Por João Bernardo

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Quando se desagregou a União Soviética e com ela os demais regimes da sua esfera de influência, lembro-me de a Rita Delgado me ter dito que lastimava a forma como aquilo sucedera. Foi uma grande derrota, comentou a Rita, que o fim do capitalismo de Estado soviético fosse ditado por uma implosão das elites e não por um processo revolucionário gerado e conduzido pelos trabalhadores.

Os anos seguintes mostraram que o problema fora ainda mais grave.

Um processo revolucionário internacional, que se iniciara em 1915-1916 nas trincheiras francesas e alemãs e rapidamente se espalhara a toda a Europa, acabou por se confinar à Rússia, onde o partido leninista anunciou que iria remodelar a sociedade e a economia. Em vez de transformar a sociedade transformou os membros do partido, que passaram de militantes internacionalistas a burocratas nacionalistas. E quanto à economia, os trabalhadores continuaram a ser o que eram e os membros do partido converteram-se em gestores. Quando os grupos esquerdistas celebraram o centenário da tomada do poder pelos bolchevistas, não entendi bem o que eles estavam a comemorar.

A economia soviética, em que o Estado tinha a pretensão de constituir um mercado único, assegurando para si próprio uma posição monopolista, só funcionava graças à existência de uma miríade de mercados paralelos. No lado público do cenário estavam os planos económicos e as suas realizações. Mas nos bastidores estava a multiplicidade de empresários ilegais que compravam onde havia excedentes além do planificado e vendiam onde esses bens faltavam, estavam os pequenos produtores de géneros que permitiam aos estômagos ficarem menos vazios do que as prateleiras dos supermercados, estavam os desenrascados que trabalhavam por conta própria quando faltava uma mão-de-obra que o plano não previra. Em suma, o mito de uma economia estatal monopolista e planificada, movida ao ritmo lento das decisões burocráticas, só não aluía porque por detrás, ou por baixo, estava uma economia ilegal, versátil e muito rápida. Todos sabiam, mas a censura e o controle ideológico eram suficientes para que fingissem não ver.

Nos últimos anos do regime soviético a elite dirigente procurou harmonizar oficialmente aquelas duas estruturas económicas, mas sem o conseguir, porque a ficção se tornara já demasiado frágil e transparente para ter algum peso perante a realidade. As privatizações que se sucederam ao colapso do regime soviético foram financiadas pelo capital acumulado na economia ilegal e paralela, que se apoderou das empresas e dos mecanismos da economia legal. O aparente caos dos primeiros anos do novo regime e o gangsterismo então reinante nas relações económicas foram a expressão mais escandalosa da substituição das disputas burocráticas à porta fechada pelos confrontos entre capitais que haviam nascido na ilegalidade e não conheciam outro estilo senão o da delinquência.

Em todo este processo, como a Rita Delgado lamentou, os trabalhadores não desempenharam outro papel além de trabalhar. Que ilusão, a da extrema-esquerda daquela época, ao pensarmos que havia chegado a nossa vez e que a revolução estava ali, ao alcance da mão! Julgávamos que éramos a oposição ao regime soviético e esta convicção constituía a nossa razão de ser, mas afinal a história remeteu-nos a um mero lugar de apêndice. Quando a União Soviética se desmoronou, a extrema-esquerda desmoronou-se com ela. Este colapso teve consequências arrasadoras e ditou toda a situação actual. O programa daquela esquerda era social ou, mais exactamente, económico-social, e para a extrema-esquerda o fulcro da economia e da sociedade eram as relações de trabalho. Toda a nossa crítica ao regime soviético decorria do facto de considerarmos que ele alterara as relações jurídicas de propriedade, mas não as relações sociais de trabalho. E ao afirmarmos que a essência da revolução seria a transformação das relações de trabalho estávamos a extrair as lições dos movimentos autonomistas das décadas de 1960 e 1970, que conheceram os últimos episódios em Portugal e na Polónia. Porém, quando o curso da história aboliu a extrema-esquerda juntamente com o capitalismo de Estado soviético a que nos opúnhamos, suprimiu também o lugar central que conferíamos ao problema das relações de trabalho. A esquerda económico-social desapareceu, e no seu lugar surgiu de maneira abrupta algo completamente diferente. Foi uma nova época que se iniciou.

Mas, antes de mais, a que é que eu chamo esquerda aqui? As definições rigorosas têm enormes vantagens, senão não existiriam dicionários, e são frequentemente indispensáveis. Mas podem ter inconvenientes também, quando procedem a cortes arbitrários numa realidade fluida e num decurso temporal ininterrupto. A esquerda a que me refiro aqui não é só a esquerda que é, mas ainda a que está ligada à que já foi ou está prestes a deixar de ser. A própria dúvida sobre o significado da palavra faz parte da esquerda e dela resulta a dinâmica deste ensaio.

Ora, os marxistas, que se gabam de possuir um método científico para a análise da realidade e consideram que a ideologia correcta, ou seja, a deles, dita uma prática correcta, deviam meditar um pouco sobre o facto de só terem acumulado fracassos, enquanto os capitalistas, reduzidos a um pragmatismo a curto prazo, obtêm sucessivas vitórias. Pior ainda, porque os fiascos dos marxistas deveram-se às suas contradições internas, e as tão apregoadas contradições internas do capitalismo têm sido o mecanismo gerador dos processos de destruição criativa, ou seja, têm contribuído para assegurar o desenvolvimento do capital. Será que as teorias, as grandes teorias globais, são apenas balões de ar e não têm nenhuma influência sobre a prática? Mas a questão é mais profunda, ou talvez seja outra. Pouco depois da derrocada do regime soviético eu estava num grupo de amigos e amigas, em São Paulo, entre eles o prematuramente falecido Fernando Prestes Motta, e ouvíamos os Quatro Últimos Lieder, de Richard Strauss. Alguém recordou a relutante simpatia do compositor pelo nazismo, que o levara durante alguns anos a presidir à Reichsmusikkammer, e eu comentei que aquela obra devia considerar-se como um Requiem pelo Terceiro Reich, acrescentando que, na minha previsão, nenhum compositor do extinto regime soviético iria compor uma obra equivalente. Estava certo. Tal como nenhum escritor desse regime escreveu um romance equiparável ao Dieu est né en exil, do antigo fascista romeno Vintilă Horia, para nem mencionar alguns romances de autores franceses que durante a segunda guerra mundial haviam colaborado activamente com o ocupante e defendido um fascismo radical. A que se deveu esta diferença na extinção dos dois regimes?

A transformação precipitada pelo colapso da esquerda económico-social foi tanto mais devastadora quanto os trabalhadores se viram convertidos de uma classe numa identidade. A problemática do identitarismo tem múltiplas vertentes, que irei sucessivamente abordando ao longo deste ensaio, mas agora interessa-me focar o seu aspecto desagregador. Na perspectiva identitária, capitalismo passa a ser considerado como uma simples injúria, um nome que se atribui a tudo aquilo que se detesta, e não como uma teia de relações sociais mobilizada a partir das relações de trabalho e, portanto, como um sistema de exploração. A problemática da exploração praticamente desapareceu, substituída pela desigualdade na distribuição dos rendimentos, quando não é o próprio tema da economia a ser posto de parte. A transformação dos trabalhadores de classe em identidade foi o golpe mortal que liquidou a extrema-esquerda económico-social, foi o nosso epitáfio. O explorado define-se num sistema contraditório de relações entre classes interdependentes, por isso a sua luta pela abolição da exploração, ou seja, pela supressão desse sistema contraditório, implica uma luta pelo seu próprio desaparecimento enquanto classe social, junto com as restantes classes. O identitarismo, porém, não concebe explorados, mas vítimas, cujo carácter é independente das restantes identidades. Esta hegemonia adquirida pela noção de opressão das vítimas sobre a noção de exploração dos trabalhadores corresponde a um triunfo do anarquismo sobre o marxismo, mas um anarquismo na sua modalidade mais primitiva e individualista. É a própria noção de sociedade que assim se extingue ou, pelo menos, passa para um plano secundário — como pudemos ver de forma clara, e trágica, durante a recente pandemia.

Como pôde ocorrer uma transformação tão completa? É certo que a definição de explorado é sempre passível de uma formulação económica abstracta, considerando-o como alguém que ocupa uma dada posição num dado sistema de relações de trabalho, independentemente da sua aparência empírica. Mas no início do capitalismo, e durante bastante tempo, a noção de classe explorada correspondera a uma realidade concreta e bem visível. O desenvolvimento económico, porém, multiplicou as instâncias componentes do capitalismo e as suas articulações recíprocas, ao mesmo tempo que o mundializou, e este duplo processo acentuou a heterogeneidade social dos trabalhadores. Por um lado, o aumento da complexidade do trabalho, que implica a aquisição de novas qualificações, não só abrange apenas uma parte dos trabalhadores como pressupõe que qualificações anteriores sejam relegadas para um estatuto inferior ou mesmo percam a utilidade. Esta cisão é hoje trágica, quando vemos alguns países da União Europeia darem as boas-vindas aos imigrantes profissionalmente qualificados e deixarem os outros afogar-se no Mediterrâneo. Não se trata somente de uma diferença de remunerações entre os trabalhadores mais qualificados e os menos qualificados. Talvez o aspecto decisivo seja a crescente diferença de instrução, de gostos e de comportamentos, e como o progresso económico vai sempre agravando esta disparidade, ocorreu uma verdadeira clivagem social entre os trabalhadores mais qualificados e os menos qualificados. Foi neste hiato que surgiu e se impôs a noção de classe média, que mais ainda contribui para dificultar que a classe trabalhadora definida abstractamente em termos económicos se converta numa realidade sociológica em que prevaleça a homogeneidade. E como, entretanto, o capitalismo se ampliou a todo o mundo, a classe trabalhadora integrou culturas, modos de vida, religiões e processos de pensamento distintos e que mal começaram a criar elementos em comum.

A esquerda marxista, ou o que dela resta, que tanto tempo e tantas páginas dedica às contradições entre capitalistas e trabalhadores, alheia-se candidamente das contradições no interior da classe trabalhadora e salta da definição económica da classe para a sua definição sociológica, como se não fosse esta a questão crucial. Ora, só através da mobilização numa luta global seria possível colmatar a disparidade entre a existência económica da classe trabalhadora e a sua actual inexistência sociológica enquanto classe.

Mas é este mesmo o problema, porque como poderão os trabalhadores desencadear uma luta global se sociologicamente pouco ou nada sentem em comum? Além da concorrência de sempre no mercado de trabalho, os trabalhadores passaram a estar separados pela enorme diferença de qualificações e, talvez pior ainda, pela diversidade de tradições culturais, religiões, hábitos de pensamento. E assim a possível solução aparece como a verdadeira dificuldade. A distância crescente entre a definição económica da classe trabalhadora e a sua indefinição sociológica permite ao capitalismo superar os obstáculos que surjam ao seu desenvolvimento, recuperando e assimilando os conflitos pontuais e usando-os como elemento motor da complexidade do trabalho e, portanto, do refinamento da exploração. A diluição da existência sociológica da classe trabalhadora é um facto de importância crucial e foi neste quadro que a soma de identidades substituiu a classe trabalhadora, levando à extinção da própria noção de sociedade. Mas as consequências foram mais graves ainda.

Penso ter mostrado exaustivamente que o fascismo não é uma modalidade da extrema-direita, onde geralmente a esquerda o inclui, nem é uma modalidade da esquerda, como afirma alguma direita e, no caso do peronismo, como pretende grande parte da própria esquerda. O fascismo é uma dupla câmara de eco, onde na direita se repercutem temas originários da esquerda e na esquerda soam temas oriundos da direita. Neste cruzamento gera-se algo diferente, em que é possível encontrar os traços da proveniência, mas que constitui uma nova realidade ideológica e política. Este foi o fascismo clássico, surgido depois da derrota da grande vaga de lutas que a classe trabalhadora iniciara durante a primeira guerra mundial e prosseguira nos anos seguintes. O fascismo não se ergueu para vencer um movimento impulsionado pela classe trabalhadora, mas só depois de esse movimento estar enfraquecido pelas suas contradições internas e degenerado pela sua burocratização. Ora, esmagado militarmente na segunda guerra mundial, aquele fascismo clássico sobreviveu ideologicamente sob outros nomes e sem mostrar o rosto ou assumindo novas fisionomias, até ressurgir nas últimas décadas em formas que actualizam e renovam as suas modalidades clássicas. E também agora ele se ergue contra uma classe trabalhadora que, pior do que derrotada, se encontra desagregada pela ausência de uma realidade sociológica que corresponda à sua realidade económica. Neste vazio irromperam e implantaram-se os fascistas do pós-fascismo.

Quatro traços bastam para delinear o rosto do novo fascismo, que abordarei sucessivamente ao longo deste ensaio. É mais fácil começar pela ecologia, porque aí a linha de continuidade relativamente ao fascismo clássico manteve-se muito visível. Nos identitarismos, pelo contrário, a filiação é dissimulada, como sucede naqueles rios que correm debaixo de terra para brotarem mais longe. Por seu lado, a reformulação do nacionalismo no terceiro-mundismo e nas suas encarnações actuais, em que foi inteiramente assimilado pelos identitários, conservou vários aspectos da época clássica do fascismo, a ponto de a terminologia e o discurso parecerem por vezes copiados. Finalmente, a criação de mitos, sem a qual o fascismo não existe ou que consubstancia até o objectivo último da sua existência, atingiu uma enorme amplitude ao confundir-se com a própria linguagem.

Estes quatro traços descrevem o mundo em que vivemos, tal como tentarei resumir na conclusão deste ensaio. E se no período entre as duas guerras mundiais, apesar de tantas dificuldades, existiam uma esquerda e uma extrema-esquerda que se contrapunham ao fascismo, hoje, além do fascismo pós-fascista e de alguns continuadores do fascismo clássico, existem apenas regimes autoritários e um conservadorismo moderado, mais apto ao consenso e à conciliação do que à disputa. Os fascistas do pós-fascismo ressurgiram no campo da esquerda e absorveram-no. O populismo é o cruzamento dos ecos provenientes de ambos os extremos, mas é sobretudo no campo da esquerda que se reflectem agora as aspirações da extrema-direita. A situação é muito pior do que foi há um século.

Este ensaio é composto por seis partes. Pode ler aqui a segunda parte, a terceira parte, a quarta parte, a quinta parte e a sexta parte.

As obras que ilustram este texto são da autoria de Yves Tanguy (1900-1955).

27 COMENTÁRIOS

  1. Caro João,

    Em primeiro lugar, parabéns pelo texto! Como sempre, muitíssimo bom! Faço uma pergunta (na realidade, duas), e além disso gostaria de uma indicação da sua parte.
    Poucos anos atrás eu comprei um livro seu que é uma análise do regime soviético, que infelizmente não cheguei a ler, mas emprestei a meu pai e ele infelizmente o perdeu. Foi editado por alguma editora do campo da esquerda libertária/autogestionária, mas o nome eu não me recordo. Você lembra do nome desse livro (talvez haja mais de um…?)?
    A segunda pergunta (na realidade, duas em uma): é possível dizer que o regime soviético colapsou porque os capitalistas gestores do estado soviético perceberam a dada altura que era mais vantajoso que o país se transformasse num outro tipo de capitalismo, e assim decidiram começar a transformar as coisas? Isto é, transformar o Estado num capitalismo aos moldes do capitalismo hegemônico, cujos principais expoentes na época eram os EUA e a União Europeia? Além disso, a economia paralela já existente na URSS foi uma das causas do colapso do regime e sua transformação, ou apenas foi algo que já vinha acontecendo (acontecimento este sem dúvida relevante) antes, e continuou acontecendo após o fim do capitalismo de estado naquele lugar?

    Um abraço!

  2. Caro Antonio de Odilon Brito,

    Acredito que o livro mencionado seja “Crise da economia soviética”.

    As outras perguntas foram endereçadas ao João Bernardo, mas me permito um pitaco: vejo um problema na sua formulação, pois sugere uma interpretação da decorracada do capitalismo de Estado soviético como decorrente de decisões das elites políticas e econômicas e não das contradições internas do sistema, que implodiu. A leitura do livro referido acima possibilita tal compreensão.

    Caro João,
    Fico no aguardo das próximas partes.
    Coincdentemente, li a primeira parte logo após ter lido uma entrevista com o quilombola Antônio Bispo, publicada pela Folha.
    Os fascistas pós-fascistas grassam pelos setores ditos progressistas e em tempos de rotulações, tentam colar naqueles que ainda interpretam o mundo a partir das contradições entre as classes sociais a alcunha de “colonizados”.
    Sigo cada vez mais cansado de tudo isso, pois é inegável que “a situação é bem pior do que foi há um século”.

    Um abraço fraterno para você e a Rita,
    VdR.

  3. VdR está corretíssimo ao identificar A. B. Dos Santos como fascista. Ele coloca os quilombolas acima da luta de classes, defende os mitos contra a ciência , a ligação orgânica com a terra, o pensamento circular contra a linearidade histórica, o desprezo pela razão e pela modernidade , entre outras coisas. Idem para Krenak e Kopenawa. E o grande teórico brasileiro da luta entre “cosmologias” e “ontologias” supostamente incomensuráveis, que dá amparo “científico” etnológico para tudo isso é Viveiros de Castro. Isso em diálogo direto com outros inimigos da ciência moderna e da razão, Bruno Latour, e mesmo Heidegger, notório nazista, etc. É interessante como todos estes odeiam Descartes, mas idolatram Heidegger! Descartes é acusado de introduzir o racismo na filosofia com o cogito, mas Heidegger, que de fato introduziu o nazismo na filosofia, como defende corretamente Emmanuel Faye, este é citado por todos os adeptos dessa ontologia-cosmológica-etnológica sem qualquer menção à sua relação direta com o III Reich. Esses e tantos outros que se tornaram leitura obrigatória dessa esquerda fascistizada. Me encontro com VdR nas fileiras daqueles que estão cansados de tudo isto…

  4. Antonio de Odilon Brito,

    VdR antecipou as minhas respostas. Analisei o regime soviético em vários livros, mas decerto você se refere a Crise da Economia Soviética, que foi publicado em Portugal (Coimbra: Fora do Texto, 1990) e muitos anos depois no Brasil (Aparecida de Goiânia: Escultura, 2017).

    Quanto à outra questão, não creio que as grandes transformações de regime se devam a opções tomadas pelos dirigentes. Quando essas opções são tomadas, a transformação já está muito avançada na prática. Na verdade, o que parece uma opção é um reconhecimento, mais ou menos tardio, da situação prática. Aliás, é o que pretendi dizer no texto, quando afirmei que a economia planificada só funcionava porque havia uma economia paralela a dar-lhe a maleabilidade necessária; que a tentativa de conciliar oficialmente ambos os sistemas fracassou, porque um definhava e o outro crescia; e que o colapso do regime soviético foi o reconhecimento de um facto que já era impossível esconder.

    VdR e Irado,

    Não me canso de repetir que as pessoas dessa esquerda, assim chamada, deviam ler os autores fascistas, deviam ler Codreanu, deviam ler Julius Evola, que eu classifico como meta-fascista, deviam ler O Mito do Século XX de Alfred Rosenberg, deviam ler Mein Kampf, deviam ler as publicações dos SS, deviam ler José Antonio, deviam ler os fascistas nipónicos, com o mito dos samurais, deviam meditar sobre os motivos que levaram Marcus Garvey a proclamar-se inventor do fascismo. Mas não o fazem, claro. Todo o fascismo pós-fascista exige o deliberado esquecimento, a cuidadosa maquiagem, em suma, apresentar a múmia como recém-nascida.

    Quando eu tratar dos identitarismos e da produção de mitos, respectivamente na terceira e na quinta parte deste ensaio, mostrarei a sua ligação ao nacional-socialismo não só pelas ideias mas, muito mais do que isso, pela própria estrutura do pensamento. E esta é a mais profunda relação genética.

  5. oportuno recordar que Krenak foi assessor especial de ngm mais ngm menos que o gangster do Aécio Neves.

  6. João Bernado, como sempre seus textos, indagações e provocações são instigantes.
    Como o colega acima vou assumir que não terminei de ler – ainda – Labirintos do Fascismo , mas decorrido umas 1000 paginas acho que já tateio o direcionamento de seu pensamento e posso afirmar que o é certeiro e triunfa onde outros se perdem ou abdicam de tentar explicar fenomeno tão complexo.
    Todavia meu intento aqui é na realidade pedir para o coletivo do Passa Palavra e o autor de reunir esses artigos que usualmente publica aqui, muitas vezes sobre diversos temas em um livro único para facilitar o entendimento e a localização na obra de JB.
    Já há artigos suficientes para tal acredito eu e seria um acréscimo interessante as discussões daquelas e daqueles que estão em luta contra o capitalismo a exploração e opressão

  7. João, sobre a questão das “cosmologias” enquanto “ontologias” que fundamentam sistemas culturais supostamente incomensuráveis entre si, você já respondeu aqui: “Os românticos levaram ao extremo a noção de psicologia dos povos, estipulando como fator rácico determinante uma forma de pensamento, anteriormente ao seu conteúdo intelectual ou mesmo sem esse conteúdo” (Labirintos, Vol.4, 2022, p.20). Viveiros de Castro chegou nessa mesma questão com seu conceito de “perspectivismo ameríndio”, que ele considera algo muito mais profundo que o mero “relativismo cultural”, considerado por ele ainda eivado de etnocentrismo. Tratam-se de “ontologias” culturais, essências que antecedem toda e qualquer existência, que definem qualquer indivíduo como indígena independente do seu grau de contato ou mesmo de “assimilação” (aculturação). Toda sua estrutura cognitiva, cultural, linguística, mental, psicológica, emocional, moral, ética, etc. é definida por essa “ontologia”, sempre antagônica às “ontologias modernas”. Num sentido muito parecido Latour faz a distinção entre “Terráqueos” e “Humanos”, ao discutir a “Guerra dos Mundos”, esse choque “epistêmico” entre posições irremediavelmente antagônicas, baseado em Carl Schmitt… Se existe algo mais antropologicamente fascista nas teorias contemporâneas, eu desconheço…

  8. Caros VdR e João,

    A referência do livro é exatamente essa mesmo! Muito obrigado, irei atrás novamente de uma cópia. A leitura do livro me permitirá ter uma perspectiva mais embasada acerca da questão que eu falei da derrocada da URSS. E quanto à questão de alguma esquerda que absorve (sem saber?) elementos do fascismo, concordo demais!

    Trago agora uma outra questão que o texto levanta. O João fala no texto sobre a “enorme diferença de qualificações” entre diferentes grupos de trabalhadores, e isso me lembrou que desde que a parte 2 do texto “São Marx, Rogai Por Nós” (https://passapalavra.info/2020/06/132188/) foi publicada, a seguinte sentença não para de martelar na minha cabeça: “E os trabalhadores que laboram em espaços virtuais e produzem bens virtuais estão agora na ponta do processo de extorsão da mais-valia relativa, quer dizer, ocupam as fronteiras últimas do capital em expansão.” Ocorre que já há algum tempo que eu sou programador, e estando inserido nesse meio eu consigo ver o quanto e o quão rápido o mundo da tecnologia que lida com computadores muda: a cada mês é um novo framework, biblioteca, linguagem de programação ou sei lá mais o quê que surge (há muito modismo nisso, e esse fenômeno não pode ser superestimado). E agora temos o ChatGPT que resolve bastantes problemas no dia-a-dia da programação, pois existe coisa nessa área que é chato e repetitivo mesmo (ao contrário do que os ignorantes que não sabem o que é passar instruções pra um computador acham, pois muitos pensam, tal qual os ludistas do começo do século 19, que as máquinas – Inteligência Artificial – estão a substituir os trabalhadores – programadores). Sempre naquela relação dialética, claro, que envolve a intensificação da exploração do trabalho e o aumento da produtividade, sendo que nesse meio tempo muita gente fica temporariamente desempregada (o que infelizmente já está acontecendo com muitos de nós envolvidos com tecnologia).

    Pois bem, são muitas pessoas ingressando nessa área, muitas das vezes (imagino eu, mas posso estar errado) para adquirir a técnica da programação de maneira a continuarem empregados nos seus atuais empregos. Por outro lado, vejo que há ainda toda uma massa de trabalhadores que mal consegue ler (quando lê) textos simples, usar vírgula, ponto e vírgula, diferenciar “tem” de “têm” ou “mas” de “mais”. De cara já penso em diversos exemplos concretos de pessoas trabalhadoras que se enquadram nisso, e são sujeitos que passam bastante dificuldade porque estão em trabalhos que pagam 1 ou 1,5 salários mínimos. Quando o texto fala na “enorme diferença de qualificações”, é exatamente isso que me vem à mente: uns trabalhadores que tiveram acesso a uma educação que os tornaram capazes de desenvolver programas de computador extremamente complexos (aqueles objetos que não caem com a “força da gravidade”, para ficar ainda na parte 2 do texto “São Marx etc…” – aliás, as empresas desenvolvedoras de software são verdadeiras fábricas de produtos que não caem com a força da gravidade, não é verdade!), e outros trabalhadores que infelizmente, com esse sistema educacional horrível que se tem em tantos países das Américas (exceto Canadá, talvez?) e de vários outros lugares do mundo, não adquiriram a capacidade de raciocinar de maneira um pouco mais complexa. Qual é o destino destes últimos? Porque me parece que a disparidade de qualificações entre esses diferentes trabalhadores só aumenta…

    Aliás, me veio um pensamento agora: muita gente está tentando fazer das profissões Youtuber, Tiktoker, Influencer do Instagram, Podcaster de Spotify e até mesmo modelo de OnlyFans (em geral mulheres) uma fonte permanente de renda. Mas até onde me consta a esmagadora maioria dos conteúdos nessas plataformas são extremamente fúteis: vídeos curtos e pseudo-engraçados no TikTok e no Instagram, vlogs onde o sujeito só fala besteira no Youtube, enfim – vocês entenderam o que quis dizer. A meu ver os conteúdos realmente interessantes (por exemplo, podcasts sobre História, críticas de filmes e de músicas no Youtube etc), e que realmente agregam algo ao ser humano (inclusivamente a mim), são feitos por pessoas que felizmente tiveram acesso a uma educação de maior qualidade – ou seja, trabalhadores mais qualificados. Mas nesse caso, o que importa é a quantidade de visualizações e de likes que se recebe, e nesse sentido não é difícil imaginar que a produção de conteúdos fúteis talvez (não sei, estou especulando) leve a um maior sucesso (e, portanto, a uma renda maior).

    O que pensam?

    Abraços do
    Antonio

  9. STERBENSWORTE DON QUIXOTES (Erich Fried – Liebesgedichte)

    Wer die furchtbaren
    Windmühlenflügel
    vor Augen hat
    den
    reiBt sein Herz
    und sein Kopf
    und seine Lanze
    mit
    in den Kampf
    gegen den Riesen

    Doch wer die Windmühlenflügel
    nach dem Gelächter
    des Gelichters
    noch immer im Auge
    und den Riesen
    noch immer
    im Kopf hat
    dem
    geht die Lanze
    ins Herz

  10. Epitáfio de Don Quixote (tradução livre de um poema de Erich Fried)

    Qualquer um que veja
    com olhos encharcados
    as terríveis lâminas
    do moinho de vento
    inclinará
    seu coração,
    sua cabeça
    e
    sua lança
    para a luta
    contra o gigante

    Mas quem
    com riso tocar
    as pás
    do moinho de vento
    e ainda com olhos sorridentes
    estiver diante
    de um gigante,
    verá
    uma lança
    atravessando-lhe
    o coração

  11. As intervenções do Ulisses são sempre fascinantes e muito, mas muito mesmo, inteligentes…lindas, e sempre muito sabidas, uma emoção…
    E essa poesia em alemão…Waal!!
    O Ulisses, como se diz na minha terra é um monstro!

  12. O comentário de Fascinado me lembrou de outro texto de João Bernardo, publicado aqui: https://passapalavra.info/2020/07/132883/

    Uma das facetas mais irritantes do politicamente correto atualmente imposto pelo identitarismo é a faceta antiintelectualista. Ai de quem cite algo em outra língua, será rapidamente acusado de pedante ou algo assim. ulisses é um “monstro” (um cara muito capacitado) sim, o que fica evidente pela capacidade síntese que ele demonstra nos comentários. O fato de alguns comentários serem inacessíveis só prova nossa miséria intelectual, nossa carência de referenciais. No caso de agora, ulisses citou uma poesia que não possui versão para o português. Ele deveria ter traduzido a poesia se quisesse citá-la? O politicamente correto identitário é além de fascista, preguiçoso e arrogante, pois considera uma ofensa se alguém diz algo que ele não compreende. O nivelamento intelectual para baixo e pretensamente proletário não tem nada de revolucionário, pelo contrário, é reacionário.

  13. Fascinado e Pablo estão a lutar contra moinhos de vento, porque ninguém criticou a poesia em alemão postada por Ulisses. Achei graça.

  14. Pablo, sua tradução de alguns trechos do jogo da Amarelinha aqui neste site é maravilhosa. Sempre volto a esses dois textos. E me emociono sempre.

    Obrigado, Ulisses e Pablo.

  15. A arrogância ou o irracionalismo… É isso que se está oferecendo às “massas”?! Àquela meia dúzia de 3 ou 4 que nos lê?! Há que se diferenciar entre o “incompreensível” e o irrelevante para as massas. Pobre Maiakóvski…

  16. Pablo não traduz, apenas(!) transcria.
    E o faz bricolando técnicas (gingas & mandingas) semânticas dos hermanos Campos e Marx – Haroldo e Groucho, respectivamente [y] por supuesto…
    JB, nosso maestro soberano da anamnese peregrina – além de conspícuo historiador (sedizente pedestre!) e sua generosidade transatlântica.

  17. O Pablo não me fascina em nada. Em mensagem acima lembrou-me aqueles badecos de pequenos grupúsculos, seitas, sempre prontos para a imediata defesa ortodoxa da heterodoxia do dia. Um deserto…
    E continuo fascinado com o Ulisses, apenas ele sabe traduzir em frases de escatológica erudição (que poucos entendem, é bem verdade, ainda que haja gente por aqui bastante esforçada para o entender, mesmo quando está a dizer nada com nada) o que o João Bernardo sempre nos diz com a radical e serena objetividade de um verdadeiro intelectual.
    Aqui, junto com o Ulisses e a sua gloriosa erudição, e também com alguns funcionários da ortodoxia “libertária” (uma tristeza), somos todos leitores do João Bernardo, apenas isso.

  18. Fascinado está fascinado com a en verga dura de Ulisses. Queda boqueaberto diante de um grande membro da intelligentsia passapalavreana. Como cantam os sábios cá em Portugal:

    Eram os sete matuloēs
    Tchururu, tchururu
    Com bigodes nos colhões
    Tchururu, tchururu
    Já dizia o velho Herodes
    Tchururu, tchururu
    Ou te calas ou te fodes.

    Amanhã envio cá a tradução deste clássico da Roma antiga, pois todos temos o direito aos nossos cinco minutos de infâmia.

  19. A sina do Fá
    é ser fã
    se não Dó badeco,
    Dó boteco:
    Quero meu chopp em linha reta, em serena objetividade!
    Fá desconhece que não é só o amor drummondiano que desenha uma curva, propondo uma geometria
    Também Ulisses
    Também o seu Zé
    Para nossa alegria
    E temendo o perigo,
    Fá dá Ré
    Réréré
    Se candidatando a badeco (decerto)
    de um que seja imenso (desde que o entenda, por Diós!)
    E esconde a face do Sol
    Sollitário
    falsinado
    farsesco
    e
    enfadado
    Crente que Lá classe não tem
    Nunca teve
    Não pode vir a ter
    Oh céus, não pode ser que tenha!
    Capacidade para entender uma curva
    Um samba
    Ou um poema
    E assim Fá Si Com Sol Lá
    Lá Lá Lá
    (ou aqui): Lá Didática, hermanos! Lá Didática!
    Onde fala pelos ombros
    Profere julgamentos
    e Si ri
    e Si ri
    e Si ri
    Aiaiai
    Mi
    Mi
    Mi
    hora de quiança
    ir Mi Mi
    A sina do fá
    é de dar Dó
    A sina do Fá
    Cocóricó

  20. Genteeeee, vo6 são d+!!!!!! Amo vo6 genteeeee!!! Vo6 animam as minha manhãs de sábado e minhas tardes de domingooo!!!! Vo6 são muito iruditoooossss!!!! Adoroooo esse blogui genteeeee!!!!

  21. https://www.facebook.com/ilove.80s.br/videos/e-a%C3%AD-pablo-qual-%C3%A9-a-m%C3%BAsica-quando-silvio-santos-dizia-essa-frase-a-gente-j%C3%A1-sabi/1066016653892123/

    Maoeeeeeeeeeeeeeeêêê!!! Pablo, qualé a músicamm?!

    Lá vem o Pato
    Pata aqui, pata acolá
    Lá vem o Pato
    Para ver o que é que há

    Lá vem o Pato
    Pata aqui, pata acolá
    Lá vem o Pato
    Para ver o que é que há

    O pato pateta
    Pintou o caneco
    Surrou a galinha
    Bateu no marreco

    Pulou do poleiro
    No pé do cavalo
    Levou um coice
    Criou um galo

    Comeu um pedaço
    De jenipapo
    Ficou engasgado
    Com dor no papo

    Caiu no poço
    Quebrou a tigela
    Tantas fez o moço
    Que foi pra panela

    Caiu no poço
    Quebrou a tigela
    Tantas fez o moço
    Que foi pra panela

    Lá vem o Pato
    Pata aqui, pata acolá
    Lá vem o Pato
    Para ver o que é que há

    Lá vem o Pato
    Pata aqui, pata acolá
    Lá vem o Pato
    Para ver o que é que há

    O pato pateta
    Pintou o caneco
    Surrou a galinha
    Bateu no marreco

    Pulou do poleiro
    No pé do cavalo
    Levou um coice
    Criou um galo

    Comeu um pedaço
    De jenipapo
    Ficou engasgado
    Com dor no papo

    Caiu no poço
    Quebrou a tigela
    Tantas fez o moço
    Que foi pra panela

    Caiu no poço
    Quebrou a tigela
    Tantas fez o moço
    Que foi pra panela

    Maoeeeeeeeeeeeeeeêêê!!! Pedro de Lara lá, laiá laiááá!!

  22. Fui no Itararé
    Buscar classe, não achei
    Só achei Pablo e Ulisses
    A falar não sei o quê.

    De onde menos se espera, é daí que não sai classe mesmo…

  23. Um pensador quilombola conservador visto como progressista. Em um de seus ensaios encontra-se:
    “A nossa relação com as imagens de mundo dá-se na lógica da emancipação dos povos e das comunidades tradicionais através da contracolonização. Não é através da luta de classes, pois a luta de classes é europeia e cristã- monoteísta. Não trato povos e comunidades tradicionais como categorias marxistas: como trabalhadores, desempregados ou revolucionários. Essa linguagem não é nossa. Essa linguagem é euro-cristã-colonialista. Alguns pensadores do Piauí escreveram muito bem sobre os quilombos, mas usaram a perspectiva do marxismo e isto me incomodou. Penso na nossa caminhada desde dentro do navio negreiro. Saiu o primeiro navio negreiro, eis o primeiro quilombo. O primeiro aquilombamento foi ali dentro, com as pessoas reagindo, jogando-se dentro do mar, batendo e morrendo. Aí começou o quilombo. E Marx nem existia naquele tempo! O que Marx tem a ver com isso? O que Marx disse, Palmares já tinha feito 200 anos antes. Acho que Marx tem o seu papel lá na Europa. Como dizemos lá no sertão, “cada quem no seu cada qual”.”

    O que dizer?

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