Por Passa Palavra

1.

Não deixa de ser sintomático que o nacionalismo da esquerda (e da extrema-direita) dos países periféricos convirja no ataque ao poderia alemão, quando, na realidade, foram as posições intergovernamentais da tecnocracia alemã que foram derrotadas. Aliás, essa derrota não tem sido vista pela esquerda em termos classistas – o ajustamento de posições colaborantes entre a tecnocracia europeia – mas em termos geoestratégicos.

Essa vitória do federalismo é visível na mudança de posição do próprio Bundesbank e, consequentemente, nas palavras de Angela Merkel, a propósito da manutenção da união económica e monetária. Apesar de um pouco refractário, o Bundesbank aceita a união bancária e a integração supranacional de vários aspectos. Como se verá mais à frente, a sua única reserva prende-se com a tese de que primeiro os bancos e os Estados devem limpar os respectivos balanços e défices orçamentais e, seguidamente, a unificação fiscal seria exequível.

Segundo Jens Weidemann, presidente do Bundesbank, «uma genuína união fiscal pode ser um passo rumo a uma estrutura que equilibre o risco e o controlo. Neste cenário, o controlo e os direitos de intervenção poderiam ser transferidos para o nível europeu. Se este pré-requisito for cumprido, uma maior mutualização dos riscos tornar-se-ia possível – e até justificada». Porém, para Weidemann, ainda existem nacionalismos que atrasam esse processo de consolidação fiscal no plano europeu. «Parece-me que ceder soberania nacional nos assuntos fiscais não tem uma maioria na Europa, neste momento – tanto entre os políticos como entre o público em geral dos Estados membros». Como se terá oportunidade de verificar no último artigo desta série, este argumento é transversal a gestores que, numa fase inicial da crise na zona euro, representavam perspectivas divergentes sobre o caminho a tomar.

Por conseguinte, o Bundesbank defende que «mutualizar a dívida sem mutualizar o controlo exacerbaria as tensões inerentes à arquitectura da União Económica e Monetária». Em termos muito simples, Weidemann defende explicitamente a prévia construção institucional europeia – a que chama de «mutualizar o controlo» – antes de se criarem novos instrumentos monetários e financeiros mais estáveis do que as dívidas públicas nacionais.

Portanto, o cepticismo do Bundesbank expressa-se mais no ritmo da integração monetária e fiscal europeia do que propriamente na sua substância. Aliás, o acordo do Bundesbank com os três pilares da união bancária tem sido evidente, nomeadamente no que diz respeito aos princípios do bail-in e da divisão entre o risco soberano e os bancos.

2.

Um alto quadro da direcção do Bundesbank defende que as medidas tomadas neste domínio são a «única forma para assegurar que o conjunto dos custos de financiamento dos bancos seja uma reflexão apropriada dos riscos que incorreram, de modo a contrariar um» possível «apetite excessivo pelo risco». Para além do facto de que uma tomada de decisões, na área financeira, seria impossível sem a concordância do Bundesbank nos pontos fundamentais da união bancária, o mesmo gestor realça o carácter positivo do SRM [*], pois este permitirá ao BCE exercer uma «influência no processo de tomada de decisões dos empréstimos bancários. Os bancos têm agora base para recear que, sob os termos de um existente mecanismo de resolução, no pior dos cenários, eles podem sair do mercado, pelo que baixarão o apetite pelo risco a um nível apropriado» ao seu balanço interno, «aumentado assim o incentivo a monitorizar cuidadosamente os empréstimos». Por outras palavras, a tecnocracia com assento nos Bancos Centrais europeus tem como propósito controlar investimentos de risco e evitar que, por exemplo, fenómenos como o do Barclays Bank invistam 61 libras por cada libra que tinham nos depósitos. Do ponto de vista dos gestores, não se trata de evitar o risco, mas de tentar controlá-lo. E, acima de tudo, monitorizá-lo e evitar que surja emissão monetária por debaixo do tapete e sem conhecimento oficial.

Por seu turno, numa outra conferência, o alto quadro que temos vindo a seguir, Andreas Dombret, lembra que o SRM «terá de assegurar que os bancos sem um modelo de negócio viável possam sair do mercado de uma forma ordenada», sem com isso implicar a falência de Estados ou de contagiar outras entidades bancárias.

Daí que Dombret defenda que as instituições nacionais e supranacionais da União Europeia assumam uma «abordagem holística, dado que a União Monetária Europeia é um sistema altamente interdependente», considerando que muitas das propostas sugeridas até recentemente «ficavam aquém deste requisito» de resposta transnacional. Neste ponto, Dombret vai criticar o unilateralismo das eurobonds, porque iriam distorcer o «equilíbrio entre risco e controlo ainda mais. Enquanto as decisões dos gastos» da despesa pública «manteriam uma prerrogativa nacional, os riscos tornar-se-iam europeus», o que resultaria em maiores incentivos a emitir mais dívida.

Na verdade, o que parece uma posição economicamente conservadora aparenta ir apresentando uma via mais federalizante: «só se o risco comum for correspondido a um controlo comum poderão os incentivos alinhar-se suficientemente». Lembra ainda que um «genuíno controlo europeu dos assuntos fiscais requer um salto quantitativo em termos da cedência da soberania para um nível supranacional». Dentro da típica linha comedida do Bundesbank, Dombret enfatiza que «são necessários passos para encorajar cada parte do sistema a comportar-se responsavelmente, ao mesmo tempo em que terá de tornar o sistema mais robusto contra as falhas das suas partes constituintes».

3.

Passo a passo, a reticência inicial do Bundesbank tem-se transformado e a sua adesão à união bancária é a prova mais evidente do consenso federalista dentro da classe dos gestores. A partir do momento em que a união bancária europeia consubstanciou a «importância de quebrar o nexo desastroso entre o soberano e a banca – e onde as frágeis folhas de balanço dos bancos degradam a solvência dos seus soberanos, e vice-versa», a tecnocracia alemã adoptou uma postura alinhada com o eixo dominante dos gestores europeus. No mesmo artigo, publicado no início do mês de Outubro no Financial Times, Jens Weidemann afirma que a «união bancária europeia é um importante passo para escapar» àquele nexo entre a banca e o Estado. De acordo com o chefe máximo do Bundesbank, invocando a evidência recolhida em diversos estudos, «os bancos menos capitalizados e os bancos que estão mais dependentes do financiamento global» externo «são aqueles que mais investem em títulos da dívida soberana». Weidemann vai mais além e dá conta do ciclo vicioso em que vários desses bancos incorreram. Esses bancos «investiam em acções soberanas com elevados juros e refinanciavam-se com baixas taxas de juro» junto do BCE. De facto, é risível ver a esquerda recorrer precisamente ao mesmo argumento que os capitalistas utilizam para justificar a reorganização do sistema bancário europeu .

O que à esquerda parece um argumento para ajudar os Estados é, na verdade, um procedimento que os tecnocratas estão a levar a cabo para ajustar os mercados financeiros e, assim, reforçar a sustentabilidade dos bancos que não forçaram a nota no equilíbrio entre risco e controlo. Em suma, um dos argumentos que a esquerda dos gestores mais tem utilizado contra o BCE é, portanto, uma forma de camuflar o próprio papel do BCE na reestruturação do sector bancário.

Nota

[*] O Single Resolution Mechanism, Mecanismo Único de Resolução, destina-se a centralizar as competências e os recursos para resolver as eventuais falências bancárias na zona euro.

A série A estratégia dos gestores é formada pelos seguintes artigos:

1) Crise económica europeia e instituições de regulação
2) As palavras e as acções dos gestores europeus
3) E o Bundesbank?
4) Dois discursos de Mario Draghi
5) A federalização, a esquerda e os capitalistas

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