Com menos de 5% da população mundial, os EUA tem hoje 25% de todos os presos do mundo. Por Pablo Polese
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Do ponto de vista dos interesses dos trabalhadores, a tendência à privatização dos serviços públicos encontra na indústria prisional um de seus capítulos mais nefastos. Toda prisão, seja estatal ou privada, é por sua essência algo destrutivo e desumano, mas quando a motivação da gestão prisional se desloca para a lógica do lucro, os tradicionais maus-tratos aos prisioneiros se potencializam não apenas no cotidiano da prisão, mas a começar pela própria lógica de encarceramento em massa que leva mais pessoas a serem presas. No que tange a essa lógica, os EUA são o modelo mundial mais avançado, tendo-o exportado para Brasil, China e Rússia, e esforçando-se, atualmente, para que seja adotado na União Europeia. Comentando os profundos estudos de Loïc Wacquant acerca da “onda punitiva” estadunidense, Vera Malaguti (2012a: 11) fala em exportação do “vento punitivo”:
Wacquant denuncia a obsessão pelo tema da violência urbana e da delinquência juvenil como estratégias de fortalecimento do processo de redefinições de formas e conteúdos da ação do Estado: do Estado keynesiano ao Estado darwinista. Aqui ele analisa a “conversão das classes dominantes à ideologia neoliberal” apontando os três estágios na difusão mundial dessa cultura punitiva. O primeiro estágio seria o de gestação, implementação e demonstração nas cidades norte-americanas, especialmente em Nova York; o segundo, a exportação dessas ideias, esse vento punitivo que soprou da América; e o terceiro consiste em “aplicar uma cobertura de argumento científico sobre tais medidas”. Nesta fase ele denuncia os intelectuais contrabandistas “que legitimam com sua autoridade acadêmica a adaptação das políticas e dos métodos norte-americanos”.
Os Estados Unidos têm a maior população carcerária do planeta, cerca de 2,3 milhões de pessoas. Com menos de 5% da população mundial, o país tem hoje 25% de todos os presos do mundo. O extraordinário crescimento da população carcerária do país começou com a “guerra às drogas”, de Richard Nixon, sendo que as primeiras leis estaduais advogando condenação obrigatória em caso de crimes de drogas foram introduzidas em Nova York, em 1973, sob o governador Nelson Rockefeller. Durante o governo de Ronald Reagan, já na década de 1980, tanto o governo federal quanto muitos dos governos estaduais introduziram penas mais duras para lidar com a cocaína e especialmente com o crack, aprofundando os preconceitos raciais tanto na prática policial e judiciária (onde se dão as condenações) quanto na sociedade, que passou a identificar um “perfil” negro para criminosos. Entre 1980 e 1990, a proporção de infratores presos cujo principal crime estava ligado às drogas subiu de menos de 8% para quase 25%. A epidemia de crack e cocaína produziu as condições para as políticas mais punitivas em todos os níveis. Implementou-se no país a regra dos “três strikes” (como no Baseball), onde a terceira ocorrência de uma infração (mesmo leve) levava à prisão automática. A seguir vieram as leis de “sentença verdadeira”, que limitavam a possibilidade de liberdade condicional para os últimos 15% de sentença e foram fortemente apoiadas por sindicatos de guardas prisionais.
O sistema carcerário estadunidense é particularmente punitivo para os negros e hispânicos, que são presos em seis vezes e duas vezes as taxas de brancos, respectivamente, sendo que um em cada três jovens negros residentes no país será preso em algum momento de sua vida. O custo do sistema carcerário dos EUA é de cerca de US$ 34.000 por preso por ano, chegando à cifra de US$ 80 bilhões. Quando Obama tomou posse da Presidência dos EUA muitos se perguntaram se o primeiro presidente negro perseguiria uma agenda com atenção especial para a desigualdade racial. Avaliando a questão, uma informada matéria do The Economist concluiu que em sua gestão Obama priorizou a ação em vez da retórica, e que “em parte alguma isso é mais evidente do que em seus contínuos esforços para reformar o sistema de justiça criminal, uma instituição americana que encarcera cerca de 1 milhão de negros”.
A indústria prisional privada é um veículo bastante eficiente para as lucrativas práticas de corrupção na relação entre Estado e empresas às custas da população a ser encarcerada, que é tipicamente pobre, de cor[1] e indefesa em termos políticos e econômicos. O órgão de Imigração e Alfândega (Immigration and Customs Enforcement — ICE) dos EUA, por exemplo, possui acordos com empresas privadas do ramo prisional para deter um mínimo garantido de mães com seus filhos imigrantes em Centros de detenção familiar. A lógica é simples: no contrato com as empreiteiras e empresas privadas do setor o Estado se compromete a pagar por um número mínimo de vagas da prisão a ser construída e gerida, estejam estas vagas preenchidas ou não. O mesmo modelo vem sendo aplicado em outras experiências de privatização e “parcerias público-privadas” pelo mundo, inclusive no Brasil. Como o governo gostaria de evitar pagar por um espaço de detenção que não está sendo usado (o que poderia gerar protestos populares pela má gestão dos recursos públicos etc.) os “mínimos” garantidos se convertem em cotas locais de detenção que influenciam a tomada de decisões do setor de imigração sobre a aplicação das leis de entrada e saída das pessoas, se elas serão ou não liberadas, onde serão detidas etc.
Poderosas, as empresas do setor prisional exercem forte pressão nos rumos e na dinâmica do sistema de justiça dos EUA, com ações estratégicas que vão desde o financiamento de campanhas de deputados e senadores que uma vez eleitos apresentarão projetos de lei favoráveis aos interesses de tais empresas, até o suborno puro e simples de pessoas ligadas ao executivo e judiciário. O custo dos lucros das empresas do ramo prisional é o encarceramento em massa da população negra e marginalizada do país, com destaque para os imigrantes. Para se ter uma ideia, em fins de 2016 uma das instalações prisionais no condado de Cibola, Novo México, foi fechada e reaberta como um centro de detenção de imigrantes.
Com influência direta sob os três poderes do Estado e meios de lucrar em cada etapa do processo de encarceramento como um todo, a lucratividade do empreendimento tem sido garantida. Essas corporações do ramo prisional ganham dinheiro em quase todas as fases do sistema punitivo vigente no judiciário estadunidense: processamento de multas, monitoramento de pulseiras de tornozelo, testes de drogas etc. Os sub-ramos do setor são muitos, e as oportunidades lucrativas vêm sendo aproveitadas. A Global Tel-Link, por exemplo, fornece serviços de telefonia e videochamada para 2.400 instituições prisionais federais, estaduais e municipais, abarcando 1,3 milhões de prisioneiros. Quanto à saúde dos detentos, apenas três empresas fornecem os medicamentos prescritos para os presos: a Correct Rx, a Diamond Pharmacy Services e a Maxor Correctional Pharmacy Services. Enquanto isso, a Aramark detém os direitos de fornecimento de cerca de 380 milhões de refeições por ano a instalações correcionais na América do Norte, sendo alvo de inúmeras acusações quanto à qualidade dos alimentos e chegando a perder, em 2015, seu contrato com o Estado de Michigan devido à presença de vermes na cozinha, drogas sendo contrabandeadas por seus funcionários e envolvimento de trabalhadores da empresa em atos sexuais com prisioneiros. Os presos recorrentemente reclamam e protestam contra as questões sanitárias do cotidiano prisional, além disso a predominância da lógica do lucro na gestão das prisões leva à piora dos serviços prestados. A testemunha “4” de um projeto de entrevistas com presos (detalhado mais abaixo) deu o seguinte depoimento:
Tem um monte de caras com problemas de saúde aqui, mas o programa de saúde é um pouco apertado, então, quando aparece um bom médico aqui, o médico desaparece em praticamente um mês ou dois, o que nos deixa pensando que não podemos obter os cuidados adequados que realmente precisamos. Por exemplo, em 2011 tivemos um médico de medicina esportiva aqui e esse cara… eu tinha dores nas costas desde 3 anos e ele [apenas deu] uma [rápida] olhada e dentro de cinco minutos ele descobriu o que era e consertou de primeira. Não tive mais nenhum problema nessa parte inferior das minhas costas desde 2011. Quer dizer, o cara foi fenomenal e como eu disse, ele durou cerca de dois meses e foi embora. Toda vez que alguém entra e tenta ajudar a todos, eles levam a pessoa para longe. Não é o doutor, é o prestador de serviços de saúde que os expulsa. Porque eles têm uma certa quantia de dinheiro por ano para cuidar de nós e quando não gastam mais que isso, é lucro para eles. Assim, quanto menos eles fazem por nós, mais sobra para eles.
Além do lucro pela via dos contratos com o Estado, muitas empresas lucram por meio da exploração da mão-de-obra dos detentos, que custa entre 90 centavos e 4 dólares por dia, portanto muito menos do que os 7,25 dólares/hora correspondentes ao salário mínimo de um trabalhador livre nos EUA. Além disso, as empresas se beneficiam do fato de que, na prática, não existirem incômodos com direitos trabalhistas dos presos, greves, sindicalização etc. Dentre estas empresas pode-se citar o McDonalds, que usa prisioneiros para produzir alimentos congelados; a Wendy’s, que depende do trabalho prisional para reduzir o custo no processamento de carne de vaca; o Wal-Mart, que contrata presos até mesmo para limpar o códigos de barras de produtos a serem revendidos; o Starbucks, que por meio de subsidiárias corta custos com embalagens de café; a Sprint e a Verizon, que colocam presos para atuar em serviços de telecomunicações e call centers; a Victoria’s Secret, que contrata mulheres presas para costurar produtos e substituir as etiquetas “made in [ali ou acolá]” por “Made in USA”, além de centenas de outras empresas de diversos ramos. A economia trabalhista penitenciária rende US$ 2 bilhões por ano e emprega cerca de 900.000 pessoas nos EUA. O trabalho dos presos é frequentemente usado pelos governos estaduais para compensar seus próprios orçamentos curtos, e mesmo empresas high tech, como a IBM, a Boeing, a Microsoft e a AT&T fazem uso da mão de obra carcerária. Como se não bastasse o lucro via superexploração do trabalho dos presos, há ainda o Crédito Tributário por Oportunidade de Trabalho (Work Opportunity Tax Credit — WOTC), por meio do qual as empresas ganham um crédito fiscal de US$ 2400 por cada preso empregado, uma recompensa por dar emprego a “grupos de risco”.
Recentemente o Procurador-Geral Jeff Sessions enviou a Thomas Kane, diretor do Federal Bureau of Prisons, um memorando contrapondo-se às iniciativas da gestão Obama (ver aqui e aqui) que iam no sentido de reduzir e acabar com o uso de prisões privadas pelo Departamento de Justiça federal[2].
Segundo Sessions, acabar com os contratos entre Estado e empresas prisionais foi uma medida que “prejudicou a capacidade da agência de atender às necessidades futuras do sistema correcional federal”, e que “portanto, direciono a mesa para retornar à sua abordagem anterior”. Trata-se de uma abordagem conforme à proposta de Trump de anulação do legado de Obama para as prisões federais. Em resposta, a American Civil Liberties Union (ACLU) publicou uma nota onde David C. Fathi, diretor do Projeto de Prisão Nacional da ACLU, dizia o seguinte:
Entregar o controle das prisões a empresas com fins lucrativos é uma receita de abuso e negligência. O memorando do procurador-geral Sessions ignora este fato. Além disso, este memorando é um sinal adicional de que sob o Presidente Trump e o Procurador Geral Sessions, os Estados Unidos podem encabeçar um novo boom prisioneiro federal, alimentado em parte por processos criminais contra imigrantes que entram no país. O presidente Trump, cujo super-PAC recebeu centenas de milhares de dólares de empresas privadas do ramo prisional, emitiu ordens executivas pedindo o aumento de processos criminais contra imigrantes. Ele repetidamente expressou seu apoio para que a nova legislação imponha severas e desnecessárias novas sentenças mínimas obrigatórias para esses processos.
O memorando elaborado pela procuradora-geral Sally Yates durante a gestão Obama (ver aqui e aqui) concluía que as prisões privadas “simplesmente não fornecem o mesmo nível de serviços de reabilitação, como programas educacionais e treinamento profissional, que ajudam as pessoas a levar vidas que respeitam a lei após a prisão; além disso, não economizam substancialmente os custos do Estado com os presos e, como observado em um relatório recente do Departamento de Inspeção Geral, elas não mantêm o mesmo nível de segurança para funcionários e presos”.
Trump e Sessions vêm atuando no sentido de realizar a promessa de uma nova era de “lei e ordem”. Na visão destes membros da cúpula do Executivo e Judiciário dos EUA, isso implica endurecimento das penas e punições contra infratores. Além da sinalização de endurecimento das leis contra imigrantes, Trump prometeu reforço na aplicação das leis federais contra o uso recreativo da maconha.
Na mesma linha da chamada “carnificina americana” causada pelo crime e terrorismo, de que falou Trump em seu discurso de posse, Sessions afirma que os EUA estão experimentando uma “tendência permanente e perigosa” de ascensão da criminalidade. Ambos desconsideram o fato empírico de que embora 2015 tenha sido um ano atípico, com 10,8% mais crimes que em 2014, os dados não revelam qualquer tendência e muito menos uma “tendência permanente”[3], já que, como se vê nos dados do gráfico abaixo, nos últimos 20 anos o número de crimes violentos em território estadunidense vem caindo e está atualmente num nível que representa a metade da taxa nos anos 90.
Gráfico: taxa de crimes violentos nos EUA (1960 a 2015) 1/100 mil pessoas [4]
Sobre a política contra a juventude infratora, Sessions tem sido um feroz defensor de estratégias orientadas para as prisões. Em 1994 ele era Advogado-Geral do Alabama e defendeu duras sanções “que enfatizem a disciplina e a responsabilidade para dissuadir os infratores não violentos pela primeira vez de cometerem outros crimes”. Além disso ele sugeriu “acampamentos de trabalho” para jovens, o trato de jovens infratores violentos como adultos e a realocação dos fundos federais de modo a criar mais prisões para os jovens. O interessante, em termos do que podemos esperar que ocorra em matéria de resistência popular a estes planos do governo Trump, é que essa visão punitivista vai na contramão do que os próprios estadunidenses vêm defendendo. Uma pesquisa publicada pela Youth First, uma campanha nacional voltada para a reforma da justiça juvenil, revelou que 78% dos norte-americanos apoiam que sistema de justiça juvenil desloque seu foco do encarceramento e punição para a prevenção e reabilitação. Apenas 22% dos entrevistados concordaram com a ideia de que o sistema de justiça para os jovens deveria “se concentrar em punir os jovens que cometeram atos delinquentes”, e 69% disseram que o encarceramento não é necessário para ensinar um jovem infrator a ter responsabilidades por seus atos.
Em 22 de fevereiro Trump anulou a medida de Obama que protegia as pessoas trans garantindo-lhes o direito de escolher qual banheiro usar. No dia seguinte a medida do governo Obama sobre prisões privadas federais foi de fato anulada, portanto seu programa de redução do uso de prisões privadas federais foi desmantelado (ver aqui e aqui), para alegria do que pode ser chamado de complexo industrial-prisional. Não por acaso, a anulação do programa de Obama provocou picos nos preços das ações das grandes corporações do ramo prisional, empresas que contribuíram com centenas de milhares de dólares para a campanha eleitoral de Trump.
Em agosto de 2016 o The Economist alertara “más notícias” que configurariam “um golpe para a indústria prisional”. Tratava-se da publicação do memorando de Yates (citado acima) e do relatório de um Inspetor-Geral onde se concluía que a indústria privada da prisão “sacrifica a segurança na busca do lucro; mantém presos em confinamento solitário apenas porque as camas são escassas em células normais; e não fornece aos presos serviços suficientes, incluindo cuidados médicos”. O susto, no entanto, foi passageiro. Três meses depois, em 9 de novembro – portanto no dia seguinte à vitória de Trump – a Corrections Corporation of America (CCA), o maior operador de prisões privadas do país, viu o preço de suas ações subir 43%. A GEO Group, outra das três maiores empresas do setor (a outra é a Management & Training Corporation), também viu suas ações subirem 21%. Certamente uma reviravolta e tanto, que fez os financiamentos de campanha valerem a pena. As ações destas empresas estão em níveis acima dos 100% desde a eleição de Trump, que durante a campanha havia qualificado o sistema penitenciário estadunidense de “um desastre”, asseverado que achava que “podemos fazer um monte de privatizações e prisões privadas. Parece funcionar muito melhor”.
Tal como no Brasil, o número de crimes nos EUA está relacionado a disparidades geográficas e raciais: um estudo do The Guardian descobriu que metade das mortes ocorreram em apenas 127 cidades, que contêm quase um quarto da população, e que dentro destas cidades, periferias que representam apenas 1,5% da população total do país, viram 26% de todos os homicídios com armas em 2015. Descobriu, ainda, ancorada em estudos científicos de criminologia, que os bairros com altas taxas de homicídio por armas de fogo são marcados por altos níveis de pobreza, baixos níveis de escolaridade e graus rígidos de segregação racial.
Os EUA são um país com alto nível de segregação racial, com as pessoas de cor sendo expulsas para a periferia por meio dos mecanismos normais da economia, que se potencializam com os mecanismos políticos, culturais e ideológicos inerentes ao racismo. Os negros se convertem em público-alvo das políticas estatais de encarceramento em massa por diversas razões que vão muito além do mero racismo de policiais individualmente considerados, ou muito menos por serem os negros “geneticamente mais propensos” a cometer crimes. As causas da criminalização dos negros são históricas, mas devem ser buscadas em especial nas particulares relações sociais em que pessoas de cor são forjadas. As regiões onde vivem uma maioria negra são muitas vezes as regiões com menor nível de IDH, menor escolaridade da população, menor nível de atendimento médico, menor presença de políticas sociais voltadas para o enfrentamento das expressões da questão social etc. Não por acaso, estas mesmas regiões são o palco dos maiores índices de violência[5].
Frente à semelhança dos dados da realidade estadunidense e da brasileira fica difícil para qualquer brasileiro conter um comentário sarcástico de “que novidade!”. No entanto, os pesos históricos, culturais e ideológicos do racismo nestes dois países e os interesses políticos e econômicos das elites continuam garantindo que o poder estatal implemente “soluções” centradas no puro e simples punitivismo[6].
Embora pesquisas apontem que o aumento das taxas de assassinato em 2015 tenha sido impulsionado pelo aumento do número de pessoas armadas, Trump deixou claro que não está interessado em passar leis de controle de armas mais rigorosas, pelo contrário: ele mantém estreitas e amigáveis relações com as pautas da Associação Nacional do Rifle e provavelmente aprovará uma lei destinada a tornar mais fácil portar e transportar armas em público em diferentes estados. Além disso, rompendo com as medidas moderadas de Obama, quando os policiais foram estimulados a “adotar a mentalidade de guardião — ao invés de guerreiro”, Trump disse que convocaria sua própria força-tarefa para ajudar a enviar a polícia de volta à batalha, e já acenou que pretende “proteger os policiais” por meio de medidas punitivas extremamente rígidas a todo crime ou ofensa contra oficiais das forças policiais.
Trump pretende governar com “pulso firme” e tolerância zero. Não por acaso ocorreu, recentemente, algo inusitado. Em fins de 2014, como resposta ao movimento Black Lives Matter, foi criado nos EUA o Blue Lives Matter, um movimento de apoio a policiais e familiares de policiais mortos em conflito. Inicialmente, portanto, não se tratava necessariamente de uma afronta de siglas e forças sociais em conflito, mas tão somente de movimentos de defesa de interesses. Trump, entretanto, ardilosamente se apropriou da sigla e converteu o Blue Lives Matter em um “slogan trumpista” claramente contrário ao Black Lives Matter. O novo presidente dos EUA prometeu, ainda, retomar o fornecimento de armamento pesado e veículos de combate que foram descartados pelo Pentágono. No passado, Obama havia colocado restrições a esse programa por conta da preocupação que se generalizou devido ao uso desses equipamentos contra protestos populares nas ruas de Ferguson, Missouri, em agosto de 2014. A inclinação para o conflito e para a governança sem um mínimo de jogo de cintura pode levar Trump e os EUA para uma era de agudização dos conflitos sociais no país. Isso seria bom ou ruim?
As soluções punitivas no trato de expressões da questão social e em particular suas implicações criminais não só não resolvem o chamado “problema do crime” como perpetuam os fatores materiais que levam ao incremento dos níveis de violência justamente pelas mãos e contra a população “periférica” e de cor, garantindo assim um círculo vicioso que para os patrões significa lucro e para os trabalhadores significa criminalização da pobreza, guerra civil velada[7] e contra-insurgência permanente. Aparentemente, no entanto, a toupeira da história segue cavando, pois veremos a seguir que os planos do complexo industrial-prisional começam a sofrer uns primeiros sinais de resistência por parte dos trabalhadores (presos ou não) organizados.
Notas:
[1] De acordo com as estatísticas do Departamento de Justiça estadunidense os negros não-hispânicos representam cerca de 13% da população da América e cerca de 40% da sua população prisional.
[2] O memorando de Obama pode ser lido aqui e sobre o memorando de Sessions consultar aqui, aqui e aqui. Obama não apenas tomou medidas para a redução do uso de cadeias privadas pelo Estado, mas com questões concretas do cotidiano prisional, como por exemplo o uso excessivo do confinamento solitário, preocupando-se com o fato de que o castigo pode ter “consequências psicológicas devastadoras e duradouras”, incluindo “depressão, alienação, auto-isolamento”. A proposta de Obama previa a proibição do uso do confinamento solitário para jovens e por quebra de regras triviais. Além disso, foram tomadas medidas voltadas para a expansão dos serviços de saúde mental para prisioneiros e os indivíduos que fossem submetidos a confinamento solitário teriam, posteriormente, mais tempo diário fora de suas celas.
[3] O Brasil não detém o monopólio das teorias conservadoras mirabolantes que atuam convenientemente para a preservação do status quo. Face ao aumento dos dados criminais em 2015 alguns norte-americanos vêm falando em “efeito Ferguson”: a teoria de que os protestos contra o racismo dos policiais e os assassinatos de negros norte-americanos pelas mãos da polícia seriam os culpados pelo aumento dos assassinatos: os protestos teriam encorajado os criminosos e tornado os policiais mais hesitantes em realizar seus trabalhos.
[4] Os 168 assassinatos e homicídios ocorridos em 1995 como resultado do bombardeio do Edifício Federal Alfred P. Murrah em Oklahoma City estão incluídos nas estimativas nacionais. Os 2.823 assassinatos e homicídios ocorridos como resultado dos eventos de 11 de setembro de 2001 não estão incluídos. Fonte: FBI, Uniform Crime Reports, preparado pelo Arquivo Nacional de Dados de Justiça Criminal. Gráfico elaborado por Jan Diehm / The Guardian.
[5] Como se vê nas imagens 2 e 3 referentes ao percentual de negros (expresso nas gradações de cor) e a localização de crimes por armas de fogo (os pontinhos pretos), na cidades de St. Louis e New York.
[6] Falo tanto das medidas relativas abrangentes de encarceramento em massa operado pelo Estado, a proliferação de ideologias punitivistas pela grande mídia, o trato estatal permissivo quanto ao controle de armas nos EUA e a própria filosofia norteadora da prática policial.
[7] Ver os trabalhos de Marildo Menegat, a começar por “A guerra civil no Brasil”. In: O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006.
Referências:
ABRAMOVAY, P. & MALAGUTI, V. (orgs.). (2010). Depois do grande encarceramento. RJ: Revan.
GIORGI, A. (2010). A miséria governada através do sistema penal. RJ: Revan.
MALAGUTI, V. (org.) (2012). Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. RJ: Revan.
___. (2012a). Adesão subjetiva à barbárie. In: Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. RJ: Revan.
MELOSSI, D. & PAVARINI, M. (2006). Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). RJ: Revan.
MENEGAT, M. (2006). O olho da barbárie. Sp: Expressão Popular.
___. (2013). Estudos sobre ruínas. RJ: Revan.
POLESE, P. (2015). A redução da maioridade penal face à indústria do cárcere.
RUSCHE,G. & KIRCHHEIMER,O. (2004). Punição e Estrutura Social. RJ: Revan.
WACQUANT, L. (1999). As Prisões da Miséria. RJ: Zahar.
___. (2008). Os condenados da Cidade: estudos sobre marginalidade avançada. RJ: Revan.
___. (2009). Punir os pobres. A nova gestão da miséria nos Estados Unidos. RJ: Revan.
As fotografias que ilustram a primeira parte deste artigo são do estadunidense Devin Allen
Voces são otimos fogo, que o vosso site seja conhecido por todos os portugueses. Tão bem escrito, tão bem esclarecido, tão bem visto!…