Por Manolo
Li o artigo Respostas? Perguntas. 2, e percebi a lástima em que os comentários se transformaram. Tudo porque alguns comentaristas, presos a certas definições conceituais idiossincráticas ao marxismo, novamente vão criando confusão porque não concebem outras produções conceituais que não aquelas do próprio marxismo.
Fazendo dos comentários do Passa Palavra a antessala do Twitter, certos comentadores dedicam-se a rebater argumentos que mal leram, que não tiveram tempo de “digerir”, sobre os quais mal refletiram, e contra os quais sentem inexplicável ímpeto de atacar naquele mesmo instante, como se de seu imediato e fulminante contra-ataque dependessem os rumos da revolução proletária internacional.
Desta vez, a falsa polêmica orbitou em torno de um aspecto realmente importante do artigo, que foi deixado de lado em nome do debate vazio: a relação entre técnicas, tecnologias, regimes econômicos e modos de produção. Há quem tenha apontado contradições que não existem; há quem tenha se preocupado mais em ataques ad personam que a debater argumentos; enfim, tiro, porrada e bomba para todos os lados.
Melhor seria se deixassem tal comportamento lá no Twitter, de onde não deveria ter saído; mas o tretismo é o zeitgeist, é o “espírito”, a “essência”, a “alma” destes nossos tempos, então lá estão eles, porque é inevitável que lá estejam. Talvez, claro, eu exagere, porque na história do movimento socialista existem polêmicas piores; mas — vamos combinar — não é bem assim que tornaremos prática a máxima “paz entre nós, guerra aos senhores”.
Para tentar levar o debate de volta ao lugar para onde talvez pudesse ter ido, comecei, por conta própria, uma pesquisa sobre técnicas, tecnologias, regimes econômicos e modos de produção. Meu objetivo é retomar o assunto de um artigo meu de 2017; incorporar ao debate preocupações mais recentes, apresentadas pela primeira vez num comentário a um bom artigo de Grevo de Vergere; e trazer mais elementos que permitam fazer o saudável percurso prática-teoria-prática.
Este não é, por assim dizer, um ensaio completo, mas um fragmento teórico do que virá a ser um ensaio mais amplo. Ainda não concluí a parte prática deste ensaio, mas resolvi compartilhar com o público a parte teórica, mesmo precária e inacabada. Talvez isto possa enriquecê-la.
A roda e a técnica
Comecemos pela invenção da roda, uma das seis mais simples máquinas inventadas pela humanidade (as outras cinco são a alavanca, a rosca, a polia, o plano inclinado e a cunha). Não é por acaso que começo por ela, mas a escolha só ficará evidente muito mais à frente, em partes ainda inacabadas deste ensaio.
Uma roda é produto de alguma uma téchnē (τέχνη): uma técnica, uma arte (no mesmo sentido de “artes e ofícios”), uma destreza manual, um modo de fazer. Quem emprega a técnica é o technítēs (τεχνίτης): o artífice, o artesão, o técnico. Seu produto é um technēma (τεχνημα) ou technasma (τέχνασμα): um objeto técnico, um produto da técnica, um tecnema. Technikós (τεχνικός), aliás, significa “aquilo que é feito com uma arte”, “artístico”, “aquilo que é regrado por uma arte”, com “arte” sempre no mesmo sentido já mencionado das “artes e ofícios” [1].
Como é óbvio, uma roda não é um objeto natural. Rodas, até onde sei, não caem do céu, nem brotam da terra. Não se colhe rodas do pé, não se arranca rodas pela raiz, não se cata rodas no chão, não se caça rodas, não se pesca rodas.
A produção de uma roda exige imaginação e manipulação humanas. Imaginação, para conceber o objeto a produzir; manipulação, para alterar a natureza de um estado ao outro, até alcançar a forma final do objeto imaginado.
A produção de uma roda exige também memorização e registro das muitas tentativas e erros até chegar à forma da roda. Um indivíduo pode portar a memória dos erros, mas também uma coletividade pode portá-la, transmitindo a outros o que antes não deu certo. Nos dois casos, a memória pode ser objetivada por registros orais, simbólicos, pictóricos, escritos, míticos, lendários, etc.
Vê-se, portanto, como a comunicação das técnicas de produção de uma roda pressupõem linguagem (para comunicar), sociedade (para que haja entre quem comunicar), cultura (para que os signos e símbolos comunicados façam sentido) e algum nível de divisão social do trabalho (para que uma técnica se possa realmente especializar). A ordem de aparecimento destes fatores não importa, apenas sua existência.
Tanto é técnica a invenção da roda que houve sociedades muito complexas, com divisão social do trabalho bastante avançada, instituídas e reproduzidas por séculos sem recurso à roda; mas não há sociedade, independentemente da complexidade de sua divisão social do trabalho, em que alguém sobreviva sem comer absolutamente nada por mais de uma ou duas semanas, ou sem beber água alguma por três ou quatro dias.
Sendo objeto técnico, uma roda só pode ser usada em meio a outros objetos técnicos. Vejamos a roda de oleiro simples, girada à mão. Ela cria um momento angular capaz de facilitar o trabalho de moldagem dos rolos e de acabamento das peças. Numa versão posterior, a roda de oleiro foi posta a interagir com um eixo (outro tecnema), que permite girar a roda em maior velocidade e conservar por mais tempo o momento angular. Em outra versão posterior, hoje mais conhecida, a este conjunto eixo-roda foi incluída uma segunda roda, na outra ponta do eixo, para que o oleiro possa girar o conjunto com um pé e, com as duas mãos liberadas, tenha maior controle e liberdade para imprimir sua técnica ao objeto moldado a partir do barro que gira sobre a segunda roda.
Uma roda, portanto, é um tecnema, que para ser produzido numa forma determinada demanda uma determinada técnica. Para cada tipo de roda, há variações técnicas em torno da técnica original de sua produção. Para cada uso de cada tipo diferente de roda, há também outras variações técnicas. A roda inteiriça é diferente da roda com raios; a roda lisa é diferente da roda dentada (ou engrenagem); a roda de carroça é diferente da roda d’água; a roda de um carro é diferente de um leme de navio; a roda de fiar, ou roca, é diferente do volante; um volante, aliás, é diferente de um volante de inércia; e por aí vai.
Em torno da roda, ou a partir dela, foram criados a polia, o molinete, a engrenagem, os mecanismos de escapamento, etc.; em torno do conjunto formado pela roda e eixo, foram criados a carroça, o guincho, a roda d’água, a turbina, etc.
É evidente, portanto, que um tecnema é criado e funciona somente em meio a outros tecnemas. Não há tecnema sem técnica, e não há técnica sem uma sociedade que lhe corresponda. É aí que surge a technología (τεχνολογία).
Para situar a distinção entre técnica e tecnologia em seu contexto histórico, vamos deixar a roda de canto (voltaremos a ela muito mais à frente), pois a palavra tecnologia passou por várias mudanças de sentido ao longo dos séculos até adquirir o sentido pelo qual é hoje mais conhecida — mudanças de sentido que expressam importantes mudanças sociais. Antes de seguir debatendo mudança tecnológica, precisaremos percorrer tais mudanças, tal como o fizeram historiadores, antropólogos, linguistas e teóricos da tecnologia [2].
Da técnica à tecnologia
Até o Renascimento, tecnologia significava algo como um “tratamento sistemático” de determinado assunto — pois a palavra téchnē (τέχνη) era também usada desde a Grécia antiga para significar “retórica”, em especial no sentido de “artifício”, “astúcia”, “intriga” e “maquinação”, sentido com que a palavra foi recebida pela patrística e pela escolástica na Europa medieval. Technología (Τεχνολογία), portanto, era o tratamento sistemático de um assunto por meio de argumentação filosófica. Diga-se de passagem que esta definição de tecnologia aproxima-se muito do que, do Renascimento até o Iluminismo pelo menos, se entendia como método científico; a aplicação de tecnologia a um assunto — ou seja, seu tratamento sistemático por meio de argumentação filosófica — era um caminho para se chegar a um conhecimento validado como verdadeiro, como capaz de produzir certeza, qualquer que fosse o critério da verdade adotado. Tecnologia e ciência, portanto, caminham juntas há mais tempo do que se imagina, por caminhos talvez sequer imaginados.
No começo do século XIX, a palavra téchnē (τέχνη) voltou a ser usada no sentido de “destreza manual”, “habilidade”, “modo de fazer”: vêm daí Technik (alemão) e technique (francês), por exemplo, que se referiam a técnicas tão díspares quanto a dança ou a navegação. Technología (Τεχνολογία) e suas variantes em cada idioma passaram a significar algo como “a exposição das regras de uma arte”, “tratado ou dissertação sobre uma arte”, sempre se referindo a algum estudo sistemático — pois logía (λογία) significa, entre outras coisas, estudo — de uma técnica, de uma arte, de um ofício, de um modo de fazer certa coisa.
A passagem de um significado ao outro tem história interessante, de grande importância para entender o que pretendemos discutir ao final do conjunto de pesquisas do qual este ensaio é só uma parte inicial e rudimentar: a passagem de técnicas e tecnemas de um sistema tecnológico (e de um modo de produção) para outro. Como o assunto pede muitas digressões históricas, além da habitual indicação de fontes, daqui para a frente o ensaio virá recheado de ligações para artigos externos que exporão de modo didático certos aspectos teóricos e históricos sobre os quais não pretendo avançar muito.
Notas
[1] MALHADAS, Daisi; DEZOTTI, Maria Celeste Consolin; NEVES, Maria Helena de Moura. Dicionário grego-português. 2ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial/Mnema, 2022. Todas as referências a vocábulos gregos têm este dicionário como fonte.
[2] A literatura sobre a distinção entre técnica e tecnologia, assim como sobre as mudanças de significado da palavra tecnologia ao longo do tempo, é vasta. A este respeito, cf., p. ex., MORÈRE, Jean-Édouard. Les vicissitudes du sens de “technologie” au début du XIXe siècle. Thalès, vol. 12, 1966, pp. 73-84. Disponível na internet: <https://sci-hub.se/https://www.jstor.org/stable/43861359>. Acesso em 21 maio 2023.; SALOMON, Jean-Jacques. What is technology? The issue of its origins and definitions. History and technology: an international journal, vol. 1, nº 2, 1984, pp. 113-156. Disponível na internet: <https://sci-hub.se/https://doi.org/10.1080/07341518408581618>. Acesso em 21 maio 2023; SCHATZBERG, Eric. “Technik” comes to America: changing meanings of “technology” before 1930. Technology and Culture, vol. 47, nº 3, jul. 2006, pp. 486-512. Disponível na internet: <https://sci-hub.se/https://www.jstor.org/stable/40061169>. Acesso em 21 maio 2023. A inspiração para “rastrear” as pegadas linguísticas das mudanças históricas, o que vem sendo feito desde o início deste ensaio e será feito numerosas outras vezes, veio do monumental Le vocabulaire des institutions indo-européennes de Émile Benveniste.
Este ensaio é composto por três partes. Pode ler aqui a segunda parte e a terceira parte.
As obras que ilustram este artigo são de Lygia Clark (1920-1988)
-> “a passagem de técnicas e tecnemas de um sistema tecnológico (e de um modo de produção) para outro.”
Técnica, tecnologia, autogestão e revolução são as grandes questões da Esquerda para a atual crise do Capitalismo, mesmo a maior parte dela ignorando esta pauta.
Não se trata tampouco de um debate teórico, muito pelo contrário.
Um exemplo disto é o artigo (republicado recentemente pelo PassaPalavra): “Bicicletas de carga em vez de peças de automóveis”.
Os trabalhadores ocupam a fábrica, tomam o meio de produção. Então? O que fazer?
Aquele meio de produção – como os demais e também a tecnologia neles incorporada – precisa estar integrado numa cadeia produtiva, a qual o ultrapassa e lhe dá uso e sentido econômico.
Seria possível se apropriar das técnicas do modo de produção capitalista, a elas dando um outro uso e sentido?
Ou, assim como no bojo das lutas emancipatórias já é necessário gerar um outro tipo de relações sociais, um novo modo de produção exige, por conseguinte, a criação de outras técnicas?
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《Qualquer tentativa de promover a autogestão plena num sistema de produção em que as pessoas envolvidas não dominem minimamente as técnicas envolvidas na produção resulta na continuidade do papel do gestor. 》
O domínio da técnica inclui, necessariamente, a capacidade de alterá-la (e até descartá-la) conforme os próprios interesses econômicos e objetivos políticos.