Por AnkerMag
Este artigo é parte do livro Lutas na pandemia, publicado em inglês pelo coletivo Notes from below e cuja Introdução foi publicada em português aqui. Fizeram parte da publicação os artigos A chamada da morte: pânico no atendimento, Atento: resistindo à chamada da morte e Odisseia da morte: persiste a luta pela vida na Atento. A tradução é de Marco Tulio Vieira.
Enquanto a COVID-19 estava se espalhando rapidamente através do mundo, o governo da Bélgica iniciou oficialmente o lockdown em 18 de março. A reação do governo belga foi lenta, inconsistente e ambígua, apesar do número de mortos continuar a subir na casa das centenas a cada dia na Itália e da inquestionável disseminação do vírus por toda a Europa. No momento em que escrevemos continua sendo difícil coletar dados confiáveis e que possam ser comparados enquanto a epidemia continua. De acordo com o Centro de Recursos para o Coronavírus Johns Hopkins, a Bélgica tem a maior taxa de mortalidade de COVID-19 em proporção à sua população no mundo. Ainda que muitos fatores estejam por trás deste número, o atraso do lockdown com certeza contribuiu para o seu aumento.
O atraso na adoção de medidas preventivas para retardar a disseminação do vírus foi causado principalmente pelas negociações entre o governo e a Federação Belga dos Empresários (FEB). As negociações estavam centradas em quais atividades seriam consideradas essenciais e quais seriam fechadas. Vale a pena mencionar que as negociações se deram logo após o acordo para a formação de um novo governo no notoriamente litigioso e complexo sistema federalista de governo na Bélgica. Nas discussões com as diferentes facções e partidos, tanto o governo quanto a FEB compartilhavam o objetivo de manter o máximo possível da produção funcionando. Logo, a prioridade do governo era claramente assegurar a continuidade do processo de acumulação em vez de responder à crise de saúde, sanitária e socioeconômica desencadeada pela pandemia.
Essa abordagem baseada na consulta ao setor empresarial foi largamente favorecida pelos governos nacionais ao redor do planeta. Além disso, o governo belga adotou uma retórica de “unidade nacional” com o objetivo de gerar um consenso envolvendo as medidas de emergência. Porém, a abordagem geral adotada para lidar com a crise da COVID-19 não gerou nada sequer próximo a um consenso. Nas sessões seguintes vamos explorar como essas políticas foram contestadas por um ponto de vista dos de baixo.
A crise desde baixo
É praticamente impossível apresentar uma visão detalhada da atual crise que contenha a totalidade dos efeitos e reações vindas dos de baixo. Isto se dá devido a vários fatores interdependentes: a complexidade da composição de classe, a rápida evolução dos processos e as infinitas implicações, características e interconexões da fase atual. A crise afeta todos os segmentos de classe, mas o faz com diferentes graus de intensidade e de maneiras diferentes. Por causa da articulação destes efeitos é possível apenas apresentar breves relatos de alguns segmentos específicos de classe e as formas mais visíveis de atividade, enquanto tentamos sublinhar alguns traços em comum. Nós observamos um quadro interessante e bastante variado de estratégias e práticas de mobilização e resistência, tanto individuais como coletivas.
Do absenteísmo à greve: os trabalhadores em supermercados de Bruxelas
Uma das maiores prioridades desde o início da crise tem sido manter a comercialização de alimentos e produtos de uso diário. Portanto, todo o processo de circulação dessas mercadorias, desde as cadeias logísticas até supermercados e lojas, foi definido como estrategicamente importante e os seus trabalhadores foram imediatamente chamados de “essenciais”. Uma das primeiras mobilizações de trabalhadores em Bruxelas aconteceu nas grandes redes de supermercados. Ela foi causada pela falta de equipamento básico de proteção, condições de trabalho perigosas, impossibilidade de manter as medidas de distanciamento social, além de ser um dos setores com os piores salários e onde os contratos de trabalho mais precários são implementados. Desde o início os protestos foram caracterizados por uma onda de absenteísmo individual, a ponto de a federação de empresários do setor (COMEOS) e as maiores empresas chegarem a denunciar o fenômeno publicamente, alertando que poderia levar ao fechamento de várias lojas.
Lançando mão de uma estratégia dupla, as grandes redes de supermercados ofereceram um bônus de compensação em uma tentativa de incentivar os trabalhadores a irem trabalhar. Por outro lado, as empresas e a COMEOS aproveitaram a oportunidade para abocanhar uma nova força de trabalho depois do fechamento de universidades e escolas, ao propor a ampliação do limite de horas que estudantes podem trabalhar.
Assembleias convocadas pelos trabalhadores, com o apoio dos seus sindicatos, aconteceram em várias lojas pela cidade. O medo dos trabalhadores de serem expostos ao vírus e a consciência de que estavam sendo chantageados e de terem de escolher entre sua saúde e seu salário eram tangíveis. Depois de algumas paralisações descoordenadas, uma greve oficial aconteceu no dia 03 de abril. A maioria dos trabalhadores, no entanto, foi convencida a retornar ao trabalho apesar das poucas conquistas. O discurso de serem “essenciais” para a população e o argumento dos sindicatos de que precisavam de tempo para negociar podem ter sido as principais razões para o recuo da mobilização.
“Nós não precisamos ser chamados de ‘heróis’, nós precisamos de proteção e de materiais!”: os hospitais e os serviços de saúde
O setor de saúde na Bélgica e principalmente em Bruxelas é um foco de mobilizações há cerca de um ano. O pilar das lutas tem sido “La santé en lutte” [a saúde em luta], um movimento auto-organizado que junta todos os trabalhadores dos hospitais, independentemente da categoria, e que inclui alguns delegados de base dos sindicatos. Desde o início, ele vem denunciando a falta de equipamento, infraestrutura, pessoal e medidas de segurança; além do excesso de trabalho, das enormes diferenças de salários e da mudança em direção a uma administração neoliberal do setor de saúde.
A ministra da saúde, Maggie De Block, anunciou outro corte no orçamento semanas antes do lockdown, no momento em que médicos avisavam sobre a possibilidade de um colapso do sistema hospitalar caso houvesse uma pandemia. Em várias entrevistas, De Block argumentou que a COVID-19 não era nada mais do que “uma gripe sazonal” e que médicos, trabalhadores da saúde e cientistas que levantaram preocupações estavam “fazendo drama”. Quando a pandemia chegou e o número de internações nos hospitais aumentou drasticamente, algumas das previsões se tonaram verdade. Essa combinação explosiva contribuiu para inflamar os conflitos já existentes e fez com que a consciência política dos trabalhadores da saúde avançasse. No momento em que escrevemos, o movimento “La santé en lutte” conseguiu consolidar um consenso de massas ao seu redor. Quando o número de internações em UTIs alcançou um ponto crítico, a população em geral correu para seguir comportamentos vistos em países que foram mais atingidos, como aplaudir os trabalhadores durante determinado momento do dia.
Com a atenção voltada para as lutas do setor de saúde, trabalhadores organizados no setor conseguiram sair na frente e atrair parte significativa da opinião pública para uma crítica dura aos cortes no sistema de saúde nacional. Incapazes de se organizarem nas formas tradicionais devido a pandemia, “La santé en lutte” está conduzindo uma forte campanha nas mídias sociais, não apenas em apoio ao sistema de saúde, mas também criticando as políticas do governo. A campanha consiste em estimular as pessoas a demonstrarem seu apoio mostrando cartazes nas janelas e varandas, assinando petições online e planejando realizar uma grande manifestação assim que isto puder ser feito com segurança. Os efeitos dessa campanha midiática podem ser vistos e ouvidos por toda a cidade, muitas varandas têm cartazes com palavras de ordem do “La santé en lutte” e pessoas gritam para “darem mais dinheiro para os hospitais públicos” durante as celebrações diárias às 20h a favor dos trabalhadores da saúde.
Em um nível político, nós estamos testemunhando uma categórica negação por parte da população do discurso dos “heróis na linha de frente”. As palavras de ordem e as reivindicações vão desde o pedido de um massivo reinvestimento no setor de saúde até a requisição de clínicas e materiais privados. O movimento também questiona a administração do setor de saúde e demanda que a ministra da saúde abandone o cargo.
Duas das suas principais palavras de ordem merecem um olhar mais atento: “Nossas vidas valem mais que os lucros deles” e “Depois (do período de emergência) nós vamos fazer vocês pagarem”. A primeira claramente demarca a consciência de que estão sendo sacrificados na linha de frente da emergência como consequência da incapacidade do governo em lidar com a situação, mas também de terem de pagar com suas vidas e saúde o custo de décadas de cortes e de políticas neoliberais. A última demarca o fato de que eles vão encontrar uma forma de revidar e que não vão esquecer quem e o que os trouxe até a situação em que estão vivendo esses dias.
“Ativismo de varanda”
Desde os primeiros dias do lockdown, em parte espontaneamente e em parte como uma resposta aos chamados dos movimentos sociais, nós temos visto inúmeros cartazes e mensagens nas varandas e janelas de Bruxelas. Inicialmente, os cartazes eram principalmente em apoio aos trabalhadores dos hospitais. Nas semanas seguintes, as mensagens começaram a ficar mais políticas e traziam muitas reivindicações diferentes, de questões de moradia a acesso aos serviços sociais básicos. Outros cartazes denunciavam a repressão policial e a violência doméstica, ou divulgavam questões ambientais. Essa forma de ativismo através dos cartazes mostra uma vontade de “não se calar durante o lockdown” e, de certo modo, representa uma nova forma de ativismo político. A partir de nossa observação superficial, atrás das janelas nós descobrimos, em termos de composição de classe, um intrincado e complexo labirinto de subjetividades extremamente heterogêneas, que estão longe de serem uniformes.
Sem buscar fazer uma síntese geral, nós as dividimos em três grupos principais:
1. Trabalhadores das indústrias de serviços, dos setores sociais e culturais que estão trabalhando remotamente usando tecnologias de telecomunicação.
2. Trabalhadores de atividades “não essenciais”. Dependendo do setor, alguns ainda estão recebendo em média 70% do seu salário. Outros perderam completamente seus empregos ou fontes de renda (por exemplo, os cerca de 140.000 estudantes trabalhando nos serviços de hospitalidade).
3. Trabalhadores realizando serviços de cuidado e trabalho reprodutivo, que são invisíveis e não são pagos.
Subjetividades e tendências durante a pandemia
De invisíveis a trabalhadores essenciais
Sem dúvida, os trabalhadores que estão mostrando um nível maior de resistência e conflitos são aqueles que estão na “linha de frente” da emergência da pandemia. Ontem, esses trabalhadores eram invisíveis e estavam nas franjas do mercado de trabalho. Hoje, eles são considerados vitais e “essenciais”. São trabalhadores nos serviços de saúde, distribuição e varejo, logística, coleta de lixo ou da indústria de alimentos e agricultura, estes trabalhos estão entre os mais precários, explorados e mal pagos da Bélgica. Quando olhamos para a sua composição social, podemos perceber que têm uma composição de classe altamente transnacional, racial e sexual. Estas características não são mera coincidência. Em meio às suas tendências de desenvolvimento, o capitalismo elabora e reelabora as formas de dominação e exploração, experimenta novas formas de se libertar das relações de trabalho existentes e inventa novas técnicas de chantagem e coerção para impedir qualquer comportamento de insubordinação por parte da classe trabalhadora. É normal que estes trabalhadores já altamente explorados demonstrem um alto nível de conflituosidade e recusa quando lhes pedem novamente que paguem um alto custo pela crise e que tenham de escolher entre saúde e salário.
Tendências de reestruturação
Durante a pandemia e a crise que lhe seguiu, o neoliberalismo acelerou violentamente seu processo de desenvolvimento e reestruturação em todas as direções. Por exemplo, o trabalho remoto já fazia parte deste processo de reestruturação do trabalho, mas as necessidades do lockdown fizeram com que fosse possível implementá-lo rapidamente de forma massiva e generalizada. A expulsão de um número significativo de trabalhadores de certos setores corresponde às necessidades de desenvolvimento do neoliberalismo. Isto se encaixa com o aumento do foco nas cadeias globais de suprimentos, que vão desde a logística até a entrega de mercadorias na porta das casas e a aceleração da automação e digitalização.
Tamanha restruturação, ocorrendo justamente em um momento de crise, já está contribuindo para a criação de novas subjetividades. As conversas na Europa sobre um novo “Plano Marshall” baseado na chamada economia verde, novas tecnologias e investimentos em infraestrutura, como uma resposta às consequências econômicas causadas pela crise da COVID-19, também vão acelerar as tendências de desenvolvimento já mencionadas.
Em tal contexto, a tarefa das enquetes operárias é justamente desvelar as características desta nova etapa, não apenas antecipar os planos do capital, mas também localizar e explorar novas oportunidades táticas, identificar novas linhas de ruptura e contribuir com os novos elementos de uma ciência de classe.
Referências adicionais:
• Ankermag
As imagens que ilustram esse artigo forma retiradas do site do Ankermag. A imagem de destaque divulga uma campanha de uma “greve de aluguéis”.