Por Passa Palavra
Até o momento, é sempre com relação ao trabalho que temos concebido a autonomia; não se pode esquecer que os trabalhadores, submetidos a relações sociais capitalistas em tantos outros aspectos de sua vida além do trabalho, pautam suas lutas também em torno de outros três eixos.
Em primeiro lugar, em torno das condições de produção e reprodução dos trabalhadores, ou seja, em torno de tudo aquilo que mantém os trabalhadores vivos, que lhes dá alguma qualidade de vida e que permite sua reprodução biológica e social. Para os trabalhadores, quanto mais for possível garantir estas condições cedendo o mínimo possível de seu tempo de trabalho aos capitalistas, melhor. Não é por acaso que, à parte o trabalho e tudo o que lhe seja relacionado, a moradia é uma das primeiras coisas a gerar mobilizações coletivas (ver aqui, aqui e aqui); tal luta não se restringe às quatro paredes das casas e apartamentos, mas estende-se a todos os serviços infraestruturais necessários a uma moradia considerada digna: esgotamento sanitário, abastecimento com água potável (ver aqui) e energia elétrica (ver aqui), pavimentação, sinalização, telefonia, transporte, correios, logradouros etc. Da mesma forma, a educação é outro campo de lutas, travadas tanto pelos trabalhadores da educação (ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) quanto pelas famílias de trabalhadores (ver aqui) e pelos estudantes cuja força de trabalho capacitada é seu produto; estes últimos, paralelamente, vivem em busca de maior autonomia no processo educativo (ver aqui e aqui) – contra professores, diretores, coordenadores pedagógicos e tudo quanto remeta à instituição escolar (ver aqui e aqui), reforçada em sua obsolescência a cada geração. Seria interessante discorrer sobre as lutas no campo da saúde (ver aqui, aqui, aqui, aqui e aqui), do trabalho doméstico, dos lazeres, da alimentação, da sexualidade, da divisão sexual do trabalho (ver aqui e aqui), da cultura (ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) e outros, mas os exemplos já dados ilustram bem o significado deste primeiro eixo de lutas.
Em segundo lugar, observa-se que os trabalhadores também travam lutas em torno das condições de realização da exploração, ou seja, das condições necessárias para que os trabalhadores sejam continuamente sujeitos à exploração pelos capitalistas, das condições que facilitam, condicionam, determinam sua entrada e reentrada nas mós de um trabalho cujo produto não lhes pertence. Para os trabalhadores, quanto menos estas condições funcionem, quanto mais é possível curto-circuitar seu funcionamento, melhor. Tais condições podem ser agrupadas, grosso modo, em dois setores. De um lado o urbanismo, ou a separação no espaço urbano entre moradia e lugar de trabalho, e tudo o necessário – transporte, centros de serviços próximos ao lugar de trabalho etc. – para que esta separação pareça mais cômoda. De outro lado as instituições repressivas: a polícia, a generalização das câmeras de vigilância, certas configurações espaciais próprias do urbanismo, o monitoramento de redes sociais, a garimpagem de dados (ver aqui). Daí, por exemplo, ser tão difícil a movimentos de luta por moradia ocupar e permanecer imóveis próximos aos centros urbanos, embora tentem (ver aqui, aqui e aqui); daí, por outro lado, ser sempre suspeito o uso de criptografia nas comunicações pessoais (ver aqui e aqui). Não há, também, outro jeito de compreender a relação de amor e ódio entre trabalhadores e as polícias (ver aqui).
Em terceiro lugar, vê-se com frequência lutas dos trabalhadores contra as condições de operatividade do processo de trabalho, ou seja, contra o conjunto de condições que garantem que o processo de trabalho possa se dar simultaneamente como processo produtivo e como processo de exploração do trabalho alienado; para isto, requer-se meios tecnológicos que, ao mesmo tempo em que realizem o afastamento dos trabalhadores relativamente à administração da produção, ponham à disposição dos capitalistas as formas de efetivarem essa administração. É longa a lista de lutas em torno da inovação tecnológica nos processos de trabalho, pois os trabalhadores sabem, quase instintivamente, que nenhuma nova tecnologia implementada pelos burgueses e gestores funcionará para reduzir o tempo de trabalho que deixam em suas mãos (ver aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui). É quando os trabalhadores resistem a novas máquinas, processos de gestão, formas de organização do trabalho, meios de controle etc., e fazem o diabo para garantir algum nível de autonomia em seu processo de trabalho.
Nesta primeira fase do debate, restrito ao campo teórico das conclusões de uma pesquisa militante, a luta pela autonomia mostrou-se ser a luta contra a alienação (nos campos cultural e psicológico), contra a mais-valia e a exploração (no campo econômico) e contra a hetero-organização (no campo político), dentro e fora do processo de trabalho, envolvendo os principais aspectos da vida dos trabalhadores enquanto trabalhadores.
Estas lutas não foram travadas no éter. Trata-se, aqui, da síntese, abstrata e teórica, de processos de luta ocorridos em tempos e lugares diferentes, lançados aqui para iniciar o debate. Em seguida, será necessário apresentar em linhas gerais como se desenvolveram estas lutas, para expor de que forma se chegou às conclusões apresentadas.
A série Reflexões sobre a autonomia contém 6 partes, com previsão de publicação de uma parte a cada domingo.