Por Alan Fernandes

Não são poucos os poemas de Brecht que revelam seu humanitarismo e a vertente ideológica a que se afiliou. Tendo crescido e feito arte durante o período do stalinismo, o autor, porém, nunca se comprometeu por professar a orientação política soviética, ainda que seus escritos sejam a expressão mais límpida da fraternidade entre trabalhadores. Um traço importante da arte de Brecht é que este se ocupou dos efeitos concretos da alienação do trabalho na sociedade capitalista. Autores como João Bernardo afirmam que essa disposição é a de olhar para a mais-valia enquanto uma relação social, e pensam as relações de produção a partir da reificação promovida pelo trabalho, que a análise econômica, por muitas vezes, também pode desconsiderar.

Seus poemas Perguntas de um operário que lê e General, teu tanque é um carro forte desvelam como o componente humano e a consciência humana podem ser subestimados nessa reificação. A disciplina do trabalho e a própria ideia que o trabalhador, definido por sua atividade, é um sujeito passivo na economia, enquanto o comprador da força de trabalho, o capitalista, este sim, é um sujeito ativo, é objetivo de suas reflexões e que define aquilo que João Bernardo chamou de marxismo que põe em xeque as relações sociais de produção.

Terá a ideia de autonomia no anticapitalismo morrido com Brecht? Evidente que não, e temos menos razão ainda para crer que, se ela ainda existe, esteja a tantos quilômetros de distância. Wilson das Neves, por exemplo, quando ameaçava que o morro desceria para a pista fora de período de carnaval, estava dizendo precisamente que os populares não dependem dos intelectuais para fazer aquilo que um ex-hegeliano nos alertava no século XIX. A transformação da sociedade é obra dos próprios trabalhadores, ou não será. Tom Zé uma vez gravou uma composição sobre a classe operária. Dizia que os proletários teimavam porque não compreendiam, como os teóricos da classe operária, quais eram os verdadeiros anseios da classe operária. Perdoai-vos, São Marx! Eles não sabem o que fazem!

Dorival Caymmi, que eu não escuto há muito tempo, mas tempo suficiente para achar brilhante, faz do eu-lírico uma confusão artística: Seus versos dizem “o Mar”, “O barco”, “os peixes”, mas o que se constata não são coisas, mas pessoas e a disposição da práxis entre elas. Em A Jangada voltou só, por exemplo, Caymmi ressaltou o carinho dos pescadores pelos pescadores Chico Ferreira e Bento. A selvageria do mar, porém, fez que a jangada voltasse só. Como um objeto de trabalho, a jangada poderia viajar com tantos outros, mas seriam Chico e Bento substituíveis, afinal? Não para aqueles que os conheceram.

Na canção O Mar o personagem é Pedro, também um pescador:

Pedro vivia da pesca
Saía no barco
Seis horas da tarde
Só vinha na hora do sol raiá

Todos gostavam de Pedro
E mais do que todas
Rosinha de Chica
A mais bonitinha
E mais bem feitinha
De todas as mocinha lá do arraiá

Pedro saiu no seu barco
Seis horas da tarde
Passou toda a noite
Não veio na hora do sol raiá
Deram com o corpo de Pedro
Jogado na praia
Roído de peixe
Sem barco sem nada
Num canto bem longe lá do arraiá

Pobre Rosinha de Chica
Que era bonita
Agora parece
Que endoideceu
Vive na beira da praia
Olhando pras ondas
Andando rondando
Dizendo baixinho
Morreu, morreu, morreu, oh…

O mar quando quebra na praia
É bonito, é bonito.

Entre a penúltima e a última estrofe vê-se uma interrupção dramática. O mar, embora perigoso, é bonito. Assim se percebe. Pedro, no entanto, ofuscou a beleza do mar com sua morte, e talvez a beleza no mar resida nisto, em sua capacidade de ser domado pela humanidade, por Pedro, pela beleza dos homens.

Caymmi, narrador exógeno do canto reconhecia a beleza do mar, que era mórbido para Rosinha. As duas canções são do álbum O mar e o vento e em suas outras composições a pesca, o mar e os pescadores são os elementos essenciais, mas tudo é visto a partir do prisma do pescador, para quem o mar é seu objeto, enquanto é ele mesmo um objeto do capitalista. As pessoas e suas intuições são, na arte de Caymmi, incorporadas à experiência do ouvinte. É apaixonante ver que, assim, podemos de forma única abandonar nossa singularidade e reconhecer a consciência de outros sujeitos, que nos são tão familiares. A pesca, para aquele que emprega o pescador, é tão diferente, ao passo que ele pode ouvir essa canção e sentir que ele mesmo esteja pescando. Mas chorará, como Rosinha, pela vida e consciência do pescador? A arte por vir manifesta o elemento prático da vida cotidiana sem a qual não é vanguardista, mas mera reprodutibilidade técnica, como observou Walter Benjamin.

Alan Fernandes é jornalista e estudante de Filosofia na UERJ.

2 COMENTÁRIOS

  1. Diz o autor: “tudo é visto a partir do prisma do pescador, a quem o mar é seu objeto, enquanto é ele mesmo um objeto do capitalista.” Não sei bem se estou de acordo com a perspectiva adotada pelo autor.

    Nas canções praianas de Caymmi, a voz grave, o cantar lento, dolente, quase lamentoso, é sobretudo um olhar estrangeiro sobre um certo tipo de pescador. Não é à toa que nessas canções o eu-lírico se expressa quase sempre em terceira pessoa. Descendente de italianos pelo lado paterno e de portugueses e africanos pelo lado materno, já em 1935, aos 21 anos, Caymmi cantava suas canções praieiras. Nelas, Caymmi cantou os pescadores artesanais de Salvador e do Recôncavo baiano, da Baía de Todos os Santos, que viveram entre o fim do século XIX e as três primeiras décadas do século XX. Cantou seu modo de viver e trabalhar, seus dias, suas noites, seus amores, suas dores. Caymmi nunca foi pescador, mesmo entendendo o cotidiano da pesca como poucos. A repetição de temas, entretanto, mostra como se esgotou rápido seu repertório temático, o que não se explica somente pela conhecida demora no fazer de cada canção. Pela força da repetição temática, saiu reforçado um aspecto no cancioneiro caymmiano de que falarei adiante.

    Noves fora isso, e ao contrário do que imagina o autor, muito dificilmente os pescadores da Baía de Todos os Santos estavam sujeitos a capitalistas. Ao menos não era esta a regra, o comum, o habitual. Eram, na verdade, artesãos. Não no sentido moderno, de “empreendedores” que fazem “artesanato” para vender na internet. Eram artesãos no sentido clássico: trabalhadores donos das ferramentas com que trabalhavam, donos dos ritmos e do tempo do próprio trabalho, que se valiam de técnicas de trabalho tradicionais, seculares, milenares até. Artesãos como o que hoje se chama de “povos e comunidades tradicionais” no xibolé das políticas públicas, categoria que aliás inclui os pescadores artesanais.

    No período escravista, eram descendentes de africanos, quando não africanos eles mesmos. Viviam nas vilas pescadoras das periferias de Salvador (Itapuã) quando livres, ou no entorno de armações de pesca (Saraiva, Gregório, Carimbamba, etc.) quando escravizados. Mesmo no pós-escravidão. era simplesmente inconcebível a estes pescadores vender sua força de trabalho a alguém.

    Por que fazê-lo, quando podiam simplesmente pegar seu barco e ocupar algum pedaço de roça no Recôncavo, cujas comunidades quilombolas conheciam tão bem?

    Comprovam-no, mais diretamente, os relatórios da Marinha que fundamentaram a criação das colônias de pesca entre os anos 1910 e 1940, em especial o da famosa “missão do cruzador José Bonifácio”, sob o comando do capitão Frederico Villar. Reiteradas tentativas de colocar a pesca artesanal sob a tutela do Estado evidenciaram, sempre, o mesmo panorama: além de certas configurações oceanográficas que dificultam sobremaneira a pesca industrial, a costa baiana foi desde sempre pontilhada por centenas de comunidades pesqueiras litorâneas, que existem ainda hoje como pequenos distritos de municípios costeiros, na forma de minúsculos povoados e pequenas vilas.

    As formas espaciais (no sentido geográfico da expressão) não mudam de uma hora para a outra. Podem, aliás, evidenciar a sobreposição de muitas “camadas conjunturais”, capazes de contar a História de um lugar. Quando olho para os lugares na Baía de Todos os Santos onde pululam vilas pesqueiras; onde são raros os grandes estaleiros, portos e armações de pesca; o que vejo não é um pólo de pesca industrial, ou mesmo vários pólos interligados, mas uma espécie de “malha” de comunidades pesqueiras minúsculas, interligadas por relações de trabalho e parentesco. É lá onde o pescador artesanal baiano oscila entre a pesca de pequeno porte e a agricultura de subsistência. Jaguaripe (cantada em A jangada voltou só), Maracangalha (da conhecidíssima canção homônima), Itapuã (das Saudades de Itapoã)… a geografia de Caymmi é a geografia da pesca artesanal, ou de seu entorno próximo.

    Além disso, circunstancialmente, as greves nas ferrovias baianas na primeira década do século XX, em que os trabalhadores, em sua maioria negros anteriormente escravizados, reivindicavam o fim dos tratamentos humilhantes (espancamentos, algemas, tronco, etc.) sob a bandeira “Tudo pelo trabalho livre!”, humilhações que a historiografia a tratar dos primeiros cinquenta anos após o fim da escravidão evidencia ter sido ainda muito comum naqueles tempos. “Trabalho livre”, para estes grevistas, significava viver livre do tipo de humilhação, opressão e exploração que percebiam como análogas às vividas sob o jugo escravista. Esta peculiar consciência de classe atravessava os corações e mentes de todos os trabalhadores negros baianos daquele período, como demonstram os registros e estudos em torno de outras greves no Recôncavo baiano das primeiras décadas do século XX, em especial na indústria fumageira.

    Este último aspecto deve ser entendido em relação com outro: no setor pesqueiro sob o escravismo, o trabalho era organizado numa espécie de emulação do regime das corporações de ofício portuguesas. A divisão de trabalho herdada dos povos indígenas, de quem portugueses e africanos aprenderam as técnicas pesqueiras adequadas ao ambiente, foi sendo paulatinamente suprimida em favor daquela hierarquia de “governantes”, “diretores”, “juízes” e “oficiais” típicas do regime corporativo lusitano. Mesmo trabalhadores escravizados eram sujeitos a este regime, que aliás consideravam bem mais favorável e preferível que a dura escravidão no eito, porque lhes permitia certa autonomia no trabalho e possibilitava acumularem certo pecúlio para a compra de suas alforrias. Este regime corporativo foi sendo, também ele, paulatinamente desmantelado, ainda durante o império bragantino; as hierarquias e formas de trabalho corporativas, entretanto, persistiram. “Mestres” e “contramestres”, por exemplo, persistem na hierarquia laboral pesqueira até hoje, tal como na capoeira. Mesmo a imposição do regime de colônias de pesca, a partir da década de 1920, não foi capaz de suplantar totalmente a pesca artesanal, ou mesmo as formas pré-capitalistas de trabalho sobreviventes no setor, e assim foi até pelo menos a implantação do regime instituído pelo Código de Caça e Pesca de 1934. A pesca, na experiência histórica dos pescadores artesanais baianos, vai desde caminho promissor para alcançar a liberdade, até, de certo modo, uma antítese do trabalho compulsório. É bem o contrário da alienação.

    Por que vender a alguém a própria força de trabalho, ademais, quando pescadores podiam construir seu próprio barco e rede artesanalmente e seguir pescando?

    A jangada, a canoa e a piroga são barcos pequenos, que se podia fazer com instrumentos simples e muita experiência prática. Mesmo um barco médio, como um saveiro, também se podia construir em pequenos estaleiros artesanais, ou mesmo em estaleiro algum. As redes, hoje de materiais sintéticos, há muito tempo se fazia trançando fibras das folhas de ticum ou macaíba. Fateixas se podia até mesmo improvisar com cordame, madeira e pedras, improvisação ainda mais fácil se se tratasse de um tauaçu para usar como poita.

    Abordada assim por vários lados seu cotidiano e História, são esses os pescadores de Caymmi. Não outros. Caymmi não cantou quaisquer pescadores. Cantou os pescadores de um tempo, de um lugar. Não poderia ser diferente: Salvador era uma cidade primordialmente marítima, os víveres do Recôncavo a ela chegavam quase exclusivamente por meio de jangadas e saveiros, sendo raro, quase excepcional, o recurso ao transporte terrestre. Os trabalhadores do mar, e também os portuários, eram da mais alta importância para a própria sobrevivência dos habitantes. Fossem assalariados ou artesanais, compunham uma camada social muito ciosa da própria importância, com hábitos e práticas próprios, algo talvez sem par na cidade naquele tempo. A vida social da cidade inteira girava em torno daquele porto para o qual o próprio desenho urbano da cidade era voltado. Marítimos e portuários de um lado, e ganhadeiras do outro, eram o sangue que pulsava pelas ruas da cidade. Sob tais circunstâncias, teria Caymmi cantado outra coisa?

    Ao cantar o pescador que tinha diante de si, Caymmi não se resumiu a narrar. Na superfície, os versos das canções marítimas de Caymmi são estritamente descritivos, simplórios, mesmo repetitivos. Despidos de todo ornamento, concentram-se na experiência miúda do dia a dia pesqueiro. Quem nada através do marulho, entretanto, é engolfado por uma épica tecida pela ação humana em meio às onipotentes forças da natureza (pois o mar do pescador é muito mais vivo que o mar do oceanógrafo). A louvação ao pescador que vence a força imparável do mar; o lamento pelo pescador que morre na luta contra a natureza hostil de que depende; a alegria pelo pescador que volta vivo desta talassomaquia épica; a saudade da mulher pelo homem que saiu para trabalhar; a esperança do pescador de reencontrar a mulher amada; são estes os grandes temas das canções marítimas, aliás oceânicas, de Caymmi. Fica tudo ainda mais evidente na História de pescadores, onde as canções interligadas formam um curto ciclo que condensa, num só conjunto, todo o ciclo pregresso de canções marítimas. Por essa perspectiva, o mar não é propriamente objeto, mas verdadeiro sujeito, seja impessoal (“o mar”), seja personificado (“Janaína”, “Iemanjá”). Misterioso, aparentemente implacável, sedento de vidas humanas contra as quais se lança com todas as forças, o mar nunca é tratado como objeto no cancioneiro caymmiano; ali, é sempre sujeito. É pela reiterada narrativa da luta contra esta poderosíssma natureza subjetificada que Caymmi eleva aqueles simples pescadores à estatura de heróis épicos. Aí está a força de sua poesia. Onde Gonçalves Dias e Santa Rita Durão buscaram a inspiração formal camoniana para um conteúdo altamente idealizado, Caymmi reduziu a poética a um esqueleto mínimo para alcançar quase o mesmo efeito.

    A comovente força do cancioneiro oceânico de Caymmi enlevou o autor. É inevitável. Quem não gosta de Caymmi, bom sujeito não é. Mas onde o autor viu alienação ali, não sei. Talvez a tenha projetado, para enquadrar o Caymmi de que tanto gostamos na concepção estética que mais o apraz. Talvez só veja beleza estética por este filtro. Não sei. Mas alienação, ali, não há.

  2. Se eu tivesse simplesmente retirado o trecho que dá a entender que o pescador é submetido ao capitalista Manolo não teria se indignado. Perdoe meu “filosofês”, o que é central aqui é que onde se observam coisas, tudo o que se vê são relações sociais. Isso ajuda a conceber onde entra a autonomia do ponto de vista desses sujeitos, como você mesmo indicou, que recorriam aos próprios instrumentos ao invés de venderem-se a capitalistas. Ademais, isso ajuda a pensar como a liberdade escapa mesmo aos que se pretendem livres do capitalismo por meio de pequenas cooperativas, sem tirar o mérito delas. Não há, é verdade, indícios de relações contratuais perante os pescadores mas há uma disposição para pensar a pesca no âmbito dos sujeitos que a realizam. No corte entre a beleza da praia e o choro de rosinha o mar não poderia ser mais impessoal. Nisso certamente discordo de Manolo. Com todo o respeito, é claro. Este comentário poderia muito bem virar um artigo. Um abraço!

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