É quando os trabalhadores arrancam da burguesia e dos gestores o controle sobre suas lutas e conquistas, e principalmente quando sabem que estão arrancando e não pedindo ou ganhando nada de graça, é aí, é só então que constroem sua autonomia enquanto classe. Por Passa Palavra
A esta altura, alguns terão estranhado o debate ter começado tão “do alto” e “de longe”, sem sequer tocar em problemas mais próximos nem sair apontando nomes e culpados. Optou-se neste ensaio por começar apontando, mais uma vez e como sempre, algo que deveria ser óbvio: é a classe quem luta e conquista autonomia, não o grupo, a organização ou o “coletivo”.
Por isso, as críticas neste debate não são, nem serão voltadas a nenhuma organização em particular, mas a todas as organizações do campo “autonomista” que não se percebam enquanto expressão das necessidades da classe trabalhadora em luta, enquanto instrumento prático, plástico e mutável para fortalecer estas lutas. Ou, retificando, já que o problema não é de simples autoidentificação: trata-se de criticar as características gerais de organizações que não agem como instrumentos políticos da classe trabalhadora.
Há organizações que se concebem autônomas por embasarem-se em tal ou qual leitura “autonomista”. Estranhamente, na prática se vê que tais organizações estabelecem padrões de comportamento inalcançáveis e dedicam boa parte do seu tempo à caça fratricida aos hereges; criam ritos e códigos herméticos, causa de sérias restrições à renovação de seu quadro de integrantes; esperando a completa submissão de seus integrantes a seus ritos, códigos e padrões de condutas, mostram-se incapazes de lidar com as contradições próprias de indivíduos cindidos entre a integração nos quadros sociais e ideológicos do capitalismo e a construção de relações sociais novas; falam um jargão incompreensível por quem não é da “cena” a que pertencem; isolam-se paulatinamente das lutas do presente, por não quererem se misturar com os “impuros”; por tudo isso, não articulam suas pautas com o cotidiano da exploração e da opressão vivido pela classe trabalhadora, descolam-se completamente dos trabalhadores e de suas lutas. São, assim, autônomas por antífrase.
A longa história de lutas dos trabalhadores demonstra que a classe precede a organização, nunca o contrário. Uma organização expressa, nunca antecipa conteúdos ou papéis; se a política prefigurativa tão cara a alguns grupúsculos não está ligada a um movimento de massas, torna-se uma simples brincadeira entre amigos, ou um perigoso e ilusório jogo de adivinhação – afinal, trata-se de um projeto, pois não se sabe se a “sociedade do futuro” seguirá realmente as tendências apontadas pelas práticas organizativas adotadas. Não se cria uma classe ou um “povo” a partir da organização; é a partir das lutas da classe, do “povo”, que surge a organização, como expressão das necessidades da luta travada pelos trabalhadores. É somente na medida em que os integrantes de uma organização refletem sobre seu lugar na divisão social do trabalho e tomam parte nos conflitos sociais do presente a partir do lugar em que se encontram (ver aqui), é somente assim que fortalecem a luta autônoma dos trabalhadores. É a partir de sua imersão completa nas contradições do movimento de massas que uma organização pode, sem demagogia, se dizer autônoma.
A expressão movimento de massas, aqui, engloba não apenas os grandes e memoráveis dias de luta multitudinária, as palavras de ordem, os enfrentamentos, as vitórias e derrotas. Refere-se ao contínuo entre estas formas de lutas e aquelas formas de enfrentamento da disciplina capitalista que, embora individuais em sua iniciativa e restritas em seu alcance, se tornam sociais, massivas, na medida em que muitos as praticam sem se articular conjuntamente – e às vezes até sem saber uns dos outros. Alguns exemplos esclarecerão a questão.
As novas formas de trabalho são uma primeira questão a debater (ver aqui, aqui e aqui). Sabe-se que a qualificação da força de trabalho é fator determinante para a inserção em lugares mais rentáveis na divisão social do trabalho; sendo assim, seja pela sua baixa escolaridade, seja pela sua ainda pequena experiência laboral, os setores mais jovens da classe trabalhadora iniciam sua sujeição à exploração capitalista em trabalhos precários, com baixa remuneração e pouco respeito às garantias trabalhistas. A alta rotatividade, o call center, o trabalho em shopping centers e nas cadeias de fast food (ver aqui), a superexploração nos comércios de bairro, é daí que vem tudo isso. Por outro lado, eventuais defasagens entre as qualificações formais da força de trabalho e as necessidades de produção em determinado momento e lugar determinam, igualmente, uma defasagem entre o emprego que se conseguiu e as expectativas geradas pela formação recebida. É daí que surgem o “frila permanente”, a prorrogação infinita da formação universitária para garantir bolsas de pesquisa ou extensão, a sucessão de “assessorias”, a sujeição ao trabalho nos três turnos para “complementar renda”… isto sem falar dos que, no terceiro setor, vendem sua força de trabalho como se, de quebra, vendessem também sua militância e engajamento. Os trabalhadores menos qualificados encontram problemas bastante semelhantes àqueles encontrados por trabalhadores mais qualificados, e cada qual vai buscando suas formas de resistência e sobrevivência. Dado o caráter atomístico das novas formas de trabalho, mantido mesmo quando se trata de trabalho terceirizado para grandes empresas, todos estes novos processos fortalecem a fragmentação e o individualismo característicos dos processos de exploração capitalista no processo de trabalho. Que iniciativas de luta e resistência é estratégico divulgar e fortalecer? Como estabelecer pontes com companheiros de outros setores, de outros ramos? Como estabelecer pontes entre os companheiros que estão sujeitos a estas novas formas precarizadas de trabalho e aqueles outros em postos estáveis e com garantias trabalhistas?
Aluguel, prestação da geladeira ou da TV, empréstimo bancário, cheque especial, cartão de crédito… o endividamento nunca é pensado coletivamente; é sempre produto de circunstâncias estritamente individuais, particulares a cada trabalhador ou a sua família, mas a sobrecarga de obrigações financeiras é a tônica da inclusão social pelo consumo. O aumento massivo da inadimplência dos trabalhadores, entretanto, reflete o fato de que mais e mais endividados optam por usar seu dinheiro para outra coisa que não o pagamento de suas dívidas. Os evidentes efeitos da inadimplência massiva preocupam as instituições de crédito e outros rentistas; na medida de suas forças, podem adotar medidas que vão das cobranças judicias e extrajudiciais à interferência incisiva sobre a política econômica. Tornam-se então mais frequentes nos noticiários as falas de especialistas em economia doméstica ensinando como administrar dívidas e manter equilibradas as finanças familiares. A gestão do endividamento massivo, entretanto, não se presta a eliminá-lo, pois o endividamento é um dos meios de reforço à sujeição dos trabalhadores à roda viva da exploração. É neste sentido que a inadimplência pode ser entendida como um movimento de massa e, então, ser politizada, ou seja, integrada, enquanto fenômeno particular, numa escala mais ampla de problemas sociais e econômicos. Quem são os inadimplentes? Em função de quê deixam de pagar suas dívidas? E que dívidas são estas, de onde vêm, como as contraíram? Que se pode fazer quanto a elas? Há estratégias para burlar o endividamento? Como podem ser fortalecidas?
A violência policial nos bairros de trabalhadores é outra questão sobre a qual refletir. Aqui, os efeitos individuais da violência – humilhação, traumas, hematomas, fraturas, morte – são sempre percebidos diante de um pano de fundo coletivo; não há, nos bairros populares, quem não saiba que o tratamento que lhes é dispensado pela polícia é radicalmente diferente daquele dispensado aos bairros da burguesia e da classe média. Não há quem não saiba que a confusão entre “bandidos” e “pessoas de bem” nas periferias é proposital, é feita para disciplinar a vida dos trabalhadores fora do ambiente de trabalho através do temor constante da violência. Entretanto, pode-se dizer, sem medo de errar, que o caso Amarildo foi um divisor de águas na questão; depois dele, e de lá até a chacina do Cabula (ver aqui e aqui), a postura dos familiares e amigos de vítimas, e também a das comunidades afetadas, passou do medo, da lei do silêncio e da paz dos cemitérios para a denúncia e para reivindicações que vão da “punição dos culpados” à “desmilitarização da polícia”. Como a ocupação militar dos bairros de trabalhadores se relaciona com sua sujeição à exploração nos lugares de trabalho? A que formas urbanas corresponde esta ocupação militar, que padrões ela desenha? O que já está sendo feito para romper com estes padrões? E o que está sendo feito para parar a matança?
A produção cultural nos bairros de trabalhadores (poesia, grafitagem, dança, música etc.) surge como quarto exemplo (ver aqui, aqui e aqui). Se estes trabalhadores têm dificultado seu acesso a determinados bens culturais (museus, cinemas, teatros e equipamentos similares), produzir cultura onde moram parece ser o passo mais lógico. Criou-se, assim, uma estética particular, capaz de demarcar os territórios onde o som é o funk, o rap, a suingueira; onde os saraus mesclam com sucesso literatura e política; onde modos de vestir demarcam a pertença a uma classe. Por outro lado, embora tal produção reflita a apropriação pelos trabalhadores de certos processos de produção da cultura e sirva como demarcador de sua identidade enquanto trabalhadores, enquanto moradores das periferias urbanas, enquanto jovens, enquanto negros, enquanto homens ou mulheres etc., mascara o fato de que o domínio sobre alguns processos de produção cultural se dá pela sua completa exclusão dos processos que produzem outros tipos de manifestação cultural. Deste jeito, fica fácil tanto para o boy quanto para a patygirl vestir as roupas certas, falar algumas palavras codificadas, fazer certa performance gestual e se dizer da quebrada; embora a generosidade característica de quem se criou partilhando o pouco que tem permita esta apropriação (e enquanto a cultura for livre seus símbolos e códigos têm circulação irrestrita), a via inversa, a de alguém da quebrada que domine a literatura, a música, o teatro, a dança, o gestual, as palavras etc. produzida com códigos e processos outros que não os seus próprios, é sempre muito mais difícil. Retoma-se deste modo, por outras vias, o velho problema, político por natureza, da produção e circulação de bens culturais. Que problemas são criados por esta contradição? É possível, é desejável que a quebrada se aproprie destes outros códigos, ritos e processos? Como fazê-lo?
Novamente, os exemplos foram escolhidos a dedo; como não se pode tratar de tudo, só é possível esperar que os exemplos indiquem o caminho que se quer trilhar. As revoluções não resultam do puro desejo da militância nem de proclamações bombásticas, mas do crescimento material da luta de classes. No capitalismo, este crescimento só pode se dar quando a classe trabalhadora entra em disputa com a burguesia e os gestores em torno de questões muito concretas; de um lado, em torno do seu tempo de trabalho, e de outro em torno da quantidade de insumos que incorpora a si própria. Isto significa falar de disputa pelas condições de trabalho, de conquistas materiais e culturais, de tudo já tratado na parte 2 deste ensaio. É quando os trabalhadores acirram a disputa pelas suas condições de trabalho, é quando acumulam conquistas materiais e culturais expressivas, é quando o fazem arrancando da burguesia e dos gestores o controle sobre suas lutas e conquistas, e principalmente quando sabem que estão arrancando e não pedindo ou ganhando nada de graça, é aí, é só então que constroem sua autonomia enquanto classe.
A série Reflexões sobre a autonomia contém 6 partes, com previsão de publicação de uma parte a cada domingo.