Por Um camarada ítalo-israelense

Essa mensagem foi originalmente escrita em italiano em um grupo de telegram após pedidos para que comentar o ataque de ontem a Israel. O autor é italo-israelense, muito inserido na comunidade hebraica italiana mas também anti-sionista, estudioso de línguas e civilizações orientais, marxista, fez doutorado sobre o Bund (organização internacionalista hebraica de início século XX), acompanha muito as acontecimentos na região.

Olá, queridos,
Tenho poucos comentários a fazer, acompanho os acontecimentos como vocês! Em vez de um jornal específico, estou me apegando ao Twitter, onde, além das notícias de última hora, também encontro reflexões mais estruturadas. Mas, mesmo lá, é difícil encontrar uma voz confiável sobre tudo. Eu tento mais fazer malabarismos entre ativistas palestinos, jornalistas israelenses e insuportáveis tankies bombásticos que não sei por que dominam meu feed.

Basicamente: uma situação incrivelmente caótica. Nada parecido com isso jamais havia acontecido em Israel, seja por natureza (internamente) ou em números. Na guerra do Kippur, um evento que beira o limite em termos de trauma, nunca houve tantas mortes em um único dia, especialmente entre civis. A IDF parecia muito desorganizada: portões não tripulados e sistemas automáticos neutralizados por drones (uma das novidades). O exército ainda não restabeleceu totalmente o controle e tem poucos instantes que mais um vídeo de pessoas armadas nos arredores de Tel Aviv foi divulgado. No entanto, fala-se da entrada de centenas de pessoas…

Tantas acusações (e várias teorias conspiratórias) contra Netanyahu, Smotrich, Ben Gvir e cia., que, embora aspirem à recompactação nacional, e talvez a conseguirão, são vistos como ineficientes e incapazes no que diz respeito a padrões mínimos de segurança e operatividade. Lapid inicialmente propôs a Netanyahu que formasse um governo com ele, mandando embora religiósos e ministros que nunca serviram nas forças armadas.
Sinceramente, não sei fazer previsões: a situação ficou muito tensa em Israel no ano passado por causa da reforma da justiça. O país estava dividido ao meio e ficou muito polarizado. Muitos reservistas estavam em desacordo com o governo (Brothers in Arms), será que agora eles vão se alistar? Será que tudo vai se unir novamente? Parece-me que há uma mistura de “o governo é incapaz, não existe, eu me auto-organizo” (na busca dos desaparecidos, no acolhimento dos evacuados, mas até mesmo em alguém que foi com um rifle nos braços resgatar sua família por conta própria) e de unidade nacional redescoberta (nas doações de sangue transbordantes, nas filas de doações para soldados e evacuados, etc.).
De acordo com muitos, o governo deve sair enfraquecido… Veremos, no entanto, o que haverá depois da carnificina com que eles retaliarão em Gaza. Promete ser um desastre.

No nível tático, Israel teme duas coisas acima de tudo:
1) a entrada no conflito do Hezbollah (muito mais forte militarmente do que o Hamas) e a reabertura da frente norte. O Hezbollah, no entanto, parece ter sido pego de surpresa e, até agora, houve apenas alguns confrontos episódicos. A paranoia está em alta, com a notícia de sete soldados israelenses que se mataram entre si pensando que estavam atirando em inimigos. Sobre a colaboração do Irã, estão surgindo reivindicações e acusações, mas talvez seja propaganda em ambos os casos, ou talvez até queiram que apareça como simples propaganda.
2) O reacendimento de protestos internos em cidades árabe-israelenses, como aconteceu no ano passado. Aqui também, alguns episódios ontem e esta noite, mas de pouca importância.
De qualquer forma, todos os reservistas disponíveis foram convocados.

Do ponto de vista do Hamas: a situação é difícil de decifrar. Foi com certeza um sucesso militar, mas pode muito bem levar à sua aniquilação. Entretanto, há alguns pontos claros. Além de todos os motivos que conhecemos, os objetivos práticos provavelmente eram dois: impedir a chamada normalização das relações de Israel com a Arábia Saudita e obter prisioneiros para trocar por detidos nas prisões israelenses (mais de 5.000)
Em relação a esse último ponto, a título de comparação, Gilad Shalit (soldado israelense preso em 2006) foi libertado em 2011 em troca da libertação de 1.027 palestinos. No momento, aparentemente há mais de 160 prisioneiros em Gaza. Deve-se ter em mente, no entanto, que 1) eles não são soldados, 2) nem todos são israelenses (aparentemente há vários franceses, alemães, americanos e mexicanos capturados na rave no deserto, onde houve quase metade dos mais de 650 mortos totais, muitos deles estrangeiros). A troca com Shalit foi muito contestada na época, o que acontecerá agora que outros países também estão envolvidos não é fácil de dizer, mas, pelo menos em parte, suponho que a operação renderá algo…

Por um lado, algumas das imagens de ontem (como a escavadeira rompendo a cerca) têm um significado simbólico extraordinário; por outro lado, os vídeos de Sderot ou Be’eri são terríveis. Não vejo nenhum sentido (histórico, estratégico ou qualquer outro) em matar pessoas aleatoriamente, casa por casa – o que Israel também faz, bombardeando de cima -, em sequestrar pessoas de 90 anos ou fazer um massacre em uma rave. Apesar de toda a teorização sobre a violência decolonial, parece-me que se trata de uma espiral em direção a uma catástrofe cada vez maior. Entretanto, é verdade que ela conseguiu romper o silêncio.

Com relação ao impacto de tudo isso na infosfera, não tenho uma opinião clara… o conflito das bolhas.
O bom me parece que, além das torcidas de estádios (no estilo “sempre com Israel”) e dos comunicados de imprensa dos governos, a ocupação israelense não fica em segundo plano nas condenações ao Hamas, mas é colocada como ponto de partida para qualquer solução possível de longo prazo.

No momento, Israel está concentrando tanques no sul e é provável que entre em Gaza por terra e cause estragos.
We’ll see.

4 COMENTÁRIOS

  1. Recebemos uma atualização do camarada, que segue abaixo:

    “Tive uma longa conversa com minha irmã, que tem muito mais pulso sobre a situação do que eu, e vou resumi-la para você. Análise de cojuntura desde perspectiva militante [a irmã milita em Free Jerusalem, uma organização que pelo visto apóia os palestinos na Cisjordânia:

    – De acordo com alguns, o governo está buscando uma guerra também com o Hezbollah com o objetivo de mobilizar tudo e não deixar espaço para a oposição interna.

    – Gantz e os outros generais que geralmente são ministros ou fazem parte do governo desta vez estão todos fora. Smotrich e Ben Gvir são vistos, sim, como sanguinários, mas também como profundamente incapazes de lidar com a situação, já que são estranhos ao establishment militar tradicional. Isso também se aplica à “vingança” que vai ser realizada em Gaza, que realmente parece ter como objetivo mais o derramamento de sangue do que qualquer reequilíbrio estratégico. Ou seja, para além de qualquer pensamento estratégico, a percepção difusa é que no governo estão uns loucos.

    – Com relação aos reféns, Smotrich e Ben Gvir não se importam mínimamente. Eles não só não se importam com os árabes beduínos [de fato, houve uns 40 mortos entre os beduínos, alguns mortos dentro dos carros pelos milicianos de Hamas, inclusive mulheres com véu, outros pelos misseis lançados desde Gaza contra seus vilarejos, onde o governo israelense não construiu bunkers, justamente para incentivar a população a se mudar nas cidades e a se sedentarizar], os trabalhadores tailandeses ou os estrangeiros presos em Gaza, como também não se importam com todos os judeus israelenses que vivem ao lado da faixa, que (demográfica e politicamente) são, em sua maioria, sionistas de esquerda da primeira hora, principalmente ashkenazitas, e não têm nada a ver com os colonos da Cisjordânia e seu eleitorado. Isso não os torna mais “camaradas”, mas, na opinião dela, esse governo pode muito bem optar por desconsiderá-los.

    – O trauma é enorme. Mesmo aqueles que serviram nas forças armadas há 10 anos e depois saíram arrependidos e nunca fizeram as re-convocações anuais estão se alistando ou pensando em se alistar.

    – Isso já está mudando os equilíbrios, os relacionamentos, os interlocutores…. Eles (Free Jerusalem) estão saindo de dias de confusão e todos estão com pais, parentes ou amigos que foram mortos ou estão em Gaza. Alguns ainda estão indo para os territórios (pastos/cultivações de olivos/etc.), mas menos, tendo isso se tornado mais perigoso. Provavelmente, agora eles ativarão serviços para acompanhar os palestinos ao trabalho, mas pouco mais, pois a situação se tornou perigosa para todas e todos. Ontem, dois caras com uma M16 queriam matar um deles no restaurante abaixo de sua casa, até que ficou claro que ele trabalhava lá. Em resumo, uma situação muito tensa.”

  2. A seguir link de importante resumo postado no

    https://crimethinc.com/2023/10/08/a-nuclear-superpower-and-a-dispossessed-people-an-anarchist-from-jaffa-on-the-violence-in-palestine-and-israeli-repression

    Se eu não estivesse no busão numa viagem tão atribulada buscaria traduzir,mas vale a tradução/leitura.

    A Federação Anarquistas Palestina também publicou um pequeno texto sobre o mesmo tema,com uma avaliação dos atores envolvidos e suas implicações para todas as pessoas que vivem do mundo trabalho

  3. -> “nunca houve tantas mortes em um único dia, especialmente entre civis.”
    -> “são, em sua maioria, sionistas de esquerda da primeira hora”

    Não existe tal possibilidade de “sionismo de Esquerda”, pois seria algo como “militante de Esquerda do Hamas”.

    Aliás, a raiz do conflito Israel-Palestinos se acha exatamente no sionismo.
    Foi através dele que Israel se tornou uma “nação em armas”, onde não há civis.
    Mesmo na pegação na balada da boa (o consumo de psicoativos, legais ou não, é altíssimo em Israel), ou nas raves da Nova Tribo, os jovens soldados israelenses nunca abandonam seus fuzis.

    Em relação à rave, realizada num local a menos de 6km da fronteira com Gaza, em vídeos nas redes sociais é possível se ver um blindado pesado dando segurança ao evento.
    O participantes se jugavam protegidos pelo “melhor serviço de inteligência do mundo” e pelo “melhor exército do mundo”.
    Então a realidade desceu dos céus em parapentes, aterrizando em cima deles. O exército Israelense demorou 5 horas a chegar no local.

  4. “Foi através dele que Israel se tornou uma ‘nação em armas’, onde não há civis.”
    Ora, este comentário de arkx Brasil vai de encontro ao que disse um líder do Hamas sobre o episódio, de que o ataque à festa na fronteira foi um ataque a alvos militares. Coincidência ou mais um dos zigue-zagues entre a esquerda e a direita para justificar covardia fascista?

    https://www.economist.com/podcasts/2023/10/11/an-interview-with-a-senior-political-leader-of-hamas

    Evidentemente é uma afirmação completamente falsa dizer que não há civis em Israel, pois a condição da maioria da população que recebe treinamento militar (involuntariamente) continua sendo a de civil e reservista.

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