Violenta e generalizada, a quebra da ordem que ocorre com a explosão da revolta traz consigo um vislumbre da possibilidade de transformação social; mas ao existir na tensão entre uma minoria organizada e uma maioria não organizada, a revolta popular limita a si mesma. Por Caio Martins e Leonardo Cordeiro

Na luta contra o aumento até a Choque treme
Não tem pra PE, Civil, nem pra PM
A luta está presente em todo o Brasil
Isso não é mais só movimento estudantil
Agora é espalhar a revolta popular
[1]

“Se a tarifa aumentar, a cidade vai parar”, avisavam cartazes espalhados desde um mês antes, convocando uma mobilização para o início de junho. O primeiro ato acontece em uma quinta-feira e invade de assalto a rotina da cidade ao bloquear com pneus em chamas uma avenida do centro. Surpreendida e desorientada, a Polícia Militar não consegue reprimir com eficácia e, conforme os manifestantes se dispersam e reagrupam, o confronto se espalha por um raio cada vez maior, prolongando a batalha noite adentro. Corre a notícia da repressão e do enfrentamento e o movimento chama um ato para o dia seguinte, no qual cinco mil pessoas marcham por uma das maiores vias expressas da metrópole sem conflito com a polícia.

Essa poderia ser a descrição dos primeiros momentos da jornada de luta contra o aumento da tarifa em São Paulo em 2013, mas é também a narração exata da luta contra o aumento em Vitória no Espírito Santo em 2011. A coincidência de roteiros não é mera casualidade. Revela a existência de uma estratégia comum, construída por esses movimentos ao longo da última década, que tem em seu cerne as revoltas populares contra os aumentos das tarifas.

A cada ano, as mobilizações contra o aumento das passagens do transporte se revelaram mais centrais na luta urbana. Do norte ao sul do país, das cidades médias às grandes metrópoles, se construiu uma cultura de luta em que toda tentativa de aumento é respondida por protestos. Esses talvez tenham sido, durante muito tempo, os raros atos de rua organizados pela esquerda a ganharem tanto eco e adesão popular que terminavam sempre maiores do que começavam – embora, é claro, não raro fossem reprimidos.

Enquanto os ascensos de outros movimentos urbanos – de moradia, por exemplo – dificilmente ultrapassam o limite de sua ocupação ou bairro, nas lutas contra o aumento a mobilização tem a tendência a tomar conta de toda a cidade, a se generalizar como revolta. Talvez porque o transporte não seja um problema restrito a um determinado local ou categoria, e sim uma questão que atravessa a vida de toda cidade. Concentra-se nele uma experiência de sofrimento enfrentado conjuntamente pelos trabalhadores, um cotidiano comum de exploração em que é possível reconhecer-se (como classe?). De sentimento compartilhado, a revolta sai de dentro do transporte: explode como ação conjunta, nos ônibus incendiados, nas catracas quebradas ou nos trilhos ocupados.

“Revolta” foi precisamente o nome dado aos acontecimentos de Salvador em 2003 e Florianópolis em 2004 e 2005. Revelando a potência do caminho que se abria, a Revolta do Buzú e as duas Revoltas da Catraca estabelecem o paradigma para as lutas contra o aumento de toda a última década; entram no imaginário da militância como horizonte dos movimentos por transporte. Ao afirmar de maneira explícita que era preciso “fazer Florianópolis aqui” ou simplesmente espelhar-se naquela forma de luta como referência difusa, as lutas em diversas cidades do país enxergam naquelas experiências o desfecho culminante a ser atingido. Assim, traçam de forma tácita, nem sempre enunciada, uma mesma estratégia.

O roteiro emblemático que se desenha de Salvador a Florianópolis traz alguns elementos que se repetiriam em inúmeras cidades nos anos seguintes, com ou sem sucesso. A constelação desses elementos desenha uma tática que podemos chamar de “revolta popular”: um processo de fôlego curto, mas explosivo, intenso, radical e descentralizado. As primeiras manifestações atuam como ignição de uma mobilização que extrapola o controle de quem a iniciou – que perde toda a capacidade de interrompê-la. Há uma escalada de ação direta: ocupação massiva e travamento de importantes artérias da cidade, enfrentamento com a polícia, ataques ao patrimônio público e privado, saques. Ao prejudicarem a circulação de valor e lançarem uma ameaça de caos – desobediência generalizada –, os protestos, que não respondem a um representante com quem seja possível uma negociação, forçam o governo a recuar para restabelecer a “ordem”.

Salvador e Florianópolis se repetiram com sucesso em Vitória, Teresina, Porto Velho, Aracajú, Natal, Porto Alegre, Goiânia, até à derrubada das tarifas em São Paulo, Rio de Janeiro e mais de 100 cidades em junho de 2013. Com um olhar que viveu esse último momento, especificamente em São Paulo, este texto busca enxergar todo aquele processo.

A direção da revolta

Se, por um lado, o roteiro da revolta investe na perda de controle e na explosividade, por outro, ele depende quase sempre de um polo altamente organizado da luta, uma organização que elabora e formaliza seu sentido e lhe garante alguma coesão, permitindo que as mobilizações avancem de forma autônoma, seguindo a direção primordial: a reivindicação de revogação do aumento. Ora, segundo a narrativa assumida pelo Movimento Passe Livre [2], foi justamente por não possuir esse polo articulado que a Revolta do Buzú não foi vitoriosa: o espaço vazio foi ocupado por dirigentes de entidades estudantis burocratizadas e partidos políticos. Já em Florianópolis, uma organização independente de juventude, racha de um grupo trotskista do PT, assumiria esse papel, elaborando uma estratégia para alcançar a vitória. Era a Campanha pelo Passe Livre – mais tarde, MPL –, que no levante de 2005 cumpriria, nos termos de um então militante, o papel de uma “boa direção”, que soube “jogar, compor e criar com as práticas produzidas de forma autônoma pela movimentação social”:

Quando falo de direção não falo de mando e obediência, e nem de manipulação das massas. Falo de um grupo que pensa, planeja, discute e estuda as questões sociais em torno do levante popular, assim como o dia-a-dia do levante, de modo a se chegar à conquista das reivindicações do movimento. Ora, tal papel de direção se faz necessário partindo do pressuposto que, deixada à sua própria dinâmica, a revolta popular somente por acaso e pouco provavelmente se efetivaria nas conquistas almejadas. Esse direcionamento, esse grupo articulador, propulsionador e pensante, visaria portanto aumentar a probabilidade de que a revolta popular se reflita no atendimento ou conquista das reivindicações. (…) com certa composição social a única direção efetiva, possível e desejável, não é aquela que tenta disciplinar, moldar ou controlar o comportamento social a um ideal, mas aquela que consegue encontrar e pôr em uma sequência virtuosa as práticas diversas, aparentemente antagônicas e espontâneas, que surgem da movimentação social [3].

Esse “grupo que pensa, planeja, discute e estuda” as questões sociais em torno do transporte e das lutas contra o aumento da tarifa durante as mobilizações planejará seus passos nas ruas “de modo a se chegar à conquista das reivindicações” e por vezes assume também o papel de produzir a revolta, isto é, de criar as condições para ela por meio de trabalhos de mobilização, agitação e propaganda, e impulsionando as primeiras manifestações. Em meio aos protestos, a formalização construída pelo polo organizado garante a coesão entre práticas diversas, e mesmo contraditórias (do vandalismo aos “coxinhas”), direcionando-as para um norte comum. Esse momento de controle é essencial para seu momento oposto, de perda de controle.

Conforme irrompiam lutas contra o aumento nas cidades de todo o Brasil, foram se constituindo agrupamentos que assumiriam esse papel diretivo. Ocupariam tal lugar especialmente os vários “comitês de luta pelo passe-livre”, articulados nacionalmente no MPL desde 2005. Expressão proeminente (mas não única [4]) dos polos organizativos das revoltas, o Movimento aponta, ao mesmo tempo, para além delas, já que põe em questão a própria tarifa e o modelo atual de transporte. Contraditoriamente, ao nascer do entusiasmo das revoltas, como tentativa de elaboração do sentido daquelas experiências, o MPL orienta-se sobretudo para as lutas contra o aumento, numa tensão permanente entre a dimensão reativa dessas jornadas e a construção de um outro transporte. Com isso, a articulação nacional pelo passe livre toma, com o tempo, a forma de uma articulação entre grupos dirigentes das lutas contra aumentos.

O papel de direção assumido nas revoltas entra em conflito com os princípios da horizontalidade e da autonomia, tão caros ao movimento. Durante a luta contra o aumento, portanto, sua forma só pode ser a de uma direção que se nega a si mesma, que não se afirma como tal e por vezes nem sequer se enxerga assim; que não ambiciona o controle total e, mais do que isso, tem como fim perder completamente o controle.

Controle e perda de controle

Junho de 2013 em São Paulo parece ser um momento em que o movimento acredita ter clareza sobre que fazer no decorrer da revolta e assume, assim, o papel de direção da forma mais consciente e visível. O MPL-SP colocou para si a tarefa de elaborar sozinho um planejamento detalhado da luta, a partir da dinâmica que se podia apreender das experiências concretas anteriores: para triunfar ela deveria ser radical, intensa e descentralizada. Não houve assembleias abertas ou uma frente ampla, as articulações foram extremamente seletivas para evitar desgastes como os enfrentados em jornadas anteriores. Tudo que parecia desnecessário ao roteiro definido foi relegado ao segundo plano ou descartado. O trajeto de cada ato, decidido pelo restrito grupo de militantes do MPL-SP, era taticamente secreto: informado a algumas organizações próximas, mas nunca revelado à imensa maioria dos manifestantes. E, mesmo que a “revolta popular” e a “perda de controle” tenham aparecido no discurso público do movimento logo no primeiro dia, aquele pequeno grupo de pessoas manteve, apesar da retórica, um controle razoável sobre as manifestações até às vésperas da revogação do decreto. Mesmo na imensa marcha da segunda-feira, 17 de junho – da qual participaram, sem exagero, mais de um milhão de pessoas –, o grupo dirigente conseguiu executar o trajeto que definira, dividindo o ato em duas frentes que reencontraram-se na Ponte Estaiada (apesar de outras divisões). Ao longo das três semanas de luta, a primeira vez que o MPL-SP não conseguiu conduzir uma manifestação segundo o trajeto decidido foi na terça-feira seguinte.

Nos dias 18 e 19 de junho os protestos se descentralizaram de fato, e espalharam-se pela cidade os quebra-quebras e os saques. O Movimento não conseguiu sequer conduzir o início da manifestação e era impossível ter ideia de tudo que se passava. Enquanto centenas de milhares de pessoas tomavam a avenida Paulista e a Consolação, o centro de São Paulo torna-se uma espécie de zona liberada: ocorrem numerosos saques a lojas de grandes cadeias, um carro da Record é incendiado, fachadas de bancos e vitrines saem destruídas. Depois de derrubar o portão do Palácio do Governo do Estado no dia anterior, manifestantes tentam invadir a Prefeitura, destroem seus vidros e a cobrem de pixações. “Funcionários e assessores do prefeito chegam a se armar e erguer barricadas” [5].

Simultaneamente, mas fora das câmeras, manifestações autônomas eclodiam em vários pontos da cidade. Nas linhas Esmeralda e Rubi da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), após panes, passageiros ocupam os trilhos, quebram os trens e sabotam as vias. Em Cotia, cerca de cinco mil pessoas trancam os dois sentidos da Rodovia Raposo Tavares. Protestos bloqueiam a Ponte do Socorro e a Estrada do M’Boi Mirim. No Grajaú, junto a uma onda de saques, fala-se em mais de 89 ônibus danificados. Na zona leste, o impacto foi tamanho que, no dia seguinte, o Consórcio Leste 4 colocou menos da metade da frota em operação. Em Guarulhos, manifestantes bloqueiam por horas a via de acesso ao Aeroporto Internacional.

Violenta e generalizada, a quebra da ordem que ocorre com a explosão da revolta traz consigo um poderoso vislumbre da possibilidade de transformação social. Ao descrever esse momento em Florianópolis, no ano de 2004, um militante afirma que “o ultimato dado pelo movimento, a convocação de megamanifestações e a desobediência civil generalizada, deixaram a cidade em verdadeiro clima pré-insurreicional.” Suas palavras poderiam muito bem se referir aos últimos dias de luta em São Paulo quase dez anos depois: “era difícil prever o que poderia ocorrer […] caso a classe dirigente não houvesse revogado o aumento das tarifas”; “a situação poderia sair completamente do controle das autoridades constituídas (e destituídas!)“ [6].

Greve geral, ocupação dos prédios públicos, tomada da cidade por barricadas em cada bairro, expropriação de frotas… eis alguns desdobramentos que o ascenso popular abria à imaginação às vésperas do anúncio da revogação do aumento. É precisamente a ameaça de um enorme salto organizativo dos trabalhadores que alarma a classe dominante – o “caos social” bate à porta e deve ser contido pelo governo, cedendo [7]. A tática histórica das luta contra o aumento, que aqui chamamos de “revolta popular”, aposta para seu sucesso nessa ameaça e, no entanto depende, ao mesmo tempo, de que ela não se realize. Para conquistar a reivindicação central, a revolta deflagra um processo explosivo, que é necessariamente freado no momento em que se atinge a conquista.

Se a tática é eficiente, o salto organizativo já nasce castrado e vai existir apenas como vislumbre. A breve perda de poder sobre as ruas permite entrever outro poder, um poder popular, tão palpável quanto inalcançável naqueles dias. Ao existir justamente na tensão entre uma minoria altamente organizada e uma maioria não organizada, a revolta popular limita a si mesma. Pois ao mesmo tempo que na luta contra o aumento de São Paulo a população agiu diretamente sobre sua vida, não é menos certo que existia um comando que decidia o que fazer. Se depois de junho uma parte da esquerda avaliou que o problema no processo era a carência de uma “direção revolucionária”, nos parece o contrário: nas revoltas contra o aumento, o que falta – e por isso se trata de revoltas – é horizontalidade, ou seja, poder direto dos que estavam nas ruas sobre o que estavam fazendo, algo que depende da existência de estruturas enraizadas no dia a dia dos trabalhadores.

Entre governo e desgoverno

Nas palavras de um militante do MPL de São Paulo:

Junho com certeza não teria acontecido do jeito que aconteceu se não existisse esse grupo de pessoas analisando, fazendo os planejamentos e ralando para que fossem cumpridos, isso é uma certeza que eu tenho hoje, mas isso foi uma limitação que estava colocada para as coisas acontecerem do jeito que aconteceram naquele contexto. Era um problema que só esse grupo decidisse tudo que ia acontecer, foi uma limitação não existirem organizações de bairro ou local de trabalho que conseguissem intervir no que estava acontecendo por toda a cidade. (…) Um dos objetivos do MPL é a gestão popular no transporte, [algo que] é mais do que claro que aquele grupo não poderia conseguir realizar, justamente porque isso só pode acontecer se houver organizações em cada bairro organizando o transporte por si mesmas e não sendo organizadas por outras pessoas. [8]

Tal limitação “que estava colocada” à luta é a própria limitação do contexto histórico no qual surgem as revoltas. Ora, o chamado trabalho de base há anos desapareceu da prática política da esquerda brasileira. A organização popular que era a base da esquerda foi o custo do projeto de governar gestado por esta no fim dos anos 70 – foi um preço pago à medida que esse projeto se realizava [9]. Ao subir rumo ao governo, o PT alça consigo a direção dos movimentos populares e a insere plenamente nos mecanismos da gestão dos conflitos sociais (dos canais governamentais de “participação” ao “Terceiro Setor” em expansão). Não à toa, a tônica do discurso é a da inclusão. Marcadas por uma crescente distância entre a cúpula e a base, enquadradas pelas ditas “políticas públicas” (desenvolvidas a partir do conhecimento acumulado pelos próprios militantes), as organizações populares sofrem um esvaziamento que as atrela a uma enorme máquina burocrático-eleitoral [10]. As “bases”, agora, só podem existir como contingentes coisificados, devidamente domesticados e representados, de trabalhadores – tratadas como moeda de troca das burocracias.

O sentimento generalizado de impotência, com raízes fincadas na própria esquerda, se alastra entre o conjunto dos trabalhadores e encontra coro também nos “radicais” de fora do governo. Adequadamente escorado nos clichês de um marxismo determinista (seja o das análises “realistas” do governo ou o de uma oposição de esquerda em defensiva), o consenso imobilizante sobre “a correlação de forças” naturaliza a injustiça e o sofrimento – medir forças contra o capital é perda de tempo. Foi levada a cabo uma verdadeira domesticação: “críticas”, nas palavras de Paulo Arantes (em quem nos apoiamos um tanto nessa análise), “só propositivas e com indicação da fonte de financiamento” [11].

“Nessa espantosa fábrica de consensos e consentimentos em que o país se converteu”, as engrenagens da inclusão estão intimamente ligadas a um projeto de “pacificação armada” [12]. As peças institucionais não funcionam sem os mecanismos de exceção: ambos se complementam na empreitada de conquistar e gerenciar indivíduos, divididos em territórios. Com a multiplicação sem precedentes das tecnologias sociais de controle vivida pelo país, aparecem “policiais que realizam atividades de educadores ou animadores sociais, (…) gerentes de banco que funcionam como conselheiros de negócio e empreendimento, comerciantes que viram caixa de banco, líderes comunitários que gerenciam programas de governo, gestores públicos que transacionam empreendimentos privados” [13].

Era de se esperar que a resposta viesse como perda de controle. Para os pequenos grupos que se mantinham na esquerda à margem do governo, disparar o desgoverno da revolta era a possibilidade de fazer frente àquela gigantesca estrutura de gestão da luta de classes. A explosão política violenta das ruas recusa os mecanismos de participação e reage à repressão armada. – Em São Paulo, a tática do movimento é assumidamente elaborada para enfrentar a estratégia de diálogo esperada de uma Prefeitura petista [14].

Embora nos falte, aqui, analisar o lugar do transporte na estrutura gerencial da cidade e na recusa dela [15], é evidente que a revolta aparece justamente como crítica destrutiva, como negação do consenso imobilista. Reação explosiva e de tiro curto, ela responde ao projeto eleitoral da esquerda dentro da lógica que ela imprimiu à luta social: o espetacular, o tempo midiático, as quedas de popularidade. A revolta é, talvez, o avesso daquela imobilidade, a tradução política daquele sentimento de impotência – finalmente ecoa uma dissonância na monótona paralisia entoada pelos mais diferentes setores políticos. Mas, enquanto mero eco da potência esquecida da classe trabalhadora, vislumbre de um antagonismo real, a revolta está limitada. Com um pé (ou dois?) na política do espetáculo, ela não pode ir além da impotência.

O sentido da revolta

O aparente imediatismo da revolta, um tempo de acontecimentos imediatos, é também um tempo profundamente mediado – por um teatro que transcorre em separado da vida cotidiana. E conforme a tática de revolta passa a orientar toda a construção estratégica do MPL, aquele ritmo acelerado é transposto para o dia a dia do movimento. Seus esforços se resumem recorrentemente, assim, à preparação das mobilizações, na lógica da agitação e propaganda[16]. Sem estruturas de base, o elo entre os manifestantes e a organização é mediado, nas lutas contra o aumento, quase que exclusivamente pela internet (inicialmente pelo CMI, mas desde 2011 principalmente pelo Facebook), pela televisão e por jornais impressos. Foram esses canais – na maior parte controlados pela classe dominante – os principais meios usados pelo movimento para convocação dos atos, divulgação das pautas e posicionamentos [17].

A fragilidade do elo entre os dois polos ameaça permanentemente a direção da revolta: seu sentido pode ser apropriado – e os meios de comunicação estão em posição privilegiada para fazê-lo. Assim foi em junho de 2013, quando a imprensa burguesa, diante da massificação das manifestações, trabalhou pela diluição da pauta dos 20 centavos em meio à evocação difusa da corrupção.

Essa perda de sentido assombra a perda de controle. Se a mobilização deve transbordar o controle do MPL, ela deve necessariamente transbordar a pauta construída desde o início pelo movimento. Por isso, a cada vez que reafirmava o sentido único dos protestos, o Passe Livre reafirmava a si mesmo enquanto direção do processo. Contudo, a potência transformadora que a revolta deixa entrever tem que ir muito além dos 20 centavos – é uma força de mudança total. A explosão da revolta é, portanto, também a explosão do sentido e, na medida em que essa explosão tem que ser contida, a manutenção da pauta (em que se empenha o MPL) cumprirá um papel limitador fundamental. Depois da redução da passagem, resta uma mobilização sem direção cujo sentido será facilmente disputado pelos antigos intermediários. Entretanto, o além-dos-20-centavos, que só existia dentro da luta pelos 20 centavos, já não é nada.

Em junho de 2013, o processo encontrou seu limite de modo muito forte em São Paulo – justamente onde os 20 centavos definiram claramente a direção da revolta. É verdade que o refluxo paulistano atinge logo em seguida as cidades onde as manifestações explodiram movidas pela repercussão dos acontecimentos difundidos pela mídia. Entretanto, onde a finalidade dos protestos esteve mais dispersa, desagregada, como no Rio de Janeiro, o final do processo também foi diluído, num longo rescaldo que se estendeu pelos meses seguintes. Como as ruas cariocas não tinham um sentido predominante – a revolta não era uma tática planejada por um grupo dirigente com um objetivo claro –, elas não perdem completamente o sentido após a redução da tarifa.

Junho passou

A elaboração tática da revolta popular, gestada desde 2003, foi levada às últimas consequências. O novo caminho da luta urbana que se desdobrava nas diferentes jornadas contra cada aumento no país bate no topo em junho. Atingindo uma dimensão inédita, o sucesso definitivo da revolta enquanto tática em 2013 é também o esgotamento dela.

Na luta de rua, já não parece possível driblar as forças repressivas com as mesmas manobras dos últimos anos. A insistência nelas desenha um cenário de gestão de motins, já espalhado pelo mundo: mesmo os mais violentos protestos, enquadrados na rotina e cirurgicamente contidos pela polícia, já não são tão capazes de abalar a ordem. Dos serviços de inteligência à justiça, a repressão estatal aprimora seu produto [18]. Os protestos entram nos cálculos dos políticos, da imprensa e das seguradoras. A rua como fim em si mesma é um beco sem saída. Os enfrentamentos com a polícia, resumidos a um desgaste inócuo, se esvaziam tanto quanto o modelo dos “grandes atos” – organizados por articulações que não se cansam de buscar a bandeira sob a qual voltará a se forjar “a unidade da esquerda”. Parece que se alastrou uma fixação pelo passado que impede de projetar no horizonte algo além da mera repetição do que já foi: “junho não acabou”, as “jornadas de agosto”, “tô na rua outra vez”, “outros junhos virão”… por aí vai.

E não foi apenas em um de seus polos (a rua) que se esgotou a tática de revolta; o mesmo acontece com o outro (o coletivo organizado): descolado do processo de mobilização, o grupo que ocupou o papel de direção perde o sentido. Quando cai a tarifa em São Paulo e outras centenas de cidades, a forma organizativa da direção das revoltas contra o aumento completa sua empreitada, que se desenhava a cada ano: abrir uma fissura no consenso. Orientado por e para as revoltas, o formato assumido pelo MPL perde seu lugar. Talvez por isso, muitos dos coletivos que dirigiram grandes jornadas de luta e alcançaram vitórias procuraram, em seguida, reformular sua atuação. Todavia, é possível enxergar práticas que indicam uma forte tendência a insistir no antigo papel de direção.

Por um lado, aquele grupo que esteve ligado a algo muito maior que si volta-se para a manutenção de sua própria estrutura: para continuar existindo, ele se isola cada vez mais das lutas sociais e de seus lutadores [19]. Por outro lado, acelerado pelo ritmo dos acontecimentos na revolta, ele desperdiça cegamente suas forças na ânsia em responder às crescentes cobranças de um jogo político em que recentemente foi considerado ator – incluindo aí os pedidos de entrevista e de posicionamento, a assinatura de variados manifestos e ações, as pesquisas acadêmicas, os convites para mesas e palestras, o interesse dos gestores públicos e privados [20]. O reconhecimento pelos demais “atores políticos” transmite à organização a dinâmica desse teatro. Se ela não tem um novo horizonte, inevitavelmente se apega ao passado e reafirma a forma morta – sobra apenas uma marca a ser administrada [21].

Dizer que a tática histórica que aqui chamamos de “revolta popular” se esgotou não é, em nenhuma instância, decretar o fim da revolta – aquela atitude que há séculos pulsa entre os dominados. Ao contrário, esta nunca esteve tão presente: desde junho, a disposição à luta só cresceu. Mas o que construímos além dessa disposição? Milhões saíram às ruas e, de volta à casa, ao bairro, ao local de trabalho, voltaram à rotina de sofrimentos e humilhações (talvez um pouco mais indignados)? Embora tenha produzido ecos, o momento de mobilização não conseguiu ir além de si mesmo, não encontrou continuidade em um momento de organização.

Se não saímos de 2013 com um aumento na organização dos de baixo, talvez o terreno para essa organização esteja mais fértil. Ao apontar para algo vivo para além do cotidiano morto de consensos e consentimentos, junho quebrou o feitiço. Era, porém, ainda uma recusa impotente: apenas entrevimos a possibilidade de um outro mundo. Como fazer com que o vislumbrado passe do possível para o real? É no mínimo indispensável superar a centralidade da tática de revolta e formular uma perspectiva estratégica mais ampla, a perspectiva de uma recusa mais potente, enraizada no cotidiano. É preciso construir o que se tornou imaginável.

Notas

[1] Paródia do funk “Morro do Dendê” (da trilha sonora do filme Tropa de Elite) cantada na luta contra o aumento de Vitória (ES).

[2] Essa é a narrativa que aparece, por exemplo, no artigo assinado pelo MPL de São Paulo no livro Cidades Rebeldes (São Paulo: Boitempo, 2013).

[3] Leo Vinicius. Guerra da Tarifa 2005. São Paulo: Faísca, 2005. pp. 60-61.

[4] Há todo um imaginário comum da história, da estética, dos princípios, propostas e táticas da luta do transporte que é em grande parte formalizado em torno do MPL, mas do qual fazem parte outras organizações. Para citar alguns exemplos atuais: o Movimento Não Pago em Aracajú, o Bloco de Lutas pelo Transporte Público em Porto Alegre, o Tarifa Zero em Belo Horizonte, os movimentos Pula Catraca e Contra Catraca no interior de São Paulo, entre outros inúmeros comitês, fóruns e frentes de luta espalhados pelo país.

[5] Elena Judensnaider e outros. Vinte centavos: a luta contra o aumento. São Paulo: Veneta, 2013.

[6] Leo Vinicius. A Guerra da Tarifa. São Paulo: Faísca, 2005. pp. 60-61.

[7] Na primeira Revolta da Catraca, a ameaça foi explícita: “Depois de quase duas semanas de revolta, os estudantes deram um ultimato e convocaram um protesto monstro que deveria reunir mais de vinte mil pessoas. O movimento deixou vazar para as autoridades que se não houvesse revogação do aumento das passagens, tentariam uma ocupação da câmara e da prefeitura decretando um governo municipal por conselhos populares. Misto de bravata, estratégia e ingenuidade, a ameaça surtiu efeito. Ante a iminência de uma passeata de enormes proporções e consequências imprevisíveis, um juiz federal da cidade simplesmente revogou o aumento, poucos momentos antes da manifestação, alegando temor pelo “caos social” gerado pelos ”’combates’ nas ruas de Florianópolis” na luta contra os ‘exorbitantes preços atribuídos às passagens do transporte coletivo’.” (Pablo Ortellado. “Um movimento heterodoxo”. CMI Brasil, 2004. Em: http://www.midiaindependente.org/pt/red/2004/12/296635.shtml). Em junho de 2013, logo antes do anúncio da revogação do aumento em São Paulo, a proposta de convocar uma greve geral para a semana seguinte ganhava eco entre as mais diversas organizações de esquerda (a proposta inclusive teve desdobramentos, e a tal greve aconteceu, mas como farsa, descolada da revolta).

[8] O comentário é do camarada Arabel, publicado em um grupo de discussão em uma rede social.

[9] Sobre o ineditismo dessa esquerda que se propôs a governar, ver a participação de Paulo Arantes no Seminário “Governar após junho” promovido pelo PSOL em São Paulo. Em: youtu.be/wM4WoY8hqQM (a partir de 00:32:00, com péssimo áudio).

[10] O artigo “Estado e movimentos sociais” reflete mais profundamente sobre a relação entre esquerda no governo e os movimentos sociais. Em: http://passapalavra.info/2012/02/52448.

[11] Paulo Eduardo Arantes. “Fim de um ciclo mental” em Extinção (São Paulo: Boitempo, 2007), p. 250, entre outros artigos e entrevistas compilados no mesmo volume, em especial nas partes 3, 4 e 5. Ver também “O ‘pensamento único’ e o marxista distraído”, do mesmo autor (Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004). Em reunião com o movimento em junho, quando “Haddad pede a definição de uma fonte orçamentária do subsídio que reivindicam (…) o MPL diz que não cabe ao movimento encontrar soluções técnicas para uma demanda social” (Judensnaider, 2013). Para uma possível origem das “críticas propositivas” na esquerda brasileira, ver http://passapalavra.info/2012/05/58422.

[12] Continuamos na trilha de Paulo Arantes, agora no ensaio “Depois de junho será a paz total”, no novo livro O novo tempo do mundo (São Paulo: Boitempo, 2014), que aproveitamos de última hora, quando já terminávamos de escrever este texto.

[13] Livia de Tommasi e Dafne Velazco. “A produção de um novo regime discursivo sobre as favelas cariocas e as muitas faces do empreendedorismo de base comunitária”. Texto apresentado na 35ª reunião da Anpocs (Caxambu, 2011) e citado por Paulo Arantes em “Depois de junho será a paz total”.

[14] Em abril de 2013, durante uma marcha dos movimentos de moradia, Fernando Haddad desceu do gabinete e discursou para os manifestantes, transformando o ato em um comício. No primeiro grande ato de junho, a prefeitura esperava receber uma comissão do movimento, para colocá-la, ao que tudo indica, “numa dispersiva mesa de negociação técnica” (Judensnaider, 2013).

[15] Parece que ainda falta muita reflexão sobre esse lugar. Em “Depois de junho a paz será total”, Paulo Arantes faz considerações interessantes e indica algumas referências (ver pp. 404-424). Outros apontamentos nessa direção foram feitos em “Violência e imaginação: quando o cotidiano desce do ônibus” (http://tarifazero.org/2014/05/17/violencia-e-imaginacao-quando-o-cotidiano-desce-do-onibus/).

[16] Apesar de explorar bem a dimensão lúdica e artística, esse tipo de ação quase sempre constitui uma intervenção pontual, descontínua, desenraizada, dispersa. O movimento se apropriou e desenvolveu diferentes formas de agitar a cidade e propagandear a luta: atividades em escolas, panfletagens, escrachos às autoridades, cartazes, pixações, catracaços, divulgação nas redes sociais, ações midiáticas, pequenos protestos, artigos e reportagens da imprensa, entre outras.

[17] A centralidade da mídia na atuação do MPL aparece na própria origem do movimento, herdeiro do Centro de Mídia Independente (CMI) e de uma cultura ativista que remonta à Ação Global dos Povos. Para uma crítica mais profunda dessa cultura ativista, ver Felipe Corrêa. “Balanço crítico acerca da Ação Global dos Povos no Brasil”. Publicado em seis partes: http://passapalavra.info/2011/07/42773.

[18] Para mais sobre esse cenário, ver “Teoria do Caos”, originalmente publicado em Police Reviews e traduzido pelo Passa Palavra (http://passapalavra.info/2014/03/92961) e “A mais-valia relativa da polícia: sobre repressão e controlo social” no mesmo site (http://passapalavra.info/2014/04/93676). Não custa dizer que a tática policial do encapsulamento, novidade de 2014 da PM paulista, já era usada desde 2006 em Santa Catarina – não por acaso.

[19] Não importa o tamanho desse burô, seja ele formado por quatro ou por quarenta pessoas, porque há o que Felipe Corrêa chama de “desperdício de força social”: “há excesso de processos e estruturas, pessoas fazendo o que não é necessário, pouca gente envolvida com atividades importantes (trabalho de base, por exemplo) etc.” (“Movimentos sociais, burocratização e poder popular. Da teoria à prática. 3) Mecanismos e processos de burocratização” em http://passapalavra.info/2010/11/31590)

[20] Para mais sobre esse momento perverso em que “a base social da luta não se interessa mais pelo movimento, mas os gestores públicos sim”, ver o artigo “Buro-ácrata” de Grouxo e Legume em http://passapalavra.info/2014/04/94231 .

[21] Como se vê, por exemplo, na recente nota publicada pela federação nacional do MPL “Sobre o sequestro de sigla” (http://saopaulo.mpl.org.br/2014/05/13/nota-da-federacao-nacional-do-mpl-sobre-o-sequestro-de-sigla/).

Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.

12 COMENTÁRIOS

  1. Excelente texto! Muitas questões trazidas e bem formuladas.

    Tenho falado depois de junho, para uma ou outra pessoa, inclusive semana passada para um companheira, exatamente que acho que o paradigma da “revolta” se esgotou, nas lutas pelo transporte. Junho ele bateu no teto. E como bem aponta o texto, não é mais surpresa, já entrou na contabilidade do poder, que já tem desenvolvido formas de contenção.

    E se as revoltas serviam para alçar ao debate público questões que estavam confinadas a pequenos grupos, como a municipalização do transporte a tarifa zero, no entanto falta uma estratégia efetiva para, por exemplo, alcançar a tarifa zero.

  2. Parabéns aos autores pelo texto. Ele realmente levanta algumas questões centrais a respeito da luta pela mudança dos transportes públicos e, além disso, como bem destacou o Leo Vinicius, tais questões foram muito bem formuladas.

    Eu quero discutir uma conclusão a qual vocês chegaram, traduzida pelo seguinte trecho: “Se não saímos de 2013 com um aumento na organização dos de baixo, talvez o terreno para essa organização esteja mais fértil.” Será mesmo que não houve ganhos organizacionais entre os de baixo? Eu confesso que me faltam elementos que sustentem um veredito bem abalizado nesse sentido. Afinal, é de se esperar que se muitos entre os de baixo – nas favelas, escolas, ocupações, universidades, empresas, bairros etc. – estejam se organizando agora, ou passaram a se organizar mais intensamente com esse “terreno mais fértil” derivado dos acontecimentos de junho, tal organização ainda esteja nos “subterrâneos”, ocorrendo de modo silencioso e que, portanto, seus frutos mais vistosos ainda estejam por ser colhidos. Como saber?

    Eu conheço, aqui no Rio de Janeiro, um ou outro grupo ou coletivo de moradores de favela que surgiram a partir de junho, os quais estão se articulando, ganhando em acúmulo de discussões e refinando sua práxis. Mas isso é uma amostra muito reduzida da realidade, insignificante quase, de modo que eu não faço ideia se estes casos que conheço estão mais para exceção ou para a regra. Os autores e demais leitores aqui desconhecem exemplos similares aos que eu trouxe?

    Dialogando ainda com os autores – e com o Leo Vinicius: as recentes greves selvagens dos rodoviários em diversas cidades pelo Brasil, bem como a vitoriosa greve selvagem dos garis, no Rio, a massificação dos protestos convocados pelo MTST e o ascenso do protagonismo das bases entre os trabalhadores da educação (superando o imobilismo costumeiro dos seus sindicatos) não seriam, justamente, indícios de avanços da organização dos de baixo decorrentes dos acontecimentos de junho? Ou seriam apenas manifestações oportunas em uma conjuntura favorável às reivindicações?

    Sei que tudo isso é ainda muito recente para termos uma boa visão de conjunto, mas uma coisa me parece certa: o repertório de ação dos movimentos e a disposição para mobilizações entre a classe trabalhadora são muito maiores hoje do que há um ano. A despeito disso, penso que ganhos de mobilização e até mesmo conquistas de certas reivindicações não devem ser confundidos com ganhos organizacionais e programáticos. Atendidas as reivindicações ou esgotado o repertório de ação, as lutas tendem a declinar, a não ser que se aprofunde a organização, se avancem os programas e, sobretudo, se formule e se dissemine amplamente um projeto de sociedade. Me parece que este é o salto qualitativo que nos faz falta.

  3. Parabéns pelo texto! queria contribuir também com o debate, me desculpem o embaralhamento de conceitos, vou tentar expor aqui o que penso do assunto.
    Um dos principais paradigmas na construção de junho pelo mpl era a construção ou resgate de uma “cultura de luta”, traduzida no texto pela quebra da lógica do “cotidiano morto de consenso e consentimentos”, um objetivo no plano cultural, estético. O mpl sempre colocou a disputa estética com as formas predominantes dentro da esquerda, seja na forma de organizar os atos, seja em sua forma de organização interna, a horizontalidade, como primordial. A tática da revolta popular, ao seguir os preceitos do direito a cidade, aponta como ideal um quadro em que a máquina estatal se encontre permanentemente como refém da insatisfação popular, ao contrário dos programas revolucionários que se dirigem a tomada do poder. As reivindicações ligadas ao direito a cidade (transporte, moradia, questões ambientais, etc) tem como característica o imediatismo das demandas cotidianas (“O aparente imediatismo da revolta, um tempo de acontecimentos imediatos,…”). Coloca-se em conflito a realidade da cidade (esfera da vivência cotidana, em oposição ao plano da política nacional, por exemplo) frente às utopias veiculadas pelas engrenagens do espetáculo, fazendo assim ruir pelo contraste o hipnotismo coletivo. Este imediatismo na medida em que se esquiva de apontar caminhos a longo prazo, estimula na mente de todos a reflexão sobre a realidade imediata, sobre a política presente no cotidiano, no corpo, levando a uma mudança de postura com relação ao espaço em que se vive, a um empoderamento. Há uma mudança de “ponto de vista”, neste sentido uma mudança estética.
    As táticas inerentes à ideia de direito a cidade abrem a possibilidade de se levar a cabo a luta dos de baixo dentro da sociedade espetacular ao trazer a política para perto, negando a mediação espetacular. Os protestos são convocados pela internet, mas aqueles que comparecem são movidos pela memória recente do sufoco diário no transporte gravada em seus corpos.
    A bandeira da tarifa zero, como forma bem acabada de reinvidicação do direito a cidade, encontra sua força não em sua capacidade de implementação, mas no horizonte estético que desenha, integrando o espetáculo da cidade-modelo a uma quebra dos paradigmas do capital. O ganho aqui também é cultural.
    Partindo destas premissas, acredito que junho foi um passo fundamental nesta construção de um novo imaginário, de uma nova estética para a esquerda, para além das conquistas das reivindicações(que entretanto tiveram um forte papel nesta mudança de perspectiva estética). Acredito também que o caráter imediatista destas lutas seja inerente ao deslocamento do ponto de vista sobre as questões socias, ao foco que se concede à vida cotidiana em detrimento das “amplas questões” da política institucional. É com certeza uma vitória se hoje um punhado de pessoas pelo país estiverem mais preocupadas em como tomar uma decisão coletivamente, acerca do problema mais “mesquinho”, do que pensando em quem votar na próxima eleição.
    A prática da autogestão por natureza se debruça mais sobre si mesma, em uma constante autocrítica, em profundas análises sobre método, do que outros modelos de gestão. Penso que é esta a cultura que devemos difundir, a cultura da busca da horizontalidade. Talvez seja este o principal papel a ser desempenhado pelas organizações de esquerda neste novo momento, em paralelo à agitação. Difundir a cultura da autogestão, do sentido de coletividade, nos núcleos de organização embrionários gestados pela revolta. Os grandes programas revolucionários inevitavelmente afastam a população ao afastar a política da vida cotidiana.
    Enfim, talvez o papel do mpl em junho não tenha sido propriamente o de direção , mas algo mais parecido com o de um artista empenhado em dar coerência a sua obra(obra que assim como no teatro, não existe em si, mas na relação presente em um dado contexto), em assegurar esta virada no imaginário, a mudança dos paradigmas. O caminho até aqui foi bem trilhado, e depende agora da articulação (premeditada ou não) de diversos agentes, novos e antigos, neste novo cenário. Passar do levante ao processo revolucionário depende do enraizamento das conquistas no plano cultural.

  4. Olá Caio e Leo, bom dia.

    muito bom ler o texto crítico, denso, reflexivo, às portas de novo junho, pois, justamente, “junho passou”…

    O texto anima: “o além-dos-20-centavos, que só existia dentro da luta pelos 20 centavos (…)” não existiu, afinal, somente dentro da luta pelos 20 centavos!

    Compreender e assimilar o comprimido de alguns limites e algumas possibilidades do passado (do futuro?), procurando fornecer sentido para um tempo que se quer destinado à liberação de um infinito de possibilidades políticas – tão queridas para os que apostam no seu conteúdo emancipador, dedicando-se à construí-lo também, claro, seja lá como for (nunca de qualquer jeito), no esfôrço das tentativas, no espírito das composições das lutas populares, ان شاء الله… – essa é tarefa da maior importância…

    Lembrei de “Junho”, mas para os não se afogarão em “aquários fundos, cristalinos”, “entre peixinhos de geléia azul”… (ver aqui: http://grooveshark.com/s/Junho/5aPq9p?src=5)

    Abração!

  5. Creio que foi o melhor texto de reflexão, formalização dos impasses e análises das lutas pelo transporte público e gratuito no estado em que se encontram.

    Mas de tão bom, autocrítico e persuasivo, creio que deve-se ter cuidado de, a partir desse entendimento dos limites e necessidade de superação de um paradigma da revolta popular, deixar esse potencial explosivo que apresentam por vezes os aumentos de tarifa, e no seu lugar acabar não se construindo nada que na prática se mostre como um passo além. Por vezes quando movimentos percebem uma limitação de uma tática, buscam outras tentando ir além mas acabam ficando aquém.
    O texto aponta muito bem situações que devem ser evitadas da forma como as lutas tem se dado. Mas não aponta na prática “o que fazer”. Claro, isso não é demérito nenhum. Quem souber exatamente o que fazer, que aponte.
    Enraizar-se no cotidiano significa o que? Essa é a questão prática. Intensificar trabalho de base? Certamente é um dos significados. Mas de certa forma isso é um pressuposto também para fomento das revoltas populares, e do papel de “boa direção” nelas. Nesse sentido intensificar o trabalho de base é pressuposto para qualquer tática, mesmo a da revolta popular.
    A grande questão, pensando na conquista de tarifa zero é pensar o caminho para conquista-la: a partir de que tipo de ação, de que tipo de mobilização?

    É possível ir além da ‘revolta popular’ quando a tarifa aumenta (e lembrando que são relativamente poucas vezes que há manifestações com forte adesão quando elas aumentam), em direção a uma construção/situação de conflito permanente? É possível ir da greve na cidade-fábrica à construção do conflito permanente na cidade-fábrica? É possível construir um conflito cotidiano, permanente no transporte coletivo, que torne cada vez mais insustentável a forma de organização/gestão do transporte abrindo caminho para a tarifa zero? Se sim, como?

  6. Também gostei muito do texto, pela forma e, claro, conteúdo. Gostaria apenas de pontuar que o crescimento da “disposição” para a luta, mencionado no fim do texto, já é por si só um legado de valor inestimável para a esquerda anti-capitalista brasileira. As iniciativas organizacionais de periferia, em (lenta?) construção pós-junho, mencionadas no comentário do Eduardo Tomazine, a Greve dos Garis, a greve dos rodoviários, atualmente em curso e já vitoriosa por ser feita pela base, inclusive à revelia do sindicato da categoria, tudo isso, essa fermentação de greves e lutas sociais pelo país, já são por si só ganhos políticos para a classe, e não me parece que devamos nutrir um tipo de pessimismo histórico ou político por conta do tempo (lento?) dos avanços organizacionais e das lutas com pautas mais radicais. O tempo das lutas oscila muito, e o conceito de aceleração da história só existe porque existe também a toupeira, que faz a história parecer desacelerada em dias anteriores às erupções. Enfim, meu otimismo é por causa do histórico das lutas de classes no Brasil. Estamos ainda encerrando o ciclo do PT, um ciclo que vinha de fins dos anos 1970, nas lutas ofensivas contra a ditadura, e que transcorreu em 30 anos uma trajetória de passagem da radicalidade à acomodação à ordem: primeiro o PT, indo para a tática eleitoral de busca pelo poder político a qualquer custo, assimilando e engolindo a CUT, e mais recentemente o MST, passando da luta pela reforma agrária (e potenciais revolucionários) à luta por maior competitividade no mercado capitalista de produtos alimentícios, “contra o agronegócio” não enquanto inimigo de classe, mas como inimigo, digamos, comercial. Num texto meu publicado nesse mesmo site, ainda em junho, afirmei que:

    a ausência de espaços políticos atraentes e de um bom trabalho de base da esquerda organizada criou uma espécie de vácuo de espaços de sociabilidade da classe que foi rapidamente aproveitado por setores conservadores da sociedade, os quais souberam fazer trabalho de base e lograram canalizar para si grande parcela das camadas sociais desfavorecidas […]
    Vendo o quão trágico é o cenário histórico da política no Brasil, há motivos de sobra para o militante de esquerda se empolgar com as recentes manifestações pela baixa da tarifa, no Brasil todo. Num país dominado pela resistência sociopática à mudança, onde a burguesia tem medo-pânico das classes trabalhadoras descerem o morro e não ser carnaval (como diz o samba), há portanto que alimentar o “otimismo da vontade” e ir às ruas, lutar para que o movimento resulte no maior ganho possível para a classe trabalhadora, especialmente, a meu ver, no âmbito de alimentar uma cultura política de luta e conquistas, de baixo para cima. Conquistar, portanto, algum grau de autonomia política de classe. (http://passapalavra.info/2013/06/80009)

    Um ano depois, e tantos avanços e recuos, mantenho meu otimismo da vontade, pois acredito q os avanços da luta podem até ter sido menores do que esperávamos naqueles dias de aceleração da história, estando a classe (um ano depois) ainda patinando nesse modelo tático de “revolta popular” sem saber exatamente como levar a luta para o patamar mais avançado, de “conflito permanente e radical contra a ordem”. Mas ainda assim foram gigantescos os pequenos passos dados, justamente por terem se dado no Brasil de 2013/2014, um Brasil que ainda está encerrando o ciclo do PT e que tem sua esquerda histórica totalmente desmantelada. Daí a necessidade do trabalho de base, bem pontuada pelos autores e alguns outros (por exemplo: http://www.brasildefato.com.br/node/13389).
    Outra questão importante que, salvo engano, não foi mencionada no excelente texto de vocês, é a questão de que essas lutas no modelo ainda defensivo de “revolta popular” (defensivo apesar de sua ofensividade enquanto reação largamente “espontânea” da classe; defensivo porque ainda desorientado do inimigo principal, o capital enquanto modo de controle da sociabilidade) forjam lutadores. E são esses que, educados na prática e forjados ontem, forjarão as lutas mais ofensivas de amanhã. O que me lembra do texto “Lutas precisam-se, lutadores também”, publicado aqui. Ora, forjando lutadores, essas lutas ainda defensivas com pautas específicas e limitadas acabam preparando o terreno para as lutas mais radicais de amanhã, também porque o sistema talvez, mas só talvez, passe a enfrentar crises que o impossibilitem até mesmo de garantir no futuro as pautas mais singelas, como por exemplo a revogação do aumento (sem esquecer que foi via concessão de isenção de impostos às empresas…). No Rio o cancelamento do aumento em junho durou apenas 6 meses; já em janeiro a tarifa aumentou novamente. Ora, me parece que aumentou justamente para impor uma pauta política regressiva às nossas lutas, anunciadas, (a pauta então passa a ser novo cancelamento do aumento, em vez de, por exemplo, redução para um valor menor ou até mesmo a almejada tarifa zero…). Esse motivo pode ser também de cunho econômico: empresa + Estado não aguentariam uma redução da tarifa, que seria onerosa aos superlucros e compromissos $$ entre empresas e governo…
    Em todo caso, o nosso foco deve ser a criação de lutadores e órgãos de luta organizados suficientemente para sermos capazes de, uma vez radicalizadas as lutas, propormos a “ocupação da câmara e da prefeitura decretando um governo municipal por conselhos populares”. Sem que isso seja um “Misto de bravata, estratégia e ingenuidade”, mas sim a concretização de uma estratégia realista.

  7. Caros Camaradas,

    Texto como o de vcs faz pensar. Me fez sair de lado, fumar um cigarro, antes de escrever um comentário publico, coisa que tenho, e ainda tenho, gde receio em fazer.

    O seu pessismismo realista quanto à tática da revolta é um belo banho de água fria nos nossos desejos militantes mais profundos (ainda que saibamos que não vai rolar como gostaríamos no fim das contas), e é corajoso pois nesse período pré-copa poderiam estar se refestelando com as possibilidades de recriar a experiência de junho. E, aí sim, se consolidarem de fato como atores desse teatro que descreveram, e, talvez pior, seriam bons interlocutores, negociáveis, dialogáveis, pros governos aqui aí estão. Um intelectual, militante e bom amigo, me perguntou esses dias, em terras cariocas, se os meninos do passe livre não seriam sugados por essa mesma bolha semi- inescapável que traga a esquerda. Respondi que não tinha vacina, que era possível sim que fossem. Mas que vcs tinham TODA consciencia desse risco. E que de gaiatos não entrariam nesse navio. E que isso fazia toda diferença. Esse texto de vcs só reforçou essa impressão, de uma militante distante e “quase” isolada nesse mundão difícil dos agora “esquerdistas banidos por conta própria” dos espaços da ordem velada. Depois desse desabado, queria dialogar com vocês em dois pontos.

    1 – Vocês foram atores centrais em criar desordem social. Nessa falência completa das organizações da esquerda, que abarca partidos, sindicatos, e infelizmente, os mortos-vivos movimentos, foi forjada uma experiência distinta. Inclusive, e talvez principalmente, porque vocês “perderam o controle”. Isso não pode sair de foco. A tática das ruas, agora manjada pelos senhores da ordem e as seguradoras do capital (containers em frente às concecionarias em BH!), gerou uma experiência nova e, mais importante, trouxe as ruas setores revoltosos quase irreconheciveis. De onde saíram? De que classe são? Onde entram em nossos manuais esquerdistas? Será que Marx ou Bakunin os identificaram em 1800 e alguma coisa? quem nos salva?
    Esse sentimento é precioso. De não saber. De termos que entender a NOSSA realidade. Parece que nós, da esquerda inteirinha, esquecemos o que é isso.

    2- Que fazer a partir desse cenario? (e olha que não sou leninista. gosto do lenin dos soviets. rápida, e precipitadamente, abandonado por todo mundo. rs)
    Que novas experiências criar quando a estrategia não esta formulada? Não sairá da cabeça de nenhum iluminado, nem pequeno grupelho de iluminados. Brotará da experiêncais de luta, das trincheiras e escaramuças. Muitas, espero, brotarão por aí. E a grande maioria será absolutamente essencial. Quais serão as nossas próximas, caros camaradas?

  8. Só corrigindo uma informação. No Grajaú foram 80 ônibus depredados no dia 18 de junho. A fonte é um blog que, diga-se de passagem, é bastante instrutivo por mostrar o que os de cima tem a dizer sobre o transporte.

    http://blogpontodeonibus.wordpress.com/2013/06/19/viacao-cidade-dutra-com-menos-onibus-e-anchieta-com-fogo-na-pista/

    “Na noite de ontem, na zona Sul da Capital Paulista, diversos ônibus da Viação Cidade Dutra foram danificados durante os protestos.
    Não há um balanço oficial, mas cerca de 80 veículos foram danificados na manifestação. Ao menos foram 79 pichados, amassados e depredados e um foi queimado.”

    E ainda pretendo deixar meu comentário, mas antes quero ler o texto com mais calma.

  9. O artigo contém toques de realismo parcial, desejos de factualidades e retórica, a de convencer de que o MPL foi motor da “Primavera Brasileira” de junho de 2013. O MPL merece reconhecimento do seu papel de coadjuvante na grande mobilizaçao popular que colocou em espanto o mundo inteiro. Se nao houve continuidade do movimento popular sui generis nao foi porque o MPL se limitou em organizaçao e estratégias. O movimento passe livre foi apenas mais um dos inúmeros movimentos que explodiam a época de junho de 2013 integrados no conjunto do movimento popular, excluídas todas as demais entidades organizadas,cotumazes na conduçao dos movimentos populares. Elas, estas entidades institucionalizada também é expressao desse Estado opressor.
    O que ressalta no artigo de Caio e Leonardo é a omissao de registro, detalhado, do comando do MPL-SP quando escolhido para responder como líder do Movimento de Junho. (Na imprensa está a opiniao expressada pelos líderes do MPL, nao podendo ser negada e tampouco distorcida)
    A verdade sobre o importante papel na mobilizaçao da massa em todo amplo territorio do Brasil foram os ANONYMOUS. A esses anonimos muito se deve agradecer pela deflagraçao da Primavera Brasileira. Historiar sobre o papel dos ANONYMOUS nas mobilizaçoes de junho de 2013 nao será tarefa fácil aos estudiosos e analistas. É justamente a condiçao de anonimato e sem organizaçao convencional dos grupos anonymous que impossibilita tal tarefa. Os ANONYMOUS estao presentes e atuantes em todo o mundo, o que nao seria diferente no Brasil. Há, sim, diversos respeitáveis estudos procurando identificar o núcleo animus incitatio do movimento de junho, muitos desses estudiosos detectam os anonymous como aglutinadores de insatisfaçoes individuais, de causas de pequenos e grandes grupos organizados inseridos na margem dos movimentos sociais propriamente ditos. Enfim, isto é assunto de análise e registro pelos futuros historiadores, isentos de ideologias. Afinal, a açao política dos anonymous tal como se dizem anonimos, por certo também será anonima.

  10. ah, vunus, só não pode esquecer Jesus. Ele também está sempre ajudando as pessoas sem que elas percebam. Ele está presente e atuante em todo o mundo, e sem dúvida foi o principal protagonista nas Jornadas de Junho no Brasil. Mas é assim desde os tempos da cruz, vão dizer que é mentira, vão perseguir os crentes, jogá-los aos leões. Pode até vir ser objeto de estudo de futuros historiadores, mas a história já está escrita.

  11. Um dos pontos que mais me chamou a atenção no texto foi a caracterização do MPL como uma “articulação entre grupos dirigentes das lutas contra aumentos”. Aqui, na minha opinião, se encontra o ponto-chave. Afinal, como passar da luta reativa contra os aumentos a uma real remodelação do transporte coletivo? E aqui não me refiro apenas a uma remodelação “autogestionária”, mas também à mera remodelação capitalista. Basta notar que as jornadas de junho não impuseram nenhuma alteração significativa na legislação sobre os transportes.
    E é aí que a limitação da “forma” MPL transparece de maneira mais nítida (tal como muito bem colocou o Leo Vinícius acima): “A grande questão, pensando na conquista de tarifa zero é pensar o caminho para conquista-la: a partir de que tipo de ação, de que tipo de mobilização?”. Um dos caminhos em que diversos coletivos do MPL se enveredaram foi a criação de listas de abaixo-assinados para tentar aprovar projetos de lei de iniciativa popular. Assim foi feito em Florianópolis com a Lei do Passe Livre Estudantil. Da mesma forma em São Paulo, logo após a luta contra o aumento de 2011. O resultado todos nós sabemos: nada saiu do papel.
    Que caminho seguir então? Não me atreveria a dizer aqui que tenho a resposta, mas ouso palpitar alguns pontos que acho importantes.
    1)A criação de organizações de usuários.
    Como o texto mostra, a estratégia da revolta popular vive da “tensão entre uma minoria altamente organizada e uma maioria não organizada” e dessa forma “limita a si mesma”. Sendo assim, um primeiro passo na construção de um outro transporte está justamente na criação de processos de organização entre os usuários do transporte. Nesse sentido acho de suma importância as recentes lutas contra os cortes de linhas e a experiência de uma linha popular no extremo sul de São Paulo (http://passapalavra.info/2014/04/94048).
    2)Estabelecimento de pautas e lutas comuns com os trabalhadores do transporte.
    As recentes greves de rodoviários e a atual greve dos metroviários em SP serviram sobretudo para demonstrar a necessidade de superar o abismo que existe entre os trabalhadores e os suários do transporte. A atitude de reprovação às greves de grande parte da população foi fator fundamental nas derrotas dos rodoviários de RJ e SP. Ao mesmo tempo, a importância de tal unificação se tornou clara nos catracaços realizados em apoio à greve dos metroviários.
    Além disso, se estamos aqui falando de controle sobre o transporte – de autogestão portanto -, bastaria lembrar que uma das questões colocadas pelos motoristas de Salvador durante a greve era justamente manter os ônibus em suas mãos, fora do controle das empresas. Ou seja, são eles que podem exercer o controle de maneira mais direta.
    Tenho consciência de que o que está aqui colocado não é nenhuma novidade para ninguém, todos já sabiam, só não sabiam como colocar isso em prática. No entanto, creio que os últimos meses deram pistas importantes de como proceder nesse ciclo que se abriu a partir de junho de 2013.

    E mais uma vez parabéns aos autores pelo artigo!

  12. Como diz a música do Rage Against the Machine, a revolta é a rima dos sem voz:
    And the riot be the rhyme of the unheard

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