Promover o desenvolvimento econômico, sob o capitalismo, é promover a crise — e ela costuma cobrar caro por isto. Por Manolo
O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – desenvolvendo as empresas transnacionais de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil foi tão engajado – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade – e é o que queremos investigar com esta série de artigos – nunca antes o Brasil foi tão imperialista.
Leia aqui as demais partes do ensaio: [1] – [2] – [3] – [4] – [5] – [6] – [7] – [8] – [9] – [10]
Antes de retomar o fio da meada de onde o deixamos, é preciso estabelecer algumas questões, centrais para o que trataremos daqui em diante. A crise de hegemonia deflagradora da Segunda Guerra Mundial, como vimos, resultou das lutas constituintes de três blocos político-econômicos: o bloco soviético, a partir da Revolução Russa, cuja amplitude geográfica não ultrapassara os limites do antigo Império Russo antes do final da Segunda Guerra; o bloco fascista, capitaneado pela Itália e pela Alemanha; e o bloco keynes-rooseveltiano, liderado pela Inglaterra e pelos EUA. Há quem discuta, por exemplo, se o regime correspondente ao primeiro período de Getúlio Vargas no poder foi nacionalista, fascista ou bonapartista. É preciso distinguir neste período três etapas, correspondentes ao governo provisório (1930-1934), ao governo constitucional (1934-1937) e ao Estado Novo (1937-1945). Enquanto o governo provisório foi uma ditadura que se pretendia a princípio provisória, mas que constitucionalizou-se na medida das derrotas e concessões que seus opositores lhes impunham – afinal, como dito na parte 3 deste ensaio, tomar os aparelhos de Estado apenas está longe de significar a conquistas das bases econômicas e sociais do poder, dominadas pelos oligarcas agrários derrotados em 1930 – o Estado Novo, construído sobre as bases institucionais criadas entre 1930 e 1937, foi um verdadeiro Estado fascista. Basta ver diversas características do período: uso intensivo da propaganda, mobilização de massas em eventos espetaculares, organização corporativista da economia (ou um grande ensaio geral neste sentido), submissão dos sindicatos ao Estado, repressão violenta e assassina às organizações e militantes de esquerda, instituição dos órgãos de Estado necessários a um planejamento econômico mais cerrado…
Além disto, no seio do Estado Novo conviveram duas tendências. A mais potente em termos políticos contou entre suas fileiras com Filinto Müller (Chefe de Polícia do Distrito Federal entre 1933 e 1942, presidente do Conselho Nacional do Trabalho entre 1943 e 1945), Góis Monteiro (Chefe do Estado-Maior do Exército entre 1937 e 1943), Eurico Dutra (Ministro da Guerra entre 1937 e 1945) e Francisco Campos (Ministro da Justiça e Negócios Interiores entre 1937 e 1942), favoráveis à aliança com o bloco fascista mundial; do outro lado, sem contestar o regime, estão aqueles liderados por Osvaldo Aranha (Ministro das Relações Exteriores entre 1938 e 1944) que desejam manter canais privilegiados com os EUA e a Inglaterra. A função de Getúlio Vargas – ele próprio um filo-fascista, para dizer o mínimo – foi a de mediar entre estas duas linhas. Estas duas tendências foram a contrapartida política de fatos econômicos: desde 1926 a Alemanha se tornara o segundo maior destino das exportações brasileiras – superando a Grã-Bretanha, embora ainda muito longe dos volumes de exportações destinadas aos EUA – e entre 1936 e 1938 as importações brasileiras oriundas da Alemanha ultrapassaram as britânicas e as estadunidenses. Em julho de 1942, entretanto, a conjuntura política desfavorável, no interior e no exterior do país, levou Vargas a afastar-se da ala fascista através da demissão de ministros como Francisco Campos e Filinto Muller. Venceu o grupo de Oswaldo Aranha, e consequentemente o Brasil permaneceu como um estranho fascista no bloco keynes-rooseveltiano – discrepância que cobraria seu preço ao final da guerra: a deposição de Getúlio Vargas em 1945 resulta não apenas da massiva insatisfação com o regime, mas também do fato de o estado corporativo que se pretendia instaurar no Brasil não corresponder às instituições necessárias para a acumulação capitalista neste bloco.
É no polvoroso quadro político do pós-Segunda Guerra, já visto na parte anterior deste ensaio, que se dá a política violentamente repressiva do governo de Eurico Gaspar Dutra. A nova remodelação institucional se dá nos quadros da permanência dos órgãos de repressão política – em especial contra os trabalhadores – e atrelamento dos sindicatos ao Estado estranhamente misturados a instituições típicas do “liberalismo” keynes-rooseveltiano. Mas isto não foi à-toa, e sim dentro de um quadro mais amplo de reconfiguração política e ideológica global. Como se veria nas décadas de 1950 e 1960, o fim do colonialismo, o desenvolvimento nas antigas colônias e semi-colônias de um capitalismo autóctone, aconteceu porque as forças políticas que lutaram por tais pautas operaram, no nível político, uma fusão entre elementos de fascismo, de leninismo e de New Deal, antes mesmo de realizar tal fusão no nível econômico; no Brasil, a fusão entre elementos fascistas de enquadramento dos trabalhadores e elementos capitalistas de Estado de enquadramento do setor empresarial responde às necessidades da acumulação capitalista da época, como se verá.
Apesar de a Constituição de 1946 garantir o direito à greve, o Decreto 9.070, de 15 de março de 1946, impôs tantas condições a seu exercício que o impediu na prática. Ademais, logo em 1947, com o recrudescimento internacional da Guerra Fria, como todas as entidades sindicais ligadas à Confederação dos Trabalhadores Brasileiros foram fechadas pelo Decreto 23.046, de maio de 1947, e houve intervenção em 143 sindicatos (de um total de 944 no país). Ainda em maio de 1947, o Partido Comunista do Brasil (PCB) foi lançado novamente à clandestinidade e todos os mandatos de seus parlamentares foram cassados; o Supremo Tribunal Federal confirmaria a ilegalização do partido em 1948. Somando-se a isto o congelamento do salário mínimo – mantido no mesmo patamar desde 1943 – e tem-se no conjunto uma repressão pesada aos trabalhadores, construída em função do cumprimento dos acordos de Bretton Woods. Tamanha repressão responde não apenas às exigências da política internacional, mas também ao recrudescimento da luta de classes no país: de 1948 a 1950 entre 200 mil a 250 mil trabalhadores participaram, por ano, de movimentos grevistas que, nas condições do Decreto 9.070, eram prontamente lançados à ilegalidade e tratados pela polícia a tiro e bomba[1]. Sem levar em conta sua “legalidade” ou “ilegalidade”, grande parte das greves até o início da década de 1950 eram ditas “selvagens”, iniciadas pelas “comissões de fábrica”, sem participação dos dirigentes sindicais[2]. Tamanha repressão era a contrapartida ao Plano SALTE (Saúde, Alimentação, Transporte e Energia), que reuniu algumas principais realizações do governo Dutra: a construção da Rio-Bahia e da BR-2 (futura Gaspar Dutra), do Hospital dos Servidores do Estado (RJ) e o início das obras da usina hidrelétrica Paulo Afonso I (BA); o restante do plano, entretanto, ficou nas intenções, pois a economia brasileira enfrentou sérios problemas de escassez de dólares e crise cambial.
Dutra, mesmo tendo sido Ministro da Guerra de Getúlio Vargas, seguiu políticas frontalmente contrárias às de seu antecessor no campo da economia. É em cima da retração da economia e do pesado arrocho imposto aos trabalhadores que Vargas construirá seu retorno ao poder, consumado em 1950. No início do segundo governo Vargas houve certo predomínio da busca da estabilidade econômica e política; logo depois, numa segunda fase, foi comum a existência ora simultânea, ora alternada de políticas de contração e expansão da demanda; passado este momento, nos últimos meses de governo, o combate à inflação foi abandonado enquanto meta, em favor de políticas de expansão da demanda[3]. Curiosamente, entretanto, Vargas não aumentou o salário mínimo ao ser eleito, mantendo-o no mesmo nível de 1943[4]; durante todo seu governo foram relativamente limitados os benefícios em termos de aumento do salário real dos trabalhadores[5]. Daí a onda de greves em seu governo: entre 1951 a 1954 o número de trabalhadores em greve aumentou de 360 mil para 1 milhão e 600 mil por ano[6]; o número de horas perdidas em consequência de greves aumentou de 23 milhões em 1952 para 100 milhões em 1953 – indicando não apenas um aumento no número de grevistas, mas um aumento na duração das greves[7]. O que suicidou Vargas não foi apenas a pressão dos adversários da UDN, mas o recrudescimento dos conflitos sociais inerentes ao projeto nacional-desenvolvimentista que pretendia encarnar.
E um dos principais problemas que burguesia e gestores precisavam enfrentar era o do financiamento do desenvolvimento. Até aqui, toda a política de desenvolvimento das indústrias de base se fizera com base em empréstimos externos e financiamento estatal; concorreu para isto o chamado “confisco cambial”, ou seja, a taxação de produtos de exportação – principalmente o café – para posterior reversão dos fundos assim obtidos para a implementação das indústrias de base. A política brasileira de apoio aos preços do café, tradicional desde a República Velha e revigorada desde 1952 com base nas altas de preços iniciadas em 1949, gerou uma reação extremamente negativa na bolsa de Nova Iorque, na forma de um boicote ao café brasileiro. Malgrado sua importância enquanto instituição de planejamento econômico, a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) como um banco de investimento industrial em 1952 não fora suficiente para alavancar o capitalismo brasileiro. Isto, somado à crise econômica já existente, levou a uma crise no processo de acumulação capitalista brasileiro, dependente ao extremo do chamado “confisco cambial”, mediante o qual excedentes do setor agropecuário – em especial do café – eram transferidos pelo Estado para setores estratégicos do desenvolvimento econômico, nomeadamente a indústria. Grande parte do governo-tampão sucessivamente ocupado por Café Filho, Carlos Luz e Nereu Ramos (1954-1956) foi dedicado a encontrar solução para este entrave. A Instrução 113 da Superintendência da Moeda e Crédito (SUMOC), de 17 de janeiro de 1955, ao permitir investimentos estrangeiros diretos sem cobertura cambial, abriu aos investidores estrangeiros as portas para a importação de maquinário industrial, segundo uma classificação dada pelo próprio governo.
É sob o governo de Juscelino Kubitschek, sucessor de Vargas, que tais investimentos externos diretos aumentariam até serem transformados na base de setores inteiros da indústria. 73% destes investimentos concentraram-se no período entre 1957 e 1960, e o restante distribuiu-se no tempo até 1963. Destes investimentos, 43,5% vinham dos EUA, 18,69% da Alemanha e 7,27% da Suíça, sendo o restante distribuído entre Inglaterra (4,81%), Japão (3,26%), França (3,1%), Canadá (2,9%), Itália (2,25%) e Suécia (1,99%). 97,69% dos investimentos externos diretos foram para a indústria de transformação, conforme direcionamento dado pelo próprio Plano de Metas do governo JK; desconsiderados setores que não faziam parte do Plano de Metas, 93,6% do total de equipamentos estrangeiros entrados no Brasil entre 1955 e 1959 foi para o setor de indústrias de base, cujos subsetores mais beneficiados foram os de fabricação e montagem de veículos automotores, reboques e carrocerias (38,1%), de fabricação de produtos químicos (11,69%) e de fabricação de máquinas e equipamentos (11,24%). Um dos critérios para a escolha dentro do Plano de Metas do setor onde o capital público e privado deveria investir era a demanda derivada que gerava, ou seja, a expansão de alguns setores aumentava a demanda em outros; assim, a meta da indústria mecânica e de material elétrico pesado foi programada a partir da demanda derivada dos setores das indústrias de base e do setor de energia; a meta da indústria automobilística direcionou a programação de autopeças, de metais não ferrosos e de borracha; a de mecanização da agricultura levou à fabricação de tratores; a da marinha mercante à indústria de construção naval, e a de cimento, um impacto no Plano de Metas como um todo[8]. Tratava-se, portanto, de ampliar e consolidar as condições gerais de produção no Brasil.
Tamanho investimento não se poderia fazer sem a correspondente mão-de-obra. Uma questão importante aparece, relativa à composição da classe trabalhadora brasileira deste período. No início da industrialização, no começo do século XX, os trabalhadores, em sua maioria migrantes com experiência profissional e política, exerciam atividades semi-artesanais (padeiros, alfaiates, carroceiros, pedreiros, pintores etc.). Os novos modelos de industrialização instaurados a partir da década de 1930 levaram os operários têxteis, gráficos, ferroviários e da indústria de alimentação a tornarem-se a face mais visível da classe trabalhadora; integrados em linhas de produção mais complexas, expropriados de diversos saberes profissionais e com menor experiência política que a geração de profissionais da fase anterior da industrialização, foi para eles que as políticas de concessão de direitos trabalhistas e sociais se voltou. Foram eles a base de sustentação do primeiro período do varguismo. No momento sob análise, entretanto, além de nova modificação na base produtiva brasileira aprofundar a implantação da siderurgia e da petroquímica, ampliaram-se as vagas de trabalho nas cidades; esta ampliação, entretanto, não foi suficiente para atender aos migrantes que afluíam desde o campo em busca de melhores condições de vida – não custa lembrar que trabalhadores urbanos e rurais não eram equiparados em direitos, e que o sindicalismo rural surge apenas no começo da década de 1960 – e em franca rejeição das condições de trabalho no campo. Um dos resultados deste conjunto de fatores foi fazer do movimento sindical a pura representação de uma camada de trabalhadores urbanos qualificados, em detrimento daqueles que, recém-chegados do interior e imbuídos dos modos e ritmos de vida característicos das regiões de economia agrária, expressavam o desajuste com sua nova condição através de revoltas individuais, rejeição da autoridade e da disciplina de fábrica, frouxa fixação ao trabalho industrial e na dificuldade de aceitar a “condição operária”[9].
Estes foram os beneficiários das ações “sociais” de JK, como a Lei 3.807/60 (Lei Orgânica da Previdência Social). Estas ações “sociais” tenderam a fazer crescer o peso dos dirigentes sindicais nas decisões, e as perdas dos trabalhadores com a inflação, se não eram compensadas, eram bem atenuadas com os reajustes concedidos[10]. Quando conjugadas com a mais ampla liberdade de imprensa, tais ações estabeleceram, conscientemente ou não, uma dupla política de legitimação do governo JK: as ações sociais chamavam para o governo o apoio do povo, enquanto a liberdade de imprensa dava espaço para as críticas ferrenhas e semi-golpistas da União Democrática Nacional (UDN), cujo conservadorismo bizarro exposto a público a bem do ridículo ajudava a mascarar os problemas internos ao próprio governo JK. Como pensar, por exemplo, que um governo que favoreceu como nunca os investimentos externos diretos no Brasil, em especial na indústria automobilística, passe como nacionalista, não fora pela estigmatização da própria UDN como entreguista[11]?
Ocorre que, além de deixar como herança uma inflação crescente e diversas dificuldades financeiras, JK legou a seu sucessor o acirramento das contradições do desenvolvimento econômico, levando a uma polarização das propostas políticas – cenário que abre pouco espaço para “conciliadores” ou “malabaristas”. Vem daí as tentativas de golpe em Jacareanga (janeiro/fevereiro de 1956) e Aragarças (dezembro de 1959), ambas debeladas. Ironicamente, a sucessão de JK foi decidida não em favor de um candidato com programa político ou econômico claro, mas em favor de um homem cujo discurso único era o do combate à corrupção: Jânio Quadros, funâmbulo-mestre do nacionalismo conservador, eleito presidente em 1961 com apoio de uma dissidência do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) (o PTN organizado por Hugo Borghi), de uma dissidência da UDN (o PR criado por Artur Bernardes), de um partido gaúcho (o PL de Raul Pilla) e da própria UDN. Era impossível para qualquer governo naquele momento conciliar a política econômica ortodoxa de um udenista como Clemente Mariani, nomeado Ministro da Fazenda para aplicar a política de estabilização econômica imposta pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) como consequência da moratória decretada em 1959, com a “política externa independente” de Afonso Arinos e de San Tiago Dantas sucessivamente lotados no Ministério das Relações Exteriores; não se tratava do choque entre as práticas interna e externa, mas também da impossibilidade de realização de qualquer das duas políticas na conjuntura de industrialização acelerada, no plano interno, e de “terceiro-mundização” da Guerra Fria, no plano externo[12].
Com tudo isto, a produção industrial brasileira entre 1940 e 1961 quase que sextuplicou, e cresceu em velocidade maior que o dobro do crescimento econômico mundial no mesmo período[13]. Os salários dos trabalhadores industriais, após um crescimento lento e irregular durante a maior parte da década de 1950, apresentaram elevação nos primeiros anos da década de 1960 – fato notável diante da inflação e da desaceleração da economia na época[14]. Os gestores ligados à burocracia da Previdência Social e do Ministério do Trabalho cresciam a olhos vistos, a julgar pelo censo de servidores públicos de 1966: dos 700.013 servidores civis federais então registrados, 121.328 (ou seja, 17,33%) estavam na esfera do Ministério do Trabalho e 95.619 (ou seja, 13,65%) trabalhavam na burocracia da Previdência Social; somados, representavam a nada negligenciável fatia de 30,99% dos servidores públicos – que precisa ser analisada tendo em conta o abalo causado por dois anos de vigência do regime militar[15]. Não dispomos dos dados da época, mas a julgar pelo peso dos gestores ligados ao Ministério do Trabalho e da Previdência Social na base de sustentação política de Getúlio Vargas e Jânio Quadros, certamente a proporção foi maior antes do golpe de 1964.
Entretanto, a crise aberta em 1961 pela renúncia de Jânio Quadros não foi apenas uma crise de governo, mas verdadeira crise de regime político, de esgotamento das instituições do “populismo”. Com a chegada de João Goulart à presidência, ao mesmo tempo em que a burguesia industrial e os gestores privados encontravam-se profundamente enredados numa crise econômica que o governo se mostrara incapaz de resolver, mas de cujas soluções dependiam e dependeram desde o princípio da industrialização pesada no país, eles o atacavam um governo que viam como o prenúncio de uma “república sindicalista” – palpável, à época, pelo inexorável crescimento eleitoral do PTB e da máquina burocrática do Ministério do Trabalho[16]. Os trabalhadores atacavam o governo federal e sua politica econômica usando o PTB – e o clandestino PCB – como ponta-de-lança numa onda crescente de greves, mobilizações e outros ataques aos pilares do “pacto de classes” responsável pela manutenção do regime. O toque final para a ruptura com as instituições vigentes foi a chamada “quebra da disciplina” nas Forças Armadas. Enquanto a agitação popular não havia chegado a suas fileiras, os militares agiram quase como um poder moderador, disciplinando inclusive seus pares rebeldes como tantas vezes fizera o marechal Lott; quando os sargentos de Brasília e os marinheiros do Rio de Janeiro rebelam-se em 1964, foi o que bastou para que as velhas camarinhas conspiratórias retomassem as articulações com civis e pusessem o bloco, ou os tanques, na rua.
Todas as partes já publicadas deste ensaio, graças a seu título, obrigam à seguinte pergunta, que se passará a responder de agora em diante: mas e a esquerda, diante disto tudo?
(Continua na parte 6 deste ensaio.)
Notas
[1]: KOVAL, Boris. História do proletariado brasileiro 1857 a 1967. São Paulo: Alfa-Ômega, 1982, p. 384.
[2]: PEDREIRA FILHO, Valdemar S. Comissões de fábrica: um claro enigma. São Paulo: Entrelinhas/Cooperativa Cultural da UFRN, 1997, pp. 43-50.
[3]: FONSECA, Pedro Cezar Dutra. “Nem ortodoxia nem populismo: o Segundo Governo Vargas e a economia brasileira”. Tempo, vol. 14, nº 28, jun. 2010, pp. 19-58.
[4]: FONSECA, Pedro Cezar Dutra. “O mito do populismo econômico de Vargas”. Revista de Economia Política, vol. 31, nº 1, 2011, p. 66.
[5]: COLISTETE, Renato Perim. “Salários, produtividade e lucros na indústria brasileira, 1945-1978”. revista de Economia Política, vol. 29, nº 4, out./dez. 2009, p. 390.
[6]: KOVAL, Boris, ob. cit., p. 386.
[7]: KOVAL, Boris, ob. cit., p. 387.
[8]: CAPUTO, Ana Cláudia e MELO, Hildete Pereira de. “A industrialização brasileira nos anos de 1950: uma análise da Instrução 113 da SUMOC”. Estudos Econômicos, vol. 39, nº 3, São Paulo, jul./set. 2009, pp. 513-538.
[9]: Esta análise da classe trabalhadora brasileira do período é largamente baseada em RODRIGUES, Leôncio Martins. Conflito industrial e sindicalismo no Brasil. São Paulo: DIFEL, 1966, pp. 175-188. Quase década e meia depois a segunda geração desta mesma classe trabalhadora tão aparentemente apática teria seus movimentos políticos analisados, dentre outros, por Eder Sader (Quando novos personagens entraram em cena: experiências e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo 1970-1980. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001), que mostraria um cenário bastante diferente.
[10]: MARANHÃO, Ricardo. “O Estado e a política ‘populista’ no Brasil (1954-1964)”. Em FAUSTO, Boris (org.). História geral da civilização brasileira, tomo III (O Brasil republicano), vol. 3 (Sociedade e política (1930-1964)). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p. 277.
[11]: MARANHÃO, Ricardo, ob. cit., p. 280.
[12]: Não cabe, a esta altura, abrir outra parte do ensaio para tratar de conflitos que, em linhas gerais, já foram descritos à exaustão, e mereceriam apenas uma contextualização mais detalhada. Dada a completa impossibilidade, sob pena de aniquilação mútua e destruição completa da humanidade, de um confronto direto entre as duas superpotências – o mais próximo a que chegaram foi a Guerra da Coreia (1950-1953) – a guerra de atrito entre elas teria necessariamente que se dar em outras arenas, e os países do chamado “Terceiro Mundo” foram palco privilegiado destas lutas. As lutas pela independência (ex.: Vietnã, Congo), a chegada ao poder de governos que sequer precisavam ser pró-soviéticos para serem enquadrados como “comunistas” (ex.: Jacobo Arbenz na Guatemala em 1954), revoluções vitoriosas (Cuba) ou rebeliões nos países da esfera soviética (Hungria, Polônia) eram oportunidades para medir forças e tentar reconfigurar o xadrez geopolítico. Sequer a política de distensão do período Kruschev (1953-1962) pôs fim à corrida armamentista entre as duas superpotências, e a crise da Baía dos Porcos (1962) elevou as tensões a níveis alarmantes. Qualquer política externa que tentasse buscar um realinhamento geopolítico ou uma aproximação entre países de ambos os blocos não era tolerada; mesmo o movimento dos “não-alinhados” iniciado com a Conferência de Bandung (1955) não era visto com bons olhos.
[13]: BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Desenvolvimento e crise no Brasil. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1976, p. 56.
[14]: COLISTETE, Renato Perim. “Salários, produtividade e lucros na indústria brasileira, 1945-1978”. Revista de Economia Política, vol. 29, nº 4, out./dez. 2009, p. 392.
[15]: MARANHÃO, Ricardo, ob. cit., p. 275.
[16]: “…enquanto o PSD, ao longo de sua existência, se limitou a manter (com pequenos acréscimos) o número da sua representação parlamentar, o PTB cresceu sempre: de 22 deputados federais em 1945, passou para 51 em 1950, 56 em 1954, 66 em 1958, saltando para 116 em 1962, quando supera a UDN e passa a disputar com o PSD o lugar de maior partido nacional”. MARANHÃO, Ricardo, ob. cit., p. 275.