, têm tido uma forte tendência, a de orbitarem em torno da distribuição do orçamento público. Foi se consolidando no Brasil um modelo econômico que articula neoliberalismo e desenvolvimentismo e onde o Estado precisa dispor de recursos orçamentários suficientes para poder atuar como agente econômico e oferecer créditos, subsídios, isenções e garantias ao empresariado. Por outro lado, a luta de classes foi sendo constrangida a converter-se numa luta por direitos, que para serem exercidos requerem uma parcela sempre crescente do orçamento público, na medida em que o ordenamento jurídico permite o reconhecimento de um número sempre crescente de direitos. Resta ao governo, conservadas as premissas do modelo de desenvolvimento econômico, tão somente arbitrar os conflitos sociais e as disputas intraelites, monitorar a conjuntura econômica e gerir adequadamente a alocação de recursos orçamentários. O problema, segundo Marcos Fernandes Gonçalves da Silva e Marco Antonio Carvalho Teixeira, pesquisadores da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (EAESP – FGV), é que o governo Bolsonaro abriu mão da política como arbitragem de conflitos sociais (busca, na verdade, criminalizá-la), e na impossibilidade prática de promover uma modernização baseada num Estado burocrático autoritário, precipitou o país numa anarquia orçamentária, quer dizer, criou orçamentos paralelos que acabam resultando na diminuição da eficácia da política orçamentária (ver M. F. G. da Silva e M. A. C. Teixeira. A política e a economia do governo Bolsonaro: uma análise sobre a captura do orçamento. Cadernos Gestão Pública e Cidadania FGV EAESP, v. 27, n. 3, jan-abr. 2022).
Colocando de outro modo, Bolsonaro coloca em risco todo um sistema de acomodação de interesses, que possibilitou, quando a conjuntura internacional mostrou-se favorável, um crescimento econômico acima da média global, bem como a modernização e internacionalização da economia brasileira. O sentido histórico da atual candidatura de Lula parece ser, portanto, o de reestruturar tal sistema de acomodação, retomar o papel do Estado como agente econômico e indutor de investimentos privados e incumbir novamente o governo federal da tarefa de arbitrar os conflitos sociais e disputas intraelites envolvendo o orçamento público. Mas para isso, como argumenta The Economist, Lula terá de convencer o Congresso a aprovar reformas e diminuir o controle dos parlamentares sobre o orçamento, o que não será nada fácil (ver The unknown known. The Economist, 24-30 set. 2022, p. 31-34).
Mas e à esquerda? Qual é o sentido histórico destas eleições?
A tendência predominante na esquerda é apostar de novo todas as fichas no restabelecimento daquele sistema de acomodação, promovendo o consenso e a moderação e declinando da luta social radical, ficando portanto refém de uma base bolsonarista que se insurge raivosa e violentamente contra tal sistema. Nos meios de esquerda prevalece o entendimento de que é preciso manter a calma e aguardar o retorno de Lula e do PT. O ano de 2022, porém, chama a atenção por sucessivos episódios de violência política e ameaças protagonizados por militantes bolsonaristas ou apoiadores do presidente. Em julho um policial penal federal, apoiador de Bolsonaro, baleou e matou um militante do PT em sua festa de aniversário. Ainda em julho, um ato da campanha do deputado federal Marcelo Freixo (PSB), que disputa o governo do Rio de Janeiro, foi interrompido por um deputado bolsonarista acompanhado de homens armados. No mês seguinte, um advogado e candidato a deputado estadual pelo PT do Rio de Janeiro, que estava presente no evento de campanha de Freixo, sofreu novas ameaças à mão armada. No início de setembro, um apoiador de Bolsonaro matou um apoiador de Lula com 70 facadas e tentou decapitá-lo, e no dia 23 um policial militar deu tiros para o alto, fez ameaças e lançou spray de pimenta na direção de cabos eleitorais do PT em Montes Claros (MG). Dois dias depois, na mesma cidade, outro policial militar disparou contra uma carreata do PT. No dia seguinte, 26 de setembro, um apoiador de Bolsonaro entrou num bar e perguntou se havia ali algum eleitor de Lula, esfaqueando um homem que confirmou que votaria no petista, matando-o. Contudo, mesmo diante de episódios como esses, a esquerda brasileira mantém, no geral, uma tibiez impressionante, limitando-se a tweets, tímidos protestos e resignando-se ao sonho da pacificação social sob Lula.
Não digo que não haja gente de esquerda disposta a bater-se nas ruas com os bolsonaristas, como ocorreu em 9 de setembro, quando um bolsonarista compareceu a um evento do PT com adereços anti-Lula para provocar a militância petista e saiu do local ensanguentado. Há poucos dias outro provocador, desta vez um militante do MBL, foi escorraçado de um ato da campanha de Guilherme Boulos (PSOL), que se candidata a deputado federal em São Paulo. Nada impede ainda que os petistas se envolvam em brigas de bar, como a que resultou na morte de um bolsonarista em Santa Catarina. A questão não é essa. Trata-se de recuperar a radicalidade num âmbito que não é o dos socos e pontapés, tiros e facadas, e sim o de mobilizações coletivas que coloquem em causa as relações de exploração e as hierarquias sociais. Resumir a luta social a brigas de rua é abrir mão da revolução em prol da revolta. O lulismo pode até acolher a revolta, manipulando-a quando conveniente para demonstrar força, mas sempre renegará a revolução, junto com a direita conservadora. Ele é contrarrevolucionário por excelência.
Mantendo uma postura de passividade e subordinação, a esquerda deixa de associar-se às movimentações coletivas dos trabalhadores, que não podem se dar ao luxo de esperar um cenário mais favorável para lutar, e por isso deixa de promover o tipo de radicalidade capaz de neutralizar as ofensivas dos patrões e a capacidade de ação de protomilícias fascistas.
Mesmo em condições extremamente desfavoráveis, o DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Econômicos) registrou 1.118, 659 e 721 greves em 2019, 2020 e 2021. Sobre o ano de 2019, o DIEESE nota que “mesmo em momento de queda consistente no número de greves (que já dura três anos), as mais de mil greves deflagradas em 2019 ocorreram em ambiente resolutamente hostil à sustentação de mobilizações de trabalhadores […] foram encampadas em meio ao impacto da asfixia no financiamento das entidades sindicais; à permanência do alto desemprego, ao avanço do trabalho informal; a expectativas pouco confiantes em um futuro melhor e, sobretudo, em meio a uma difusa sensação de instabilidade, que se intensifica com a recente reconfiguração das forças políticas do país”. Ou seja, mesmo num cenário muito desfavorável, os trabalhadores tiveram de desafiar os patrões e lutar. E em 2020 e 2021, mesmo a redução das atividades econômicas e a limitação de aglomerações e deslocamentos, motivadas pela pandemia, não impediram os trabalhadores de lutar, com a deflagração de greves pelo pagamento de salários atrasados, por reajuste salarial, as chamadas “greves sanitárias”, paralisações de trabalhadores por aplicativos (os “breques dos apps”), greves contra demissões e outras formas de mobilização (ver Balanço das greves de 2019, Estudos e Pesquisas n. 93, 26 mai. 2020, Balanço das greves de 2020, Estudos e Pesquisas n. 99, 10 mai. 2021, e Balanço das greves de 2021, Estudos e Pesquisas n. 102, 4 jul. 2022).
A esquerda brasileira em geral, porém, não mais acredita que mesmo diante do risco de um regime autoritário é preciso seguir lutando com radicalidade, só que observando com maior rigor as regras de segurança que garantiram a sobrevivência — e as vitórias — de gerações anteriores (ver aqui e aqui). Pelo contrário, parece pensar que diante desse risco, só nos resta esperar uma correlação de forças mais favorável, ou então renunciar por completo às noções de segurança e luta concreta e reduzir a luta social a encenações de radicalidade, demonstrações de estupidez. A memória de tantos e tantos militantes revolucionários do passado é assim insultada pela esquerda atual, temerosa de lutar num cenário mais adverso, pois desaprendeu de lutar, e desejosa da reedição de um projeto conservador caracterizado pela mediação de conflitos, a inserção no mercado de trabalho e consumo e a integração às elites. Por isso identifica-se com Lula, e é por isso que à esquerda jaz uma esquerda.
As fotografias que ilustram o artigo são — de cima a baixo — de Veit Hammer, Matthias Müllner e Vicki Schofield.
O artigo sistematiza a conjuntura, mas pouco avança além disso. Mesmo assim, trata-se de uma sistematização importante, que permitirá saltos futuros. Deixo aqui algumas observações.
Primeira observação: apesar de o artigo ter tocado superficialmente nas “protomilícias fascistas”, deixou de olhar para um aspecto muito importante, para o qual chamo a atenção, como tenho feito em vários lugares: os CAC (caçadores, atiradores e colecionadores). Sob tal denominação, em especial sob os ditos “colecionadores”, têm sido formados verdadeiros arsenais privados que estão aí, à disposição de qualquer ação armada. Como se pode ver clicando neste link, um caçador pode ter até 12 armas (sendo até oito de uso restrito às FF. AA.); um atirador desportivo pode ter até 16 (sendo até oito de uso restrito às FF. AA.); e um colecionador tem direito a armas ilimitadas. Ora, quem tem família na roça sabe que esses patamares são inflados, porque nenhum pequeno agricultor tem tantas armas em casa. A própria burocracia necessária ao registro torna proibitivo o registro formal das armas possuídas, vivendo todos na irregularidade.
O registro CAC tem servido bem, isso sim, a grandes fazendeiros. Ao registrar-se como “colecionadores”, conseguem formar um verdadeiro arsenal em suas terras, armando a jagunçada de modo totalmente regular. A estatística da CPT sobre conflito no campo evidencia, como se pode ver clicando neste link, crescimento do número de ocorrências de conflito desde 2016, em paralelo à redução do número de ocupações e retomadas de terras, e também de acampamentos, crescendo drasticamente, também, a área (em hectares) envolvida nestes conflitos, e o número de pessoas afetadas. A leniência de Brasília alimenta as milícias rurais. Agora, imaginem um cenário, aliás bastante provável, em que o PT retorna ao poder. Neste cenário, imaginem um só aspecto a se alterar: a restruturação das carreiras na área da fiscalização ambiental, garantindo novamente certa autonomia aos fiscais e auditores nas ações em campo, a intensificação das ações de fiscalização, e a aplicação massiva de multas aos ruralistas e garimpeiros infratores. Alguém aqui será ingênuo de acreditar que essas milícias do agronegócio, dos madeireiros e dos garimpeiros não oporão resistência armada?
Segunda observação: as candidaturas da extrema-esquerda sempre representam, em qualquer cenário eleitoral, a atitude de “marcar posição”. É o imperativo da “política independente do proletariado”, presente desde o Manifesto comunista, interpretado mal e toscamente no sentido de fazer um partidinho que apareça nas eleições de dois em dois anos para “apresentar o programa às massas”. No dia em que um partido de extrema-esquerda apresentar uma candidatura eleitoral viável à presidência, em que apareça muito bem nas pesquisas, das duas uma: ou estamos em meio a uma situação pré-revolucionária, em que eleições já não fazem tanto sentido, ou o partido deixou de ser de extrema-esquerda.
(A este respeito, é muito divertido rastrear os diferentes entendimentos dessa “apresentação do programa às massas”, e como se os implementa na extrema-esquerda. Um caso curiosíssimo é o do MR-8, que por décadas viveu de “entrismo” no PMDB, depois virou PPL e terminou com a fusão ao PCdoB. O atual PCR, aliás, viveu dentro do MDB até 1995 como parte do MR-8, quando saiu para “refundar” o partido e, em 2014, mobilizar suas “frentes de massa” para criar a UP como um “partido legal” para disputar eleições.)
Por outro lado, é curioso como o artigo não evidencia como ou por que as candidaturas da centro-direita também estão marcando posição nessas eleições. Não se trata somente de disputar eleitorado, como diz o artigo, mas de uma dimensão que passou ao largo do artigo: as estratégias eleitorais da direita para a ocupação de postos diferentes na federação e na divisão de poderes. Sobre isso, levanto algumas hipóteses.
Veja-se, primeiro, a União Brasil (UB): sendo partido pega-tudo, mantém relação “pé dentro, pé fora” com o governo Bolsonaro; “pé dentro” porque, no Congresso, seus parlamentares votam em favor de todas as principais medidas vindas do Executivo, e “pé fora” porque querem largar-se do abraço do náufrago. Além disso, a cúpula da UB (como a do Democratas antes dela, e a do PFL ainda mais recuadamente) mantém-se confortavelmente no papel de coadjuvante na esfera federal, desde que consiga capilarizar-se nas prefeituras e nos governos estaduais para tornar-se “fiel de balança” em eleições federais. Tal situação é evidenciada pelo fato de os candidatos do partido nas eleições estaduais (como o próprio secretário-geral do partido, ACM Neto) evitarem a chamada “federalização”, proclamando-se “neutros” frente ao petismo e ao bolsonarismo, no limite como “críticos” aos dois. Uma candidatura própria, mesmo fadada ao fracasso, contribui muito. UB não mira, portanto, em sucesso eleitoral imediato nas eleições ao governo federal, mas na estratégia de médio prazo de consolidar sua bancada no Congresso e manter-se à frente de prefeituras e governos estaduais.
Veja-se a postura similar do Movimento Democrático Brasileiro (MDB): o partido, sendo também partido pega-tudo, contém em si alas muito distintas, e tem frente à UB a particularidade de ter uma ala lulista muito forte, entrincheirada em postos de prestígio no partido e no Estado. Isso não é novidade alguma, e nunca deixou de existir no MDB uma ala em oposição aberta ao governo Bolsonaro; Lula não provocou racha algum no partido, porque o MDB nunca foi unificado em nada além da presença constante no alto escalão do governo federal. É o que lhe garante a sobrevivência em meio a tantos governos: quem quer que ganhe as eleições sempre encontrará aliados no MDB. A UB, neste particular, é mais engessada; não esqueçam que a “ala lulista” do antigo Democratas, sob liderança de Gilberto Kassab e orientação informal do próprio Lula, saiu do partido para formar o PSD, entre 2010 e 2011. Uma candidatura própria do MDB serve ao mesmo propósito de “desfederalizar” as candidaturas estatuais, descolando do governo Bolsonaro tanto a “ala lulista” do partido quanto a ala majoritária que já se havia descolado de Bolsonaro, isolando assim a ala minoritária que ainda quer alguma relação com o governo que se encerra e potencializando negociações da “ala lulista” num futuro governo federal do PT.
Situação um pouco diferente é a do Novo: é parte partido ideológico ultraliberal, parte partido dos banqueiros e financistas que bancaram sua fundação (João Amoêdo, Pedro Moreira Salles, Cecília Sicupira, Fernão Bracher, Eduardo Mazzilli de Vassimon, Fábio Barbosa, Jayme Garfinkel e Israel Vainboim), parte partido dos empresários, administradores de empresas e sócios de startups que o integram, tem posição sui generis no cenário partidário brasileiro. A filiação ao Novo é muito seletiva, o processo de formação interna é intenso, e há cobranças de metas e resultados de todos os militantes, que devem contribuir com algum tempo na gestão e realização de tarefas do próprio partido, tudo de modo voluntário (ao menos até quando sondei). A tendência do Novo nas eleições presidenciais, tal como fizeram nas eleições de 2018, é de lançar candidaturas próprias no primeiro turno e, no segundo turno, dar “apoio crítico” à direita (qualquer uma, moderada ou radical); o partido deve manter-se assim por bastante tempo, porque se fizer alianças formais que destoem de seu núcleo ideológico tenderá a esfacelar-se, como qualquer startup malsucedida.
Em paralelo a isso, há as estratégias dos que se proclamam de “centro-esquerda”: o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e Ciro Gomes, porque a candidatura não é somente do partido, tampouco somente de Ciro Gomes, mas das duas forças políticas ao mesmo tempo. Ciro é muito inteligente, e mantém sempre os olhos na direção das pesquisas eleitorais que nunca lhe apontaram qualquer viabilidade à sua candidatura. Minha hipótese é de que interessa a ele manter em alta seu cacife político enquanto não ocupa algum cargo executivo de alto escalão num futuro governo do PT, porque ao PT interessa ter alguém com perfil “trator” em certas posições administrativas e a Ciro interessa algum lugar onde implementar seus projetos de nacional-desenvolvimentismo. Não acho que ele seja “outra versão do centrismo conservador chefiado por Lula”, porque falta, nos projetos de Ciro, um elemento central ao projeto petista: a participação dos movimentos sociais na formulação, proposição, fiscalização e eventual execução das “políticas públicas”, que nos projetos de Ciro devem ser planejadas e implementadas diretamente por órgãos de Estado, sem espaço para o conselhismo burocrático que caracteriza o PT. A capacidade de Ciro de realizar este tipo de concertação entre capital e trabalho é, portanto, muito menor. Sua vocação política é mais autoritária e centralizadora, muito além dos arroubos e grosserias pelos quais Ciro também se tornou famoso. Ao PDT, por sua vez, além dos efeitos já mencionados de uma candidatura presidencial independente sobre as eleições parlamentares e estaduais de agora e sobre as eleições municipais subsequentes, interessa manter certa autonomia frente ao PT num governo futuro deste último, garantindo mais “bala na agulha” em negociações de cargos ministeriais.
Uma terceira observação diz respeito a uma análise factualmente correta, mas expressa em termos equivocados: na dinâmica partidária interna, o PT não forma facções, mas tendências. O direito a formar tendências internas se prevê, inclusive, no estatuto do partido, e foi objeto de enormes polêmicas até a primeira metade dos anos 1990. O PSOL segue a mesma linha, e chama seus agrupamentos internos de “tendências”, nomenclatura seguida também por partidos que adotam o assim chamado “centralismo democrático”, como o PCB, que a proíbem. Na história da esquerda, e dos partidos comunistas em particular, “tendência” é diferente de “fração”; enquanto na primeira o agrupamento mantém-se restrito à vida interna do partido, a última representa uma tomada pública de posição, uma crítica pública aos rumos do partido, etc., apontando no sentido de acumulação de forças para disputar publicamente o redirecionamento do partido, ou de preparar uma ruptura. Embora se dicionarize “facção” como “partido político”, é o caráter dissidente que se expressa na maioria dos significados dicionarizados, em divergência do que é a vida interna do próprio PT; nos poucos casos em que as tendências agiram como frações, foram expulsas do partido. Chamar de “facções” as tendências do PT ainda tem outro problema semântico, historicamente mais recente: a forte associação do termo “facção” com grupos do crime organizado, denotando, com a anfibologia resultante, certa criminalização das atividades do partido, atitude que pode colocar quem a adota em péssima companhia. Em resumo: se a dinâmica interna de submissão das tendências do PT está descrita de modo correto, é errado, em todos os sentidos, chamá-las de “facções’.
A quarta e última observação diz respeito a certo tom de “eterno retorno” que anima o artigo. É como se tudo estivesse na mesma desde 2018, seja nas disputas intraelites, seja em meio aos trabalhadores. A principal diferença residiria no fato de não haver impedimentos penais à candidatura de Lula, se é que há tanta diferença assim: afinal, se olharmos para as pesquisas eleitorais de 2018, antes de ser preso Lula também vencia Bolsonaro em todos os cenários, e a atual eleição, pelo tom do artigo, tem ares de ser uma “realidade alternativa” do que poderia ter sido a eleição presidencial de 2018 se Lula não houvesse sido preso. A descrição da desagregação política do campo bolsonarista nos últimos quatro anos presta tributo ao fato de que sim, houve História entre 2018 e 2022, mas a candidatura de um Lula penalmente desimpedido persiste como principal diferencial, como se nada além disso fosse diferente.
Penso o contrário. Na minha leitura, nunca será um déjà vu, no Brasil, uma eleição em que o atual presidente concorre à reeleição, começa perdendo nas pesquisas e continua perdendo ao longo da disputa, vendo sua candidatura desidratar-se mesmo com o uso escancarado da máquina estatal em seu próprio favor. É quase um pato manco com delírios de grandeza. Mesmo no improvável cenário (considerando as atuais tendências) de o presidente conseguir se reeleger, seu desempenho nas pesquisas mostra um cenário de campanha simplesmente inédito em toda a história eleitoral brasileira.
As forças presentes podem parecer as mesmas, mas a situação em que elas se encontram mudou significativamente. Contribuiu sobremaneira para tal cenário o verdadeiro desastre que foi, para os trabalhadores, esse “governo de agregados”, mas cabe perguntar: a histeria anticomunista, antiindígena, antiquilombola, LGBTfóbica, etc. serão suficientes para manter alguém com cerca de 30% dos votos em pesquisas eleitorais? O que está por trás disso? Quem saiu ganhando, concretamente, com o “governo de agregados”? Conseguimos “dar nomes aos bois” neste aspecto? Se parte significativa desses 30% está entre trabalhadores, a quais desejos e aspirações o “governo de agregados” responde? Qual a base material desses desejos e aspirações? Como explicar tal adesão sem recorrer às soluções fáceis e pouco explicativas da “falsa consciẽncia”, da “enganação”, do “estelionato eleitoral” etc.?
São questões a se levantar agora para responder no futuro — desde que seja um futuro muito próximo.
Senti falta (tanto no texto quanto no brilhante comentário do Manolo) de algo a respeito da posição dos pequenos grupos de tendência anarquista, libertária, etc que, apesar de minúsculos, tomam posição frente às eleições em regra conclamando pelo abstencionismo eleitoral.
Com o devido respeito ao autor, o mais relevante que li foi o comentário do Manolo.
No geral, tem mais do mesmo: constatar que vivemos um período de refluxo das lutas sociais, que o PT incorporou e burocratizou militantes de movimentos sociais e afirmar a morte de uma tal esquerda, jogando no mesmo balaio todos aqueles que não rezam pela cartilha que o autor julga ser a correta. A que tipo de radicalidade o autor se refere? Pois cita apenas greves, que possuem um potencial pedagógico, mas que há tempos, no geral, não têm se notabilizado pela radicalidade. Seria um chamado a um voluntarismo 4.0?
Há uma coisa nesse texto que me cansa: retrata a postura prepotente de alguns que se sentem num pedestal de superioridade intelectual, moral e tática que lhes permitiria reiteradamente acusar todos os que não estão nos pequenos grupos em que atuam de serem uma esquerda morta.
Ora, sejamos sinceros, vivemos tempos que nos fazem questionar se ainda podemos pensar em classe trabalhadora no sentido político ou sociológico, se preferirem.
O que se poderia esperar nas atuais eleições? Como o Manolo bem sugeriu, eleições numa democracia representativa não são momentos de radicalidade das lutas. Assim, temos os variados partidos que disputam espaço, alguns que disputam o poder executivo, as caricaturas que dizem falar em nome do proletariado e minorias numericamente inexpressivas que pregam a abstenção. E seria necessária muita boa vontade para acreditar que as eleições com porcentagens expressivas de abstenções resultam do sucesso da militância libertária.
Dialogando com o Manolo, talvez os 30% poderiam ter se reduzido se o governo Bolsonaro não tivesse liberado as “benesses” que liberou nos últimos meses; é apenas o que consigo vislumbrar em termos de ganhos materiais para os mais pobres.
E aí, sinceramente, eu travo, pois os trabalhadores, em geral, não obtiveram melhorias materiais nos últimos 4 anos.
Entre as classes médias e as elites, vislumbro um forte antipetismo que entendo ter nascido junto com o próprio petismo, a objeção ao radicalismo, ao conflito social, ao protagonismo dos trabalhadores, o ódio de classes etc.
Mas o antipetismo também nasceu junto com o petismo entre parte dos trabalhadores, que desde o início viu nos barbudos radicais um monte de vagabundos que faziam greves porque nunca gostaram de trabalhar. Conservadorismo, apego à autoridade, inviolabilidade da propriedade privada, obediência etc. nunca foram exclusividade das classes médias e das elites… Para essa parcela dos trabalhadores, não desprezível, o Lula paz e amor nunca colou. E eles se sentiram representados pelo Bolsonaro. Numa época em que está na moda o emporedamento, aquela parcela mais chucra dos trabalhadores, os tais capiaus do interior mencionados pelo Lula, encontraram no Bolsonaro um legítimo representante e as milícias digitais bolsonaristas propagaram à exaustão a propaganda de que o mito não conseguiu governar porque os outros poderes não deixaram.
Aquilo que para nós parece absurdo – a ameaça comunista, a venezuelização etc. – é para muitos realidade. O interior paulista tá cheio de capiaus que compraram armas e que acreditam piamente que essa é a última chance de deter a ameaça comunista.
Então, talvez, e friso o talvez, o apoio dos trabalhadores que compõem esses 30% do eleitorado bolsonarista se baseie em questões além das materiais. Não podemos ignorar a ideologia e o irracionalismo.
Oxalá o chamado ao recebimento de crônicas resulte; oxalá as perguntas do Manolo inspirem o debate; pois, ando cansado das generalizações à esquerda que, insisto, carregam na essência a prepotência daqueles que se julgam os verdadeiros redentores da classe trabalhadora, mesmo que preguem aos quatro cantos que a emanciapação da classe trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora.
Muitas pessoas de esquerda realmente não vislumbram nada para além do lulismo, da conciliação de classes combinada com a minimização da miséria; outros tantos, não vislumbram nada para além das lutas identitárias; alguns poucos sentem-se perdidos e tentando ao menos interpretar o que não está na superfície; outros ainda militam, organizam e constroem.
E a cada 2 ou 4 anos, infelizmente, quase todos acabam por se encontrar na opção pelo mal menor. Se um governo Lula significa ser explorado sob condições de mais valia relativa, um governo Bolsonaro significou a exploração sob as condições da mais valia absoluta. Então, não vou partir da minha superioridade moral para tecer generalizações.
Talvez não seja desnecessário lembrar que há lutas imediatas e lutas de longo prazo e que apostar no quanto pior melhor só é confortável para quem não foi lançado aos 30 milhões que passam fome. Clamar por radicalidade na atual conjuntura é bonito e reconfortante, nada mais.
As alternativas sempre vieram e virão da velha toupeira.
Fagner, dizem que a inveja mata… Mas aqui ela é a ambrosia dos “Illuminatis” passapalavrianos que se acham à altura (ou mesmo superiores às) das críticas “joãobernardianas” (não a toa, ele ficou uns anos afastado destas paisagens – ou pastagens…?). Seu texto está excelente e atinge o objetivo a que se propõe e isto é o que vale para mim e os demais pobres trabalhadores mortais… Parabéns e obrigado!
Gostaríamos de reiterar e relembrar aos leitores que, conforme indicado aqui, não publicamos comentários insultuosos.
Avalio este artigo de Fagner Enrique pelo que ele diz e não pelo que optou por não dizer. E antes de mais parece-me de elogiar o esforço para escrever não só para brasileiros, esforçando-se por explicar a situação aos leitores estrangeiros do site. É que, se o Brasil não está no Brasil, mas está no mundo, mais modestamente o Passa Palavra está no mundo também.
Quando Fagner Enrique menciona as dissidências que Bolsonaro sofreu, não pude deixar de recordar que no início o bolsonarismo podia ter-se convertido num verdadeiro fascismo, pois tinha para isso uma base militante e aguerrida, verdadeiras milícias de rua. Não o fez, o que levou essa base política a abandoná-lo, e o actual isolamento veio da simetria operada pelas dissidências conservadoras. Nesta perspectiva, é eloquente que a imprensa internacional conservadora e capitalista despreze Bolsonaro e o apresente sempre como um personagem ridículo, enquanto deposita as esperanças numa vitória de Lula. O contraste é flagrante entre o Brasil, onde Lula é visto como o caudilho da esquerda, e o resto do mundo, que vê em Lula a esperança de uma boa gestão capitalista.
Esse contraste resume tudo, e desde o título até à última frase o artigo é certeiro: «à esquerda jaz uma esquerda». O diagnóstico converte-se em certidão de óbito.
Com efeito, diz Fagner Enrique que «o papel histórico do PT, instrumento da hegemonia lulista, tem sido o de isolar, dispersar e subordinar as esquerdas que se situam à sua esquerda, atrelando-as e arrastando-as para a direita, removendo do horizonte, portanto, qualquer ímpeto de radicalidade». Ora, este processo, que já era visível antes do primeiro mandato de Lula, agravou-se durante os governos do PT, em que o grande capital industrial e agrícola dominava os ministérios e os movimentos sociais animavam as bases. Como se lê no artigo, «as pressões dos trabalhadores foram sendo canalizadas para dentro das instituições pelo governo Lula». Não creio que existam, ou tenham existido, no mundo muitos governos com um leque de apoios activos tão amplo, de cima a baixo da sociedade. Assim, um dos grandes méritos deste artigo consiste em mostrar que as actuais eleições são um simples episódio de um processo mais profundo e duradouro.
De um lado, ocorrem os movimentos de greve, de que a esquerda se ausenta. «[…] mesmo num cenário muito desfavorável, os trabalhadores tiveram de desafiar os patrões e lutar». Do outro lado, existe uma esquerda a quem «resta esperar uma correlação de forças mais favorável, ou então renunciar por completo às noções de segurança e luta concreta e reduzir a luta social a encenações de radicalidade […]». É que as «encenações de radicalidade» são indispensáveis ao mito de Lula, cobrindo com vestes de fantasia o desenvolvimentismo económico e o conservadorismo político. Temos novamente o conto de Andersen, tantas vezes citado, da criança e da roupa imaginária do imperador.
Obrigado ao Fagner Enrique por ter escrito este artigo e ao Passa Palavra por tê-lo publicado.
Hans Christian Andersen, A roupa nova do rei, 1837.
Até a pergunta “Mas e à esquerda?”, entendo que foi feita uma síntese adequada da conjuntura, tirando o equívoco de afirmar que o PT possui facções, o que talvez não seja um simples deslize. Mas como não sou versado na interpretação dos significados das manifestações do insconsciente, não me alongarei.
Ademais, há uma alternância – talvez proposital, talvez acidental – entre falar em setores da esquerda e A esquerda.
Quais as condições objetivas na atual conjuntura para uma “luta social radical”? No atual estágio do capitalismo, no atual ciclo das lutas sociais, como recuperar a “radicalidade num âmbito… de mobilizações coletivas”? Não espero que tenham a resposta, fiquem tranquilos. Sei que o objetivo é apontar a necessidade de tal radicalidade.
Que esquerda (insisto na homogeneização) é essa que “deixa de associar-se às movimentações coletivas dos trabalhadores”? Se o autor refere-se aos petistas e aos identitários, seria o caso de nos perguntarmos inicialmente se defini-los como esquerda faz sentido. Se por esquerda entendemos a luta anticapitalista, nem petistas e nem identitários se definem ou militam nesse sentido.
Então, me pergunto com quem o autor está a polemizar. O que seria essa esquerda à esquerda, cujo atestado de óbito o autor assinou e um dos comentaristas ratificou?
Salvo equívoco, os libertários seguem fiéis à abstenção e não me parece aderirem à conciliação de classes petista. Mas sejamos sinceros, estes são importantes para analisar a conjuntura, para formularem críticas, vez ou outra conseguem ter alguma relevância em movimentos sociais, mas na conjuntura mais ampla são/somos objetivamente pouco relevantes.
O número de greves ocorridas indica que diferentes categorias têm parado, mas não vai além disso. Não dá para deduzir que essas greves entre 2019 e 2021 sejam expressão de radicalidade, ao menos não no sentido de radicalidade anticapitalista; as evidências apresentadas pelo próprio autor indicam que, no geral, tais greves não foram além da exigência de direitos, o que o autor apontou como parte do pacto/arranjo conservador.
Claro, qualquer paralisação do trabalho carrega na essência o potencial de radicalidade, pois para além das demandas expressam a contestação de que todo o tempo de trabalho comprado pelo capitalista deve ser produtivo. Mais do que isso, são atos de quebra da disciplina, de questionamento da hierarquia, das normas e de constituição de laços de solidariedade.
Então, pergunto se nessas greves há evidências de que “a esquerda brasileira em geral” as sabotou? Continuo a perguntar a que esquerda o autor se dirige? Se for aos petistas, aos psolistas, aos identitários, é chover no molhado. Os sociais democratas, mundo afora, abdicaram da revolução há tempos, identitários nunca colocaram em questão as relações sociais de tipo capitalistas, apenas lutaram e lutam por um lugar ao sol.
O último parágrafo parece revelar ao menos um dos oponentes, que afinal não seria um moinho de vento: os incendiários. São eles o interlocutor oculto?
A oração final volta a demonstrar alguns equívocos que me parecem centrais no cerne da argumentação: a generalização sobre a esquerda e, principalmente, uma noção de “o quanto pior melhor”, expressa na afirmação “temerosa de lutar num cenário mais adverso”. Uma “esquerda à esquerda” viva é aquela que luta no cenário mais adverso, que age como vanguarda, que vai além das condições objetivas de luta? Se sim, sei não, acho que já vi isso em outros períodos históricos.
Peço licença para irmos ao que não está escrito: estaria o autor a sugerir que a tal esquerda a quem se dirige deveria ignorar a atual disputa eleitoral, pois tanto faz lutar sob um governo de extrema direita que promoveu o aumento substancial dos CACS e um governo de conciliação de classes?
Insisto: a que esquerda o autor se dirige? Aos petistas? Aos identitários? Se sim, repito: eles não se reivindicam anticapitalistas e tampouco militam como anticapitalistas. Já nem se definem como esquerda, mas como progressistas, adeptos de um “socialista refinado”. Ao tal Galo e aos jovens universitários e intelectuais que se empolgaram com ele e seus companheiros? Se sim, também não vejo potencial revolucionário em tais sujeitos sociais.
Na etapa em que vivemos, realmente há que se concordar que à esquerda do que um dia foi esquerda não há vida. Mas que bom que há iluminados para alertar aos mortos-vivos que eles morreram. Sim, estamos todos mortos. O que um dia foi novo, envelheceu e se incorporou à engrenagem de moer gente exercendo o papel de controlar a radicalidade; os identitários surgiram do refluxo das lutas autonomistas e nunca foram nada além de fragmentadores da identidade de classe; a extrema esquerda se resume a uma infinidade de pequenos e dispersos grupos, englobando dos partidos nanicos aos independentes como eu que aqui estou a usar meu tempo para debater com meia dúzia de companheiros, todos nós irrelevantes, todos mortos-vivos, todos nós grãos de areia.
Numa perspectiva de longo prazo, o próximo domingo será só mais um episódio inserido nas ondas de Kondratiev que se combinam com os ciclos de avanços e recuos das lutas sociais, mas confesso que compreendo a posição dos mortos que sem esperanças de qualquer avanço imediato na construção de relações sociais de tipo novo optam pela não abstenção. Todos nós temos nossas incoerências, nossas limitações e contradições, afinal somos mortos que ainda digitam.
Manolo,
O MDB nunca foi um partido ideológico. É um partido constituído de interesses e, como você bem coloca, busca manter presença constante no alto escalão do governo federal. Diga-se de passagem, houve durante todo o governo Bolsonaro apenas um ministro do MDB, Osmar Terra, entre janeiro de 2019 e fevereiro de 2020. E é preciso lembrar que o governo federal foi presidido, entre 2016 e 2018, por um dos maiores líderes do partido, Michel Temer, cujo gabinete teve 15 ministros do MDB. É natural que o MDB – depois da ruptura com o PT em 2016, chancelada pela maioria do partido, e depois do governo Temer, quando esteve no centro da administração pública federal – resolvesse marcar posição à direita contra Bolsonaro, apresentando candidatura própria em 2022, depois de ter sido preterido por Bolsonaro na composição do atual gabinete, mesmo depois de sucessivas crises políticas.
Não creio que haja, pois, uma preferência ideológica por Lula. Há no MDB uma miríade de interesses, que convergem sempre para o poder, atraídos pela força gravitacional predominante no momento ou em determinado período. No passado convergiram para Lula, depois foram atraídos para outra direção. Agora convergem novamente para Lula. E o MDB, por outro lado, busca sustentar o sistema de acomodação que refiro neste e noutros artigos.
Me parece que o que existe, da parte de lideranças do MDB, é um conjunto de considerações pragmáticas, não uma preferência perene por Lula. Há história também nas relações entre MDB e PT. Assim, a preferência de setores consideráveis do MDB pela atual candidatura de Lula parece estar relacionada aos seguintes fatores: 1) a pré-candidatura de Tebet foi anunciada em dezembro de 2021, mas não decolou nas pesquisas: candidaturas estaduais ficariam, portanto, enfraquecidas; 2) Lula iniciou articulações com líderes do MDB em julho de 2022, prometendo apoio regional a candidatos do partido e, evidentemente, abrindo-lhes as portas de seu futuro governo; 3) além do mais, Lula é o político mais competente na acomodação de interesses. Daí a validade, a meu ver, da definição da divisão do MDB, propiciada pelo retorno de Lula ao centro do tabuleiro eleitoral a partir de abril de 2021, como um racha. Lula recompôs elos que haviam sido rompidos com o MDB e, no mesmo movimento, frustrou a expectativa da maioria do partido – e de setores do PSDB e do Cidadania – de alcançar uma coesão interna suficiente para sustentar a candidatura de Tebet sem oposições internas significativas.
Quanto ao PDT e Ciro Gomes, considero-os sim uma outra versão do centrismo conservador hegemonizado por Lula. A diferença é que, da parte do PT, a terceira via foi constituída a partir de um movimento ascendente, de organizações endógenas da classe trabalhadora rumo ao Estado. Num eventual governo de Ciro Gomes, entretanto, tudo indica que ele faria um movimento inverso, descendente, buscando o apoio dessas organizações para a inauguração de uma nova terceira via. Note-se: Ciro tentou aliar-se aos principais partidos de esquerda e centro-esquerda em 2018 e a um deles em 2022. Evidentemente, na medida em que o movimento seria descendente, partindo do Estado em direção a organizações da classe trabalhadora, seria o Estado o polo a predominar na relação, em conformidade com a perspectiva nacional-desenvolvimentista, mais autoritária e centralista de Ciro Gomes, e é por isso que os partidos de esquerda e centro-esquerda são, para Ciro, um instrumento absolutamente fundamental.
Por fim, não se trata de negar a história, como se ela tivesse ficado em suspenso desde 2018. Trata-se de constatar que, a despeito da evolução histórica, uma vez mais se enfrentam – claro, sob novas condições – os mesmos campos políticos que se enfrentaram em 2018, o do centrismo conservador e o da extrema-direita populista. Lula continua a hegemonizar o campo conservador porque, de um lado, é muito hábil na execução de uma política de acomodação de interesses e, de outro, personifica a ascensão social. Por outro lado, o apoio recebido por Bolsonaro, de aproximadamente 30% da população, me parece dever-se ao seguinte: o governo Bolsonaro foi marcado por um crescimento econômico medíocre, tendo sido mantidos, portanto, obstáculos à ascensão social, à distribuição de riqueza e à acumulação de capital. Pior ainda, as condições de vida dos trabalhadores despencaram para um nível desesperador. A maior parte da população brasileira identifica Bolsonaro, e com razão, como o principal responsável. Mas a base social que deu sustentação à gestão caótica de Bolsonaro, inclusive nos momentos mais graves da pandemia, responsabiliza um suposto mainstream de esquerda pela frustração generalizada e a deterioração nas condições de existência.
A propósito, é preciso notar que Lula possui grande vantagem entre eleitores com renda familiar mensal de até dois salários mínimos. Bolsonaro, por sua vez, se sai melhor entre eleitores com renda familiar mensal entre dois e cinco salários mínimos, ampliando a vantagem entre eleitores com renda familiar mensal entre cinco e dez salários mínimos. A vantagem de Bolsonaro diminui, entretanto, quando chega-se ao estrato de mais de dez salários mínimos (ver, por exemplo, estes dados do Ipec: https://especiaisg1.globo/politica/eleicoes/2022/pesquisas-eleitorais/presidente/1-turno/).
Ou seja, Lula continua a representar, de um lado, o sonho de ascensão social e, de outro, o consenso conservador que viabiliza a acumulação de capital e impulsiona o crescimento econômico, além de uma saída para o atual cenário desesperador de terra arrasada, enquanto Bolsonaro representa quem fica a meio do caminho, pessoas que – com o acirramento da concorrência num contexto de baixo crescimento econômico, para o que colaboraram ativamente – continuam ressentidas, frustradas, instrumentalizando uma identidade masculina, viril, violenta, racista, irracionalista e machista na disputa por postos de trabalho, fatias de mercado e cargos de gestão.
Não é que a história tenha ficado em suspenso, e sim que, a despeito da evolução histórica, num aspecto as coisas mantiveram-se inalteradas: o baixo desempenho da economia, a deterioração das condições de vida e os conflitos distributivos. É nesse sentido que se explica outra constante: o fato de as mesmas forças políticas ocuparem o tabuleiro eleitoral, embora sob novas condições.
O que mais me parece estranho nesse período eleitoral é que os que vivem afirmando que a dinâmica da economia e as necessidades do modo de produção determinam o campo da política subitamente passam a proclamar a supremacia da política sobre os interesses econômicos. E então ficam clamando a soberania do eleitor e a livre escolha dos cargos eletivos.
O artigo não trata disso diretamente, mas acho que a crise do PSOL é um acontecimento importante na produção da sensação de que a esquerda morreu. A ideia de que a esquerda morreu tornou-se mais imediatamente plausível agora que, pela primeira vez desde 2006, não temos nos debates a presença daquilo que a imprensa chama de ‘esquerda radical’ (mesmo em 2018, o Boulos cumpriu porcamente o papel, levando número considerável de psolistas a votar em Ciro). Mas há uma disparidade evidente entre o fato mesquinho da crise do PSOL e a gravidade da ideia de que não existe esquerda no Brasil. A esquerda não morreu agora, nesse ciclo eleitoral sem ‘esquerda radical’ na televisão – seria preciso perguntar em que momento a política socialista de fato esteve viva entre nós, se é que algum dia esteve. Quem são os militantes revolucionários cuja memória a atual esquerda ultraja? Seria interessante aprofundar esse ponto, porque para a imensa maioria da esquerda brasileira pregressa o que se faz hoje em nome do socialismo não causaria tanto espanto assim. Afinal, a política socialista começa a se organizar no Brasil no momento em que definha a nível internacional.
Concordo com o ponto básico do artigo: faça chuva ou faça sol, os socialistas devem tentar organizar os trabalhadores de forma independente. Devem romper a dinâmica de apoio crítico ao partido capitalista ‘mais nacionalista’ e ‘mais estatista’ e para isso devem se livrar de seu nacionalismo e de seu estatismo. Isso é também uma questão de formação de quadros: a intelligentsia de esquerda precisa se livrar de seu próprio entulho ideológico para poder se vacinar contra a sedução da retórica pseudo-radical dos partidos capitalistas. Infelizmente, mais uma geração está sendo profundamente deseducada – agora não somente por professores universitários e intelectuais ligados a partidos, mas também por essa desgraça chamada youtuber de esquerda. É bem provável que os socialistas estejam destinados à irrelevância completa durante um longo período, mas eles certamente estarão destinados à irrelevância eterna se continuarem empenhando todas as suas energias na tarefa (nobilíssima, pia e até certo ponto necessária) de gerir o colapso social da melhor forma possível.
“Quando Fagner Enrique menciona as dissidências que Bolsonaro sofreu, não pude deixar de recordar que no início o bolsonarismo podia ter-se convertido num verdadeiro fascismo, pois tinha para isso uma base militante e aguerrida, verdadeiras milícias de rua. Não o fez, o que levou essa base política a abandoná-lo, e o actual isolamento veio da simetria operada pelas dissidências conservadoras”
Caros Fagner e João Bernardo,
Diante do resultado das eleições, com uma ampliação inequívoca da extrema direita, há de se falar em “abandono da base bolsonarista”? Será que de fato Bolsonaro perdeu a “base militante e aguerrida”? Será que a “conversão”, à direita, fascista não se encontra em pleno progresso? Será que a “outra” opção nao seria uma conversão fascista à esquerda?
Os resultados das eleições parecem demonstrar que o bolsonarismo é maior que Bolsonaro e que não vai embora tão cedo. Venceu em todos estados da região sul (além do centro-oeste) e na maior parte do sudeste , inclusive em São Paulo, onde o candidato a governador de Bolsonaro foi o mais votado com uma expressiva vantagem sobre o segundo colocado.
Se Bolsonaro era tido aqui no Passa Palavra como cachorro morto, ele não só latiu, como mordeu pesadamente….
É como João Bernardo sempre fala… O Brasil está no mundo… Assim como estão a Itália, a Suécia, e mesmo Trump, Le Pen, etc…
Tatu Dodo Minado,
Creio que no começo do seu mandato Bolsonaro tinha condições para lançar um fascismo radical, de rua, se mobilizasse a sua base mais truculenta. Não o fez, e essa base radical separou-se de Bolsonaro ou passou mesmo a criticá-lo publicamente. Ao mesmo tempo, e simetricamente, uma certa direita conservadora começou a mostrar-se reticente, e com razão, porque Bolsonaro presidiu a um governo caótico e disfuncional, com medidas inadequadas e uma enorme rotação de ministros. Pior, só o governo de Pedro Castillo no Peru.
É neste contexto que as eleições de domingo me parecem especialmente significativas. 1) O eleitorado de Bolsonaro não se assustou com a incompetência e o caos governativo, mostrando-se exclusivamente interessada pela mensagem ideológica de Bolsonaro. Isto significa que o afastamento da base radical não teve repercussões eleitorais. 2) O eleitorado relegou para a quase invisibilidade os candidatos que se propunham como «competentes», de modo que as reticências de alguma direita conservadora não impediram Bolsonaro de formar uma sólida base na Câmara e no Senado.
Parece-me muito pouco verosímil que no segundo turno Bolsonaro consiga superar os 5 pontos percentuais que o afastam de Lula. Foram muitos os abstencionistas, mas haverá razões para serem menos daqui a quatro semanas? E a maioria dos que se abstiveram no primeiro turno em quem votaria no segundo turno? Para já, e pondo de lado estes factores de indecisão, penso que uma presumível vitória de Lula seria onerada 1) pela escassa margem de votos que lhe asseguraria a maioria, 2) pela forte oposição com que depararia na Câmara e no Senado e 3) pelas concessões que entretanto teria feito aos políticos do centro, nomeadamente Simone Tebet.
Voltamos então aos fascistas radicais. Derrotado, mas com um forte apoio parlamentar, será que Bolsonaro se decidirá a estimular a sua base truculenta, as milícias de rua informais? Talvez eu deva inverter a pergunta. Será que os fascistas radicais e truculentos se lançarão em acções de rua, de modo que eles mesmos se imponham a Bolsonaro?
Se isto suceder, como conseguirá erguer-se uma barreira sólida que impeça o avanço do fascismo radical? Se o título deste artigo me parecia pertinente quando ele foi publicado, mais ainda me parece depois de domingo.
Como se pode constatar pelo comentário acima, nem só de suas idiossincrasias se alimenta João Bernardo.
Continua vivo e forte seu pensamento e sua capacidade de compreender os meandros dos labirintos do Fascismo.
À Esquerda jaz uma esquerda? Certamente. Mas não toda e completamente ela.
Algo ainda pulsa.
Caro João Bernardo,
Creio que há um equívoco em afirmar que a base radical afastou-se de Bolsonaro. Talvez, similar aos fluxos e contra-fluxos experimentados por Hitler antes de chegar ao poder e hegemonizar-se, Bolsonaro conseguiu conter e liberar sua base radical na medida do necessário para manter-se e, agora, para prolongar-se no poder. Os assassinatos e agressões cometidas por bolsonaristas são a mais fiel expressão deste sintoma. Quanto a Lula ganhar, tenho sérias dúvidas. Se o ressentimento é combustível para inflamar o fascismo, Lula o tem bastante, à direita e à esquerda, como bem simboliza Ciro Gomes…
Prezado JB,
Quem seria a base radical (e armada) de Bolsonaro? Policias e CACs? Estariam as polícias dispostas a ir às ruas de armas à mão radicalizar em nome de qualquer coisa? Tvz no Rio de Janeiro isso possa acontecer diante do fenômeno das milícias.. mas no resto do Brasil, duvido bastante. Quanto aos CACs, como o comentário de Manolo esclareceu acima, bem…tvz a história seja outra.
‘O eleitorado de Bolsonaro (…)mostrando-se exclusivamente interessada pela mensagem ideológica de Bolsonaro.’
Um eleitorado que se mostra exclusivamente interessado por uma mensagem ideológica radical nâo seria ele igualmente radical?
hmm… https://www.economist.com/the-americas/2022/10/04/to-win-brazils-presidency-lula-should-move-to-the-centre
Aos comentadores acima.
Eu não escrevi que houve uma ruptura entre Bolsonaro e sua base radical, e sim que, por não ter deflagrado uma tentativa de golpe em 2021, na sequência do 7 de setembro, Bolsonaro passou a sofrer duras críticas de sua base radical. Houve então um afastamento entre Bolsonaro e essa base, mas nada impede (1) uma reaproximação e (2) que essa base continue a votar em Bolsonaro. À esquerda é a mesma coisa: quantas vezes Lula e o PT enfrentaram dissidências ou oposições no campo da esquerda? Isso fez os dissidentes deixarem de votar em Lula? Fez a extrema-esquerda deixar de votar em Lula? Existem os abstencionistas, claro, os defensores do voto nulo, etc., mas no geral as pessoas continuam votando, nos momentos mais decisivos, em candidatos do PT (Dilma, Haddad, o próprio Lula).
Enfim, não houve uma ruptura entre Bolsonaro e sua base radical, a meu ver, porque não há qualquer liderança alternativa a Bolsonaro no campo da extrema-direita populista, e porque, por outro lado, como atesta o resultado da votação de domingo, a direita radical ocupa hoje o espaço antes ocupado pela direita moderada. Concordo, nesse sentido, com a análise de Mathias Alencastro, publicada na Folha de S.Paulo (aqui: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/mathias-alencastro/2022/10/avanco-de-bolsonaro-encerra-historia-da-direita-moderada-no-brasil.shtml). As eleições deste ano mostram que o bolsonarismo veio para ficar e que a direita moderada foi pulverizada. Mas o campo conservador ainda subsiste, em torno de Lula e do PT.
Quanto ao lavajatismo, houve sim uma ruptura, mas nada impede uma reaproximação: Deltan Dallagnol, por exemplo, declarou apoio a Bolsonaro no segundo turno (https://veja.abril.com.br/politica/deltan-declara-apoio-a-jair-bolsonaro-no-segundo-turno/); com Sergio Moro as coisas parecem mais complicadas: após ter sido eleito senador, auxiliares de Bolsonaro declararam à imprensa que Moro telefonou ao presidente em busca de uma reconciliação, mas Moro apressou-se em negar a informação (https://veja.abril.com.br/coluna/radar/eleito-moro-telefona-para-bolsonaro-e-declara-apoio-contra-lula/). É possível que se reconcilie com Bolsonaro? Sim, mas isso não invalida a constatação de que houve uma ruptura, e inclusive a disposição para formar uma frente com a esquerda, sem o PT.
Rés Sentimentos e Breno,
Acrescento alguma coisa ao que Fagner Enrique já expôs no seu último comentário.
A truculência de rua a que me refiro não se mede por actos de violência isolados e descoordenados. A questão consiste em saber se renascerão movimentos como o MBL ou aquele acampamento em Brasília animado por uma menina muito peculiar, cujo nome esqueci. Nem se trata de ver a Polícia Militar descer à rua em batalhões, embora a cumplicidade dos agentes dessa instituição seja fundamental para a formação de milícias de novo tipo. E se for exacto, como penso, que o eleitorado de Bolsonaro se mostrou sobretudo interessado pela sua mensagem ideológica, então aquele tipo de milícias contará com uma simpatia generalizada e que lhes assegurará o necessário respaldo político. Quando eu falo de um bolsonarismo radical, penso em núcleos truculentos bem organizados, capazes de arrastar consigo massas provenientes de um leque de insatisfações mais amplo, que se lancem em acções próprias e, por isso, consigam impor-se ao próprio Bolsonaro. Seria esse o fascismo radical, que não pode ser impedido por alianças à direita nem por jogos de cintura no Congresso.
E quem haverá para se opor a um possível fascismo radical? Nestas eleições a opção política do PSOL — ou talvez eu devesse dizer, a sua falta de opções políticas — não abriu nenhum espaço à esquerda. Quem ainda não fez as contas, faça-as e veja que o pope Kelmon teve mais votos do que tiveram, somadas, as candidatas do PCB e do PSTU. À esquerda, como escreveu Fagner Enrique, jaz uma esquerda.
Joker,
Se o Brasil está no mundo, é indispensável que os brasileiros conheçam a opinião que o mundo tem sobre o Brasil. Neste caso, a opinião que tem sobre Lula um dos mais lúcidos órgãos do capitalismo mundial. Para quem não o tiver lido, o artigo de The Economist que você mencionou defende que Lula deve aliar-se com o centro-direita, de modo a mostrar que tenciona prosseguir uma orientação económica sem concessões à esquerda, ou seja, sem estatismo e sem abertura aos movimentos camponeses. Ora, é precisamente o apoio desse centro-direita que Lula se esforça agora por obter para o segundo turno.
Acabei de receber e peço licença para compartilhar:
https://12ft.io/proxy?q=https%3A%2F%2Fwww1.folha.uol.com.br%2Fcolunas%2Fpainel%2F2022%2F10%2Fmovimento-sindical-sofre-derrotas-e-liderancas-ficam-fora-do-congresso.shtml
A leitura dos artigos do PassaPalavra costuma ser obrigatória, já comentá-los nem tanto…
Coletivos fechados em si mesmos estão aprisionados em seus limites, em geral sem disto se aperceberem. Esses limites não podem ser rompidos a partir de fora. A superação deles se dá pela dinâmica interna do coletivo. Ou não se dá…
No bojo da discussão sobre o artigo nesta área de comentários, surge uma postagem de João Bernardo da qual destaco o trecho abaixo:
《 Será que os fascistas radicais e truculentos se lançarão em acções de rua, de modo que eles mesmos se imponham a Bolsonaro?》
Sendo Fascismo a forma nua e brutal assumida pelo Capitalismo quando em crise aguda, e considerando as relações sociais que o engendram, é possível citar 3 erros fatais cometidos pelo setor majoritário da classe dominante no Brasil:
• o Golpe de 2016.
• a prisão de Lula em 2018.
• permitir o enraizamento popular de Bolsonaro.
O sistema político se desestabilizou, a classe dominante não conseguiu viabilizar candidatura puro-sangue e Bolsonaro ganhou vida própria.
Para minimamente resgatar o sistema político do colapso no qual se encontra, Bolsonaro precisa ser neutralizado.
A burguesia no Brasil não tem escrúpulos em se livrar de presidentes, quando se tornam um estorvo. Fez isto com Getúlio, Jango e Dilma. Como também com Castelo Branco, Costa e Silva, JK, Jango e Lacerda.
Agora chegou a vez de Bolsonaro. Eis o dilema para a classe dominante: como fazê-lo?
🔪 Uma nova “facada”, desta vez não-fake, iria apenas consolidar o “mito”.
Só há uma forma de combater um falso mito: desmascará-lo, desmoralizá-lo, chantageá-lo, destruí-lo emocionalmente.
Este processo já está em curso desde a campanha, com a postura do STF em combater as fake-news, acompanhada da divulgação de notícias sobre corrupção do clã Bolsonaro.
Assim como declaração de voto em Lula, incluindo Joaquim Barbosa e Armínio Fraga, Fátima Bernardes e Felipe Neto. Não há acaso, muito menos coincidência, nesta movimentação de apoio público.
Por outro lado, tanto a campanha Lula quanto a de Bolsonaro estimularam a expectativa de uma vitória já no 1o. turno. A frustração talvez seja ainda maior entre os bolsominions.
A medida em que o “mito Bolsonaro” seja desconstruído pelo setor majoritário da classe dominante neste 2o. turno, a raiva e decepção bolsominion irá se avolumar.
Uma prévia desta situação atual ocorreu no 7 de Setembro de 2021, quando o golpe anunciado pariu não mais do que ratazanas no Planalto.
Um dique pode estar a ponto de se romper. Como sabemos, o ressentimento é um dos mais potentes combustíveis do Fascismo.
E aqui cabe perguntar: está em gestação um neo-fascismo maior do que Bolsonaro, assim como, inversamente Lula é maior do que o PT?
A classe dominante no Brasil está cometendo seu 4o. erro fatal.
As próximas semanas serão de fenômenos bizarros.
Pouco depois do meu comentário postado hoje cedo, Moro declarou apoio a Bolsonaro no segundo turno:
https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2022/10/04/sergio-moro-declara-apoio-a-bolsonaro.htm.
Efetiva-se assim a reaproximação entre o lavajatismo e o bolsonarismo, o lavajatismo assumindo novamente a posição de força auxiliar do bolsonarismo.
Fico em dúvida, porém, se os lavajatistas vão até as últimas consequências no apoio a Bolsonaro, isto é, se estarão dispostos a dar sustentação às tentativas de Bolsonaro – que estão por vir – de impedir a transferência do poder a Lula.
Entretanto, isso não muda o quadro geral de isolamento de Bolsonaro frente às principais instituições capitalistas. Na verdade, parece que, diante da alta probabilidade de retorno de Lula ao poder, Bolsonaro recupera apoios dentro do seu próprio campo, o que é compreensível, pois não era previsível um retorno do PT ao poder quando Bolsonaro deparou com dissidências/oposições nesse campo.
Quanto à moça mencionada no último comentário de João Bernardo, é a Sara Winter, ex-Femen e líder dos 300 do Brasil. Ela foi uma das militantes radicais do bolsonarismo que se afastou de Bolsonaro e fez-lhe críticas públicas.
João, foi mesmo nesse sentido que eu compartilhei o link. Penso que em uma passagem;por exemplo, onde a economist sugere que Lula precisa garantir que não haverá tomada de terras dos latifundios, ele pode fazê-lo sem romper com o discurso atual, só precisa repetir aquilo que é pregado pela própria empresa MST S.A. o movimento político não ultrapassará os limites da própria garantia constitucional e consolidará sua presença no mercado financeiro. Nas palavras dele,inclusive, não foi o Alckmin que aceitou o MST, mas o contrário. O MST que se converteu num capital simbólico no mercado.
E parece que a lógica identitária foi absorvida pela direita
“Partidos que mais elegeram deputados federais negros são de direita
Crescimento ocorre após instituição do peso dois para candidaturas femininas e de pessoas pretas e pardas”
Matéria completa no link
https://12ft.io/proxy?q=https%3A%2F%2Fwww1.folha.uol.com.br%2Fpoder%2F2022%2F10%2Fpartidos-que-mais-elegeram-deputados-federais-negros-sao-de-direita.shtml
Até sindicalistas policiais perderam. Agora a moda é policial influencer no Congresso: https://ponte.org/bancada-da-bala-troca-policiais-sindicalistas-por-influencers-na-camara/
Bolsonaro 2: Sucateamento do Estado e apropriação do fundo público às custas de políticas sociais em saúde e educação, enquanto mantém Auxílio Brasil. Avança a pauta ideológica, ideologia de gênero, escola sem partido, anticomunismo, escolas e sociedade militarizadas, mídia engolida pelas pautas ditadas pelo bolsonarismo, especialmente a dos costumes, igrejas assumindo ainda mais tarefas de socialização e lazer e formação ideológica de indivíduos protofascistas; redefinição religiosa do que seria um Estado laico. Superexploração da classe via desarticulação de direitos e canalização política, jurídica e ideológica no sentido do empreendedorismo como valor supremo. Superendividamento estatal e privatizações como forma de mitigar os impactos no curto prazo. Fracasso econômico cai no colo de Jair inviabilizando algo análogo a Bolsonaro 3 (Flávio ou o próprio Jair). Após 8 anos no poder e tantas denúncias, fica difícil se sustentar como outsider do sistema, mas enquanto o bolsonarismo caminha lentamente para rachas internos novos quadros bolsonaristas se forjam, o bolsonarismo sobrevive a Jair e ganha força com uma nova liderança não tão bossal e por isso muito mais perigosa; Diante do inimigo comum e de confluências de interesses econômicos e políticos, uma força de oposição surge e algo como uma “esquerda” caminha para se articular face a uma agudização dos conflitos sociais;
Lula 3: Lula não consegue viabilizar nada do que era possível em 2003 a 2010, devido à profundidade da crise econômica e ao boicote deliberado de bancadas bolsonaristas, bem como outras forças da sociedade civil; Superendividamento estatal e perda de apoio internacional. Desde 01 de janeiro de 2023 todo e qualquer impacto econômico decorrente do desgoverno Bolsonaro (ou da crise internacional) cai no colo de Lula e do PT, dando caldo para denúncias de estelionato eleitoral, incompetência e corrupção. Em pânico, esquerda aos pedaços fica cotidianamente presa à tarefa de evitar um impeachment ou golpe legitimado socialmente. Alternativas mais radicais sofrem boicote internamente, posto que “não é a hora” de fazer nada q não seja apoiar Lula. Enquanto isso a direita segue sua construção de poder fora do Estado e do governo, nas mesmas áreas, por meio das mesmas instituições, tudo do mesmo modo como faria com Bolsonaro no poder, mas com muito mais força e crescendo muito mais rapidamente, uma vez que tudo de negativo que surgir no caminho pode ser direcionado como culpa de Lula e do PT e, portanto, “do sistema”;
A revolução fascista bolsonarista é uma realidade, e as instituições capitalistas democráticas e de esquerda se uniram para tentar contê-la, tornando-a, por isso, inevitável, uma vez que só poderia ser evitada se fossem engendradas alternativas novas (o que poderia levar a algo como uma “dualidade de poderes”) e não a pura e simples negação do novo e defesa do velho arranjo;
Se o PT vencer, o Bolsonarismo se fortalece. Entretanto, apenas deixar o poder a Bolsonaro e que ele morra por sua própria boca não parece ser uma opção muito inteligente ou segura.
À esquerda jaz uma esquerda e por isso estamos lascados de qualquer modo.
Antes que algum Mussolini lance mão
Bolsonaro acirra a Luta de Classes, Lula tenta abafá-la. Bolsonaro acaba sendo perigoso demais para a classe dominante.
Bolsonaro “tumultua”.
Bolsonaro insere no jogo político a mobilização popular, algo a todo custo evitado por Lula.
Só que o projeto político representado por Bolsonaro é inviável, seja como ditadura militar ou abertamente neo-fascista.
O preço de gerir o caos bolsonarista pode ser exemplificado pela proposta bolsominion de atropelar aqueles no meio da rua passando fome, “pro País não ter mais despesas com esses vermes”.
Bolsonaro precisa ser contido: esta é a mensagem à burguesia no Brasil veiculada pela The Economist.
Começam os primeiros momentos de algo desconcertante e até cômico.
O mesmo tipo de campanha de desestabilização de governos de Esquerda, historicamente promovidas pelo Imperium, agora se voltará contra Bolsonaro.
Não só sua base eleitoral, como em especial sua base social, serão alvo de ataques, com todo o profissionalismo das agências globais de inteligência, para destruir o “mito”.
• A matéria publicada na The Economist é clara: “Um segundo mandato de Bolsonaro seria ruim para o Brasil e o mundo”.
• Os interesses econômicos representados pela The Economist estão, e continuarão, atuando politicamente para eleger o candidato de sua preferência (Lula).
• As recentes declarações públicas de voto em Lula, de Armínio Fraga aos caciques decrépitos do PSDB (Serra e Aloysio Nunes), passando pelo apoio de Simone Tebet e Tabata Amaral, são alguns dos resultados flagrantes da posição política expressa na The Economist em favor de Lula.
• Já se nota também o início de uma atuação insidiosa, portanto menos óbvia, para desestabilizar Bolsonaro (como o vídeo, desenterrado de 2014, da presença dele numa reunião da Maçonaria).
• A declaração de Daciolo, sobre a facada fake, pode ser um rastilho de pólvora para ameaçar Bolsonaro com uma desmoralizante explosão.
Há um difícil porém: o enraizamento popular alcançado por Bolsonaro.
Mais até do que apenas isto.
A extrema-direita hoje no Brasil tem não só força eleitoral como base social e corpo político.
Não basta desmoralizar Bolsonaro e impedir sua vitória. Será preciso reverter a força da extrema-direita brasileira, antes que adquira vida própria como movimento neo-fascista em busca de um Mussolini.
PS: a vidência demonstrada em comentário acima por Mãe Diná é impressionante. Atende também casos particulares?
A CONFERIR
http://pantopolis.over-blog.com/2022/10/sergio-bologna-nazisme-et-classe-ouvriere-1933-1993-mai-1994-lumhi-traduction-de-l-italien-jean-pierre-laffitte.html?utm_source=_ob_email&utm_medium=_ob_notification&utm_campaign=_ob_pushmail
Para quem é mais familiarizado com o inglês:
https://libcom.org/article/nazism-and-working-class-sergio-bologna
Dá uma bela tradução