Como agiu a POLOP nos tormentosos anos 1960? Por Manolo
O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – desenvolvendo as empresas transnacionais de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil foi tão engajado – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade – e é o que queremos investigar com esta série de artigos – nunca antes o Brasil foi tão imperialista.
Leia aqui as demais partes do ensaio: [1] – [2] – [3] – [4] – [5] – [6] – [7] – [8] – [9] – [10]
Antes de iniciar esta parte do ensaio, um esclarecimento, pois não agradou a alguns que a experiência da formação da POLOP fosse chamada de “ovo de Colombo”. Apesar de este ensaio ser pautado pela atuação da esquerda e da extrema-esquerda no Brasil, ele nunca deixou de percebê-la fora de um contexto global, e o contexto global de atuação da POLOP é o final dos “trinta gloriosos”, da enorme expansão econômica do pós-Segunda Guerra, que se estendeu até meados da década de 1970. Já se falou bastante da formação da classe trabalhadora e da situação econômica brasileira neste ensaio, então é possível passar direto às propostas e análises da POLOP. É preciso, então, explicar as coisas.
Antes mesmo do congresso fundador da organização, Eric Sachs apresentou uma análise minuciosa do capitalismo no Brasil:
O país passou por uma fase de expansão industrial – e continua passando em ritmo mais moderado – que não permite mais falar em termos de simples economia agrária. O desenvolvimento econômico completou, até um certo grau, a obra da revolução de 1930. A burguesia está no poder e lidera a coligação das classes dominantes. A tarefa fundamental da revolução burguesa, a de destruir o domínio político do campo sobre a cidade, foi solucionada de um modo burguês-reformista. E outra solução a nossa burguesia não está mais em condições de apresentar nem disposta a fazê-lo. (…) Nossa burguesia não tem mais disposições para soluções revolucionárias – nem no combate do atraso interno, nem na luta contra um opressor externo. Suas armas ideológicas são as teorias de desenvolvimento, que nos são apresentadas nos mais diversos tons. Todos eles têm em comum o pretender que o crescimento econômico capitalista solucione os problemas nacionais, que esse crescimento terá de ser lento e constante, eliminando os conflitos internos e atritos sociais e que desse modo repetiremos o que nações mais antigas já realizaram no passado. (Ignorando quase dois séculos de agudas lutas de classes, que marcaram o auge e o declínio do capitalismo europeu.) O que essas teorias de desenvolvimento todas têm em comum, até as mais nacionalistas, é que, de um modo ou de outro, pressupõem uma colaboração do capital estrangeiro, isto é, do imperialismo, que deve ajudar a solucionar os problemas nacionais. O que varia nas diversas matizes do “desenvolvimento” são as condições dessa “colaboração”. Os remédios propostos visam em geral colher os benefícios, eliminando os aspectos sombrios da penetração imperialista. É uma solução ideal e nada dialética e por isso mesmo irreal. Mas, abstraindo essas imagens pequeno-burguesas da realidade econômica, uma coisa fica certa: sem o apoio do capital estrangeiro os “desenvolvimentistas” não oferecem perspectivas de solução dos problemas nacionais. Isso elimina de antemão as possibilidades de emancipação do país mediante o desenvolvimento burguês e limita o papel da burguesia nacional na luta antiimperialista[1].
A POLOP parecia ser vocacionada desde sua origem para o combate ao desenvolvimentismo, em especial sua vertente nacional-desenvolvimentista. A convocatória para o I Congresso da organização indicava a tônica dos debates:
O que caracteriza, na prática, a situação do proletariado brasileiro? Antes de tudo, o domínio e a tutela que a burguesia nacional exerce sobre ele, de um modo tão vasto ainda que impede a sua participação na política nacional como fator independente. Materialmente, esse domínio é realizado por meio do Ministério do Trabalho, da legislação sindical herdada do Estado Novo e demais apetrechos clássicos da máquina de opressão do Estado burguês. Ideologicamente, essa tutela é exercida pelas várias teorias que pregam uma comunidade de interesses entre a burguesia e o proletariado (desenvolvimentismo, nacionalismo etc.), e que têm como consequência tácita o sacrifício das reivindicações próprias da classe operária. Para julgar esse aspecto da questão da tutela burguesa, é importante assinalar todavia que ela continua a existir, principalmente, porque está sendo defendida, em teoria ou na prática, pelos partidos chamados de esquerda. (…) O domínio burguês sobre os sindicatos, porém, não mais corresponde às relações de forças materiais entre as classes. Suas causas são encontradas no terreno ideológico. Essa tutela ideológica, já o dissemos, a burguesia exerce hoje preferencialmente por meio das “teorias” do desenvolvimentismo – sem por isso desprezar recursos mais antigos, como o clero, o patriotismo, a ignorância cultivada por meio de um sistema de educação arcaico etc. O “desenvolvimentismo”, como é aceito nas chamadas esquerdas e nas cúpulas sindicais, se apresenta geralmente sob o signo do nacionalismo e a fusão das duas ideologias é tendência geral. Também nesse terreno a nossa burguesia não mostra excessiva originalidade e usa essencialmente os mesmos argumentos clássicos do capitalismo europeu do século passado. (…) O culto da renda per capita reviveu, e sua elevação faz parte hoje de qualquer meta oficial, como fez parte da bagagem ideológica dos reformadores liberais dos tempos de Marx. (…) a penetração das ideias desenvolvimentistas no meio operário foi facilitada por uma hábil exploração dos sentimentos anti-imperialistas reinantes nas massas. Com essa aventura (não sem perigo para ela) a burguesia pretendeu matar diversos coelhos com uma só cajadada. Em primeiro lugar, era importante para ela procurar neutralizar a luta anti-imperialista, que tinha de se dirigir contra si mesma, pois ela, apesar de todas as divergências internas, colabora com o imperialismo, aceita a sua cooperação para o desenvolvimento e o apoio na política internacional. Em segundo lugar, soube aproveitar esse movimento, quando achava útil, para melhorar a sua posição na aliança que conserva com o imperialismo – onde está relegada ao papel de “primo pobre”. E em terceiro lugar, o problema da luta anti-imperialista, da maneira como foi colocado pela chamada esquerda, reforça a aparente comunidade de interesses e justifica, mais uma vez, os sacrifícios por parte do proletariado[2].
Como se vê, tratava-se de libertar o movimento operário de duas tutelas: a burguesa, materializada nas teorias desenvolvimentistas, e a reformista, representada tanto pelos pelegos do PTB quanto pelos comunistas e socialistas. Isto num momento em que os trabalhadores urbanos, na esteira da tentativa de golpe de 1961, de suas sucessivas perdas salariais e da luta contra suas péssimas condições de vida, aumentavam a radicalidade de suas manifestações políticas e conquistavam não apenas ganhos salariais expressivos – pela primeira vez em muitos anos – como também assustar as classes dominantes ao ponto de fazê-las ou apoiar um programa de reformas políticas, econômicas e sociais, ou conspirar, aberta ou veladamente, para pôr fim a este ciclo de lutas. Que teses defendia a POLOP? As seguintes:
1) Uma renovação da esquerda no país só poderá se dar quando for apoiada, conscientemente, na classe operária. (…)
2) O movimento operário brasileiro já tem suas bases materiais criadas. Entretanto, permanece amarrado por uma legislação sindical herdada do Estado Novo, e sem um partido de classe. Jovem, fortalecido com a industrialização, continua ele a crescer com o fluxo do campo, mas não atua ainda como classe independente no cenário nacional, com uma política oposta à burguesa. (…)
3) (…) As tarefas fundamentais dos novos são, entretanto, – levando em conta o desenvolvimento geral ocorrido nos últimos decênios – as mesmas que outros antes de nós enfrentaram. Trata-se, em primeiro lugar, para falar claro, de aplicar o método do marxismo naquilo que comumente se chama realidade brasileira. (…) Ao rejeitarmos as tentativas de imitações não o fazemos, certamente, por motivos nacionalistas em voga, e sim pela consciência de que todo povo e todo movimento revolucionário têm de cavar o seu caminho. Os exemplos ensinam, mas não poupam o trabalho. O marxismo, onde abalou o mundo, foi antes de tudo criador.
4) A falta de uma aplicação construtiva do marxismo e das experiências do movimento internacional à realidade do país fez com que a esquerda, finalmente, se limitasse a desempenhar suas atividades não em função da sua classe operária e dos seus objetivos históricos, mas sim como apêndices da política externa dos países que já realizaram suas revoluções. (…)
5) Um movimento operário liberto da tutela interna e externa não pode deixar de desfraldar a bandeira da luta pelo socialismo neste país. Não pode deixar de opor aos desenvolvimentistas a alternativa do desenvolvimento socialista para enfrentar os problemas insolutos da chamada realidade nacional. (…) No Brasil de hoje, a luta aberta e indisfarçada pelo socialismo é uma condição indispensável para a elaboração de uma estratégia e uma tática do seu movimento operário – é a própria premissa da tomada de consciência de classe de seu proletariado.
Eis o que entendemos por Política Operária[3].
…a maior contribuição que o proletariado brasileiro pode dar é a revolução socialista. É essa que deve ser a meta declarada e aberta do novo partido revolucionário, meta que não deve ser abandonada em nenhum momento da luta. É sob essa bandeira que se organizará a classe operária do país, se despertará sua consciência e a levará à luta final. Esse objetivo só poderá ser alcançado em oposição à presente política externa soviética, que se faz sentir nas lutas de classe, mediante a atuação do PCB. Se falamos em oposição à política externa soviética não nos referimos às tentativas de entendimento diplomáticos, que visam a evitar ou adiar uma guerra mundial, como por exemplo, os recentes acordos de cessação dos testes nucleares de Moscou. Nós nos opomos a que esses entendimentos se realizem às custas do movimento comunista internacional, que a luta revolucionária contra o capitalismo e o imperialismo seja abandonada em prol de um “Espírito” pacífico qualquer[4].
E como agiu a POLOP? De modo bastante contraditório com suas palavras. Logo em 1962, apoiaram a candidatura de Cid Franco, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), para o governo de São Paulo, com a seguinte justificativa (que é a clássica argumentação leninista para participação eleitoral):
(…) essa mobilização [das massas operárias contra as candidaturas burguesas e latifundiárias] só será possível se a campanha se transformar num veículo de politização e esclarecimento das massas e em um instrumento de desmascaramento do próprio processo eleitoral burguês. Ao contrário das candidaturas burguesas achamos que uma candidatura que pretenda servir de veículo para o amadurecimento das massas não pode consistir em um simples desenrolar de promessas eleitorais e de apresentação de soluções de cima para abaixo, mas sim na apresentação de um programa de reivindicações e de ação das próprias massas. (…) Para a Esquerda Revolucionária não se trata de transformar o regime através do processo eleitoral. Fazendo a crítica global ao sistema, os socialistas revolucionários vêem as eleições como um momento da mobilização popular no caminho da subversão das estruturas e tomada do poder pelos trabalhadores. (…) o que distinguirá uma política operária de uma política burguesa não serão as idéias ‘mais avançadas’ dos portadores daquela. O que distinguirá uma política operária de uma política burguesa será a maneira mesma de utilizar as eleições. Não diremos ao povo o que faremos ‘se formos eleitos’. Diremos o que é preciso que o próprio povo faça. É preciso mostrar claramente um programa socialista e mobilizar o povo transcendendo o episódio eleitoral. (…) palavras de ordem ‘revolucionárias’, intransigentes, etc., que não levam em conta as situações concretas em que nos encontramos e que se contentam em repetir as fórmulas puras do marxismo enlatado e acabado, não atingem o povo e tem a mesma eficácia que as pregações anarquistas ou moralistas. (…) se nós quisermos ser militantes marxistas com um mínimo de seriedade precisamos partir da realidade para saber como mudá-la, e não idealizar o que deveria ser. Nós conseguiremos fazer com que o povo não participe do processo eleitoral quando oferecermos outra opção, pois não se pode dar uma palavra de ordem puramente negativa desacompanhada de uma positiva[5].
Além desta relação eleitoral com o PSB – de onde vieram vários quadros da POLOP – os primeiros documentos da POLOP contaram com a simpatia de alguns deputados trabalhistas, como Almino Afonso e Sérgio Magalhães (de quem Luiz Alberto Moniz Bandeira, filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), era secretário):
Sérgio Magalhães: …torna-se inadiável a formação de uma frente única de todas as forças de esquerda para fazer frente à atual crise que atravessa o país. (…) Essa frente única, esse pacto de ação das forças populares se faz ainda mais necessário, sobretudo diante da ofensiva das forças reacionárias que ameaçavam desencadear o terror e a violência, tomando a iniciativa de tentar destruir o próprio regime democrático.
Almino Afonso: Louvo, pois a iniciativa do grupo de ‘Política Operária’ e faço votos para que realmente se venha a verificar a união das forças de esquerda, sobretudo diante da ameaça da reação, cada vez mais agressiva contra o povo[6].
Outra frente de militância da POLOP era a União Nacional dos Estudantes (UNE), onde Aluísio Leite Filho chegou a ser vice-presidente em 1962 numa chapa encabeçada pela Ação Popular (AP). Soma-se a isto a aproximação com as Ligas Camponesas:
Vânia Bambirra: surgiu a figura de Francisco Julião e as Ligas Camponesas, a gente achava que era necessário uma aliança operária camponesa, então achamos que era muito conveniente nos aproximar de Francisco Julião que era um líder muito autêntico. As Ligas Camponesas surgiram no Nordeste, depois se espalharam pelo Brasil; nos propusemos a organizar as Ligas Camponesas de MG, e eu era quem coordenava as Ligas Camponesas junto com dois advogados fantásticos: Welington Romanelli, se não me falha a memória, e o Lins, eu não me lembro o primeiro nome dele; eles eram os advogados das Ligas, porque as Ligas eram assim: surgia uma questão de terra, um posseiro queria ficar na terra, vinha um fazendeiro para expulsar, então a figura dos advogados eram chaves nas Ligas Camponesas, eles entravam com uma ação judicial para garantir que eles ficassem na terra até que o processo corria, o que demorava anos. Assim nós formamos as Ligas Camponesas[7].
Arnaldo Mourthé: …demos apoio a Julião e seus companheiros em MG, inclusive com assistência jurídica, feita por nosso companheiro Romanelli, depois exilado no Chile, e tínhamos nosso próprio trabalho de apoio a camponeses, poderíamos dizer hoje, sem-terra, na defesa de suas posses. Esse trabalho durou de 1961 a 1964, quando veio o golpe[8].
Theotônio dos Santos: no plano camponês nós tínhamos uma relação muito forte com as Ligas Camponesas, com o Julião e organizamos Ligas Camponesas em várias partes, em Minas, em Goiás, em Brasília, aqui no Rio inclusive tivemos uma participação também, em São Paulo, no Rio Grande do Sul, então dentro das Ligas Camponesas nós formamos uma ala dentro do movimento camponês, quando se realizou o I Congresso Camponês em Minas, o Partido Comunista defendia uma tese, era de reforma agrária mais limitada, o Julião defendeu uma reforma agrária mais radical e uma exigência muito grande à Jango neste sentido. E de fato as palavras de ordem nossa predominaram durante o Congresso, a massa camponesa era grande e bastante vinculada as nossas palavras de ordem[9].
Apesar destes esforços, a POLOP não conseguia alcançar o operariado urbano:
…até 1963, não era mais que um grupo de intelectuais, que lutavam pelo arejamento do marxismo, contra o dogmatismo dos stalinistas e trotskistas; até então a POLOP só tinha uma pequena penetração no meio estudantil, assim mesmo praticamente limitada à cúpula da UNE, porque se fazia um conchavão. A POLOP começou a crescer mais a partir de 63, antes era basicamente estudantil com a UNE e a força do Aluísio participávamos do Congresso da UNE e essa era a nossa maior força até 63. Não tinha operários na época, só o Otavino[10].
A falta de capacidade de enraizar-se entre o operariado, na visão dos polopeiros, poderia ser resolvida através da implementação do centralismo democrático e da especialização das coordenações na organização, até então sem tais características. E é o que foi tentado no II Congresso da POLOP, em janeiro de 1963[11]. Neste congresso têm início os debates sobre a transformação da POLOP numa organização partidária – contrariando seus objetivos inciais de dissolver-se numa organização surgida da própria classe trabalhadora. Enquanto isto, a POLOP buscava compor forças para uma Frente de Esquerda Revolucionária, iniciando conversações frustradas com o PCdoB – que os acusava pelas costas de “trotskistas” – e com a esquerda do PTB, em especial o grupo de Leonel Brizola – que financiou a impressão do jornal Política Operária de janeiro a abril de 1964[12]. Para a POLOP, Brizola representava junto às massas populares
a única saída revolucionária efetiva, e que, por isso mesmo, é o pólo de atração em torno do qual giram os descontentes do PCB. As discussões sobre a capacidade que o indivíduo Brizola teria para “ir até o fim” ou “ficar no caminho” não passam, evidentemente, de especulações subjetivas. O fato concreto é, não somente a significação revolucionária de que reveste Brizola para as massas, como, sobretudo a modificação qualitativa que se vem operando na base social do movimento brizolista e que se marca pela participação crescente de operários e camponeses[13] .
Além disto, a POLOP, na esteira dos tumultuosos acontecimentos políticos que levaram à instauração do parlamentarismo, antecipava desde 1961 duas possibilidades sérias de golpe de Estado: um golpe bonapartista, a ser dado por João Goulart, ou um golpe fascista, a ser dado por Carlos Lacerda. No primeiro caso, a POLOP tirara como linha política levar as massas a assumir posições radicais, armando os operários, desmantelando os órgãos repressivos e julgando os bonapartistas através de Assembleias Populares ; no segundo caso, a linha política era a de resistência à ditadura fascista. Mesmo assim, o golpe não apenas pegou a organização quase desprevenida, como se deu no meio de seu III Congresso. Por um curto período de tempo, a POLOP ficou desorientada, dependendo de lampejos de improvisação:
No dia 1º de abril, com a situação já caminhando para se definir em favor dos golpistas, uma massa de estudantes se reuniu no restaurante Universitário, no corredor da Vitória, em busca de informações. Alguém da UEB [União de Estudantes da Bahia] distribuiu um panfleto improvisado onde denunciava a ação dos gorilas e conclamava a todos a criar um movimento subterrâneo de resistência ao golpe. A perplexidade com a proposta talvez tenha sido maior do que com a realidade do golpe militar. Foi então que Amílcar Baiardi, da POLOP, subiu numa cadeira e fez um discurso radical. Denunciou o golpe, caracterizando-o como conseqüência da política de conciliação de classes até então vigente, e conclamou enfaticamente aos presentes: Vamos todos para a rodoviária confiscar ônibus e nos dirigir até Feira de Santana para organizar a resistência junto com Chico Pinto! Valeu a intenção. Foi o único orador daquele ato surrealista. Mas, até uma semana depois, colegas ainda me perguntavam quando iríamos para Feira de Santana[14].
Uma primeira autocrítica demorou quase dois anos para ser elaborada e publicada, e apontou problemas fundamentais da organização:
Quando surgimos, com pequenos grupos de estudantes inconformados com a situação política e a esquerda oficial, todas as energias disponíveis e produtivas se dirigiam então para um auto-esclarecimento, à assimilação dos princípios marxistas e a experiência leninista, e a tentativa de aplicá-los à realidade nacional. Desse modo, conseguimos elaborar uma linha política “em tese” que opusemos a reformismo e ao revisionismo reinante. Embora tivéssemos feito mais uma tentativa para um apelo direto às massas por meio da agitação e propaganda, o que perdurou daquela fase foi a penetração, nas esquerdas, nas vanguardas existentes, no movimento de massas, das nossas críticas à política de colaboração de classes e caminho pacífico. Quebramos muitos tabus nacionalistas, atingindo o público por meio de atividade literária, primeiro na imprensa estudantil e, posteriormente, por meio de nossa própria. É verdade que aproveitamos a onda da radicalização provocada pela revolução cubana, cujo desenrolar confirmara as nossas previsões sobre a revolução latino-americana. Mas a experiência de uma revolução não se impõe necessariamente; ela tem de ser interpretada. Nossas posições repercutiram nas áreas mais diversas. A primeira grande discussão no CC do PC teve por base um documento nosso sobre a situação nacional, embora fosse desconhecida sua origem[15]. Dizíamos, naquela época, que “valíamos pelas nossas posições” e na realidade a nossa influência superou muito nossa importância numérica. Se olhamos hoje para trás, comparando as concepções reinantes na esquerda naquele tempo com os debates hoje travados, temos de chegar à conclusão que essa atividade não foi inútil. Atualmente, as nossas diretrizes estão sendo defendidas por dissidências do Partido e aceitas “em tese” ou com “ressalvas” por correntes que naquela ocasião nem teriam dialogado conosco. Toda discussão travada atualmente na esquerda parte de um nível mais alto.
Tivemos de descobrir, todavia, que a eficiência de um mero debate, tem limite, principalmente nas fases de aguçamento das luta de classe. Embora nossos afazeres o seio da esquerda não tivessem sido esgotados inteiramente, chegamos à conclusão que tínhamos de dar o passo decisivo na luta ideológica à política diária. Impunha-se o exemplo vivo de uma atividade revolucionária para causar mudanças na atitude da esquerda. Não foi de um dia para o outro que descobrimos esse “ovo de colombo”. Tratava-se para nós de um problema prático, ligado a questões de quadros, recursos e experiência. Enfrentamos o problema com a transformação da PO num jornal que apelava aos organismos de massa – embora não pudesse ser ainda um jornal de massa.
Se bem que a saída do jornal tenha melhorado sensivelmente a nossa situação para enfrentar o golpe e a clandestinidade, o seu tempo de vida legal era curto demais para dar todos os resultados esperados. Permitiu a penetração em alguns setores e massa dessas novas posições, mas não conseguiu sua consolidação. Ajudou a amadurecer a Organização, mas não chegou a mudar sua composição social.
A derrota de abril e a clandestinidade aumentou automaticamente o peso específico da Organização no cenário político; isso se deve menos à nossa expansão e ao nosso fortalecimento de que à debandada do movimento de massa e da esquerda tradicional. É verdade que do ponto de vista político estávamos melhor preparados para enfrentar os acontecimentos do que os reformistas. Nós não tínhamos tido ilusões democráticas. Para nós o golpe não era “um raio vindo do céu azul”. Tampouco era simples produto de “conjuras maquiavélicas de fora”. Sabíamos que as nossas classes dominantes ansiavam por um regime forte para sair do impasse econômico. Embora ficássemos tão atônitos como os demais (até os próprios golpistas) com a absoluta falta de resistência do regime deposto, a ditadura militar não foi uma surpresa para nós. Agora, entretanto, as tarefas colocadas à Organização têm de ser resolvidas em condições de clandestinidade[16].
Outra autocrítica seria publicada muitos anos depois, em 1974:
Entre os grupos que tentaram então criar condições para tanto [facilitar a transição do reformismo às saídas revolucionárias através da condução política das massas], destaca-se sem dúvida a POLOP. Por um lado, realizou um trabalho sério de formação de quadros, que beneficiou amplamente à maioria das organizações que atuam presentemente [em 1974] no Brasil. Por outro lado, sua elaboração teórica e a luta ideológica que travou contra o reformismo exerceram considerável influência nas concepções da maioria destas organizações, além de haver contribuído com a onda de cisões que o PCB sofreu desde 1967. (…)
Não insistiremos aqui no ultra-esquerdismo da POLOP, que a levou, para retirar do reformismo seu principal ponto de apoio, quer dizer, o conceito de uma burguesia nacional anti-imperialista e antifeudal, a desconhecer os conflitos internos que se estavam produzindo dentro da classe burguesa. Com efeito, se isto impediu muitas vezes à organização de tirar partido da conjuntura política, representou um erro de tática, mais que um erro estratégico. (…)
…a POLOP aceitou a concepção generalizada em toda a esquerda a respeito da forma do processo revolucionário, que privilegiava a cidade em relação ao campo e concebia este processo como uma insurreição de massas dirigida pela classe operária. A aceitação desta concepção influenciou definitivamente a prática da POLOP em dois sentidos. Em primeiro lugar, a impediu de preocupar-se com seu próprio aparato armado. Desde seu ponto de vista, a luta armada foi entendida sempre como um levante das massas urbanas, apoiadas pelas camadas militares inferiores. Não previa a possibilidade de uma luta prolongada, que implicaria necessariamente um aparato militar partidário, capaz de desencadear ações de guerrilhas urbanas e rurais. (…). Em segundo lugar, este posicionamento estratégico levou a POLOP, na medida em que se preocupou somente com penetrar na classe trabalhadora, a centrar sua atuação precisamente no terreno que lhe era mais desfavorável: o proletariado industrial das grandes cidades, onde eram fortes as posições do PCB. A organização facilitou assim sua própria neutralização e não soube tirar partido do que a experiência estava-lhe mostrando, isto é, que progredia mais rapidamente em setores como o campesinato, os estudantes e os trabalhadores não-organizados, subempregados ou desempregados, principalmente quando estes últimos se localizavam fora do eixo mais industrializado do Rio e São Paulo. Somente nas forças armadas, onde a influência do PCB se encontrava em declínio ou era inexistente, a POLOP obteve certo êxito, mesmo que tenha precisado enfrentar a concorrência de Brizola. (…)
Os princípios políticos que não conseguem uma concreção prática acabam por deixar de ser um guia para a ação para converter-se em fatores inibitórios. É porque, ainda que haja colocado corretamente a necessidade de uma frente da esquerda revolucionária, que incluía todas as organizações e tendências à esquerda do PCB, a POLOP somente numa escala limitada contribuiu com sua formação. A escassa força política de que dispunha dificultou a aplicação de sua linha frentista, seja porque reduzia o alcance de sua influência, seja porque produzia na própria organização uma sensação de insegurança. Sem embargo, a principal limitação da POLOP para favorecer a aglutinação da esquerda revolucionária (o que constituía, sem embargo, a única alternativa de enfrentar as manobras golpistas da direita) se deveu principalmente à sua incapacidade de aprofundar seus acertos teóricos e convertê-los numa estratégia global de ação que respondesse às exigências da luta de classes nos níveis político e militar[17].
Em 1967 a POLOP realizou seu IV Congresso. Lançada a palavra de ordem da luta armada guerrilheira e já tendo se envolvido no episódio da “Guerrilha de Copacabana”, a organização colocou-se o problema de desenvolver, em condições de clandestinidade, um programa estratégico de ação. As quatro teses colocadas[18] delinearam quase exatamente as linhas da cisão imediatamente posterior ao congresso:
A POLOP se cindiu em três partes, das quais uma conservou por pouco tempo a antiga sigla até fundir-se com setores rebeldes do PCB, formando o Partido Operário Comunista (POC), que reivindicava a linha da velha organização, embora acentuando seus aspectos obreiristas; outra, a cisão de São Paulo, se fundiria rapidamente com os remanescentes do MNR [Movimento Nacionalista Revolucionário], dando lugar à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), uma das organizações político-militares mais ativas e influentes do período subsequente; e a terceira, a cisão de Minas Gerais, que compreendia além disto elementos do Rio de Janeiro, constituiria o Comando de Libertação Nacional (COLINA), de caráter também político-militar.
O destino da POLOP após o congresso de 1967 é bem conhecido. Da mesma forma, seu impacto sobre a esquerda brasileira foi bastante profundo, como mostra a seguinte anedota:
Pude (…) manter estreita relação com os presos políticos libertados pela ditadura em função do sequestro do embaixador norte-americano, que o México acolheu. Entre eles, estavam Vladimir Palmeira e José Dirceu, líderes do movimento estudantil de 1968, além de Ricardo Villas e Teca. Foi, para mim, excelente ocasião para discutir os problemas da esquerda brasileira – descobrindo, também, que os meus ensaios sobre o Brasil haviam tido no país uma ampla difusão clandestina, inclusive com uma consolidação mimeografada, publicada pela União Metropolitana de Estudantes do Rio, sob o título Perspectivas da situação econômica brasileira, do qual só muitos anos depois me chegou às mãos um exemplar.
Uma pequena anedota revela como eu me tornara conhecido dos jovens militantes de esquerda e, ao mesmo tempo, a visão distante que eles tinham de mim. Ao chegar o grupo ao aeroporto do México, este foi cercado por um forte dispositivo de segurança e não pude trocar mais que algumas palavras com Vladimir, aproveitando para dizer que eu passaria mais tarde no hotel. Quando ele comunicou isso aos seus companheiros, Ricardo Villas, pouco mais que um garoto, caiu dos céus: – “Mas o Ruy Mauro Marini existe, mesmo?” – indagou, incrédulo, ante a inesperada materialização do que não fora, até então, mais do que um rótulo de textos de formação política[19].
A organização deixou uma série de documentos essenciais para compreender o desenvolvimento capitalista brasileiro no início da década de 1960[20], passou pelas cisões já vistas, reorganizou-se em 1970 com o nome Organização de Combate Marxista-Leninista – Política Operária (OCML-PO) e passou todo o restante período da ditadura tentando manter certas estruturas e aparelhos militantes intactos, além de manter contato com seu núcleo no exílio, onde estavam seus militantes mais conhecidos. A OCML-PO participou ativamente do movimento pela fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) entre 1978 e 1980 e incorporou-se a ele enquanto tendência. O PT, entretanto, representava naquele primeiro momento o cumprimento do objetivo primário da própria POLOP: o surgimento de um partido da classe trabalhadora independente e oposto aos partidos burgueses. Parecia não restar outra alternativa à organização além da auto-dissolução, e foi o que aconteceu em 1985[21]. Parte dos exilados retornou à velha organização, já dentro do PT; outra parte – o chamado “Grupo do México” – retornou ao Brasil para fundar com Leonel Brizola o Partido Democrático Trabahista (PDT).
Notas
[1]: MENDES, Eurico. “Luiz Carlos Prestes e seus aliados”. Em SACHS, Eric. Andar com os próprios pés: discutindo uma estratégia de ação para os trabalhadores. Belo Horizonte: Sociedade Editora e Gráfica de Ação Comunitária (SEGRAC), 1994, pp. 64-65.
[2]: “Convocatória para o 1º Congresso da POLOP”. Em SACHS, Eric. Andar com os próprios pés: discutindo uma estratégia de ação para os trabalhadores. Belo Horizonte: Sociedade Editora e Gráfica de Ação Comunitária (SEGRAC), 1994, pp. 75-77.
[3]: SACHS, Eric. “O nome e um programa”. Jornal Política Operária, ano 1, nº 1. jan. 1962. Em: SACHS, Eric. Andar com os próprios pés: discutindo uma estratégia de ação para os trabalhadores. Belo Horizonte: Sociedade Editora e Gráfica de Ação Comunitária (SEGRAC), 1994, pp. 84-87.
[4]: SACHS, Eric. “O leninismo e as divergências sino-soviéticas: restabelecer os ensinamentos de Marx e Lenin”. Em: Qual a herança da Revolução Russa? E outros textos. Belo Horizonte: Sociedade Editora e Gráfica de Ação Comunitária (SEGRAC), 1988, p. 28.
[5]: POLOP. “As esquerdas e as eleições”. Política Operária, nº 3, mai. 1962, p. 2, em OLIVEIRA, Joelma Alves de. POLOP: as origens, a coesão e a cisão de uma organização marxista (1961-1967). Dissertação de mestrado em História. Araraquara: UNESP, 2007, p. 78.
[6]: Ambas as manifestações estão em POLOP. “Frente única – frente de classe”. Política Operária, nº 2, abr. 1962, p. 2, em OLIVEIRA, Joelma, ob. cit. p. 79.
[7]: Depoimento de Vânia Bambirra em OLIVEIRA, Joelma, ob. cit. p. 81.
[8]: Depoimento de Arnaldo Mourthé em OLIVEIRA, Joelma, ob. cit. p. 81.
[9]: Depoimento de Theotônio dos Santos em OLIVEIRA, Joelma, ob. cit. pp. 81-82.
[10]: Depoimento de Luiz Alberto Moniz Bandeira em OLIVEIRA, Joelma, ob. cit. p. 83.
[11]: OLIVEIRA, Joelma, ob. cit. pp. 87-95.
[12]: OLIVEIRA, Joelma, ob. cit. p. 105.
[13]: Resoluções do III Congresso da POLOP. Em OLIVEIRA, Joelma, ob. cit. p. 113.
[14]: MIRANDA, Orlando. “Fragmentos de memória da POLOP na Bahia”. Em: JOSÉ, Emiliano. Galeria F – lembranças do mar cinzento, terceira parte: Victor Meyer, um revolucionário. São Paulo: Caros Amigos, 2008, p. 103.
[15]: Luiz Alberto Moniz Bandeira credita à influência da POLOP o surgimento do Partido Brasileiro Comunista Revolucionário (PCBR) a partir de uma dissidência do PCB. A julgar pelo tratamento pouco elogioso dado à POLOP por Jacob Gorender, ex-integrante do Comitê Central do PCBR, no livro Combate nas trevas (São Paulo: Ática, 1987), não se pode confiar que tal influência tenha acontecido verdadeiramente.
[16]: SACHS, Eric. “Aonde vamos?” Em: Qual a herança da Revolução Russa? E outros escritos. Belo Horizonte: Sociedade Editora e Gráfica de Ação Comunitária (SEGRAC), 1994, pp. 137-138.
[17]: MARINI, Ruy Mauro. “El movimiento revolucionario brasileño”. Em: Subdesarrollo y revolución. 5ª ed. México: Siglo Veintiuno, 1974, pp. 154-169.
[18]: “Programa Socialista para o Brasil” (da “maioria”) obteve 16 votos, “A tendência e o caminho da revolução” (da “Oposição de Minas”) obteve 14 votos, “Libertemos o país do imperialismo” (da “Oposição da Guanabara”) não obteve votos e a “oposição de São Paulo” não apresentou a proposta de programa que prometera levar. SACHS, Eric. “Depois do congresso”. Distribuído em cópias mimeografadas em outubro de 1967.
[19]: MARINI, Ruy Mauro. “Memória”.
[20]: Boa parte destes documentos está publicada no sítio virtual do Centro Victor Meyer, que pode ser acessado clicando aqui.
[21]: MEYER, Victor. “Frágua inovadora: o tormentoso percurso da POLOP”. Em: CENTRO E ESTUDOS VICTOR MEYER. POLOP: uma trajetória de luta pela organização independente da classe operária no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Victor Meyer, 2009, pp. 265-277.
Manolo parabéns pelas produções.
Ainda demora pra conseguir ler tudo, mas agradeço já pela importante contribuição.
Abraço,
Lucas
Recebi recentemente mensagens de Luiz Alberto Moniz Bandeira comunicando-me alguns equívocos pontuais no artigo:
a) Ele nunca foi filiado ao PTB, mas ao PSB, desde os 17 anos.
b) Ele não foi secretário de Sérgio Magalhães, mas seu assessor político, de 1956 até 1964. Além disso, Sérgio Magalhães era seu amigo pessoal, e laços de família também o uniam.
c) Depois da cisão da POLOP em três “linhas”, tanto Moniz Bandeira quanto Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos perderam contato seja com o POC, seja com a OCML-PO, e dedicaram-se no exílio, junto com Leonel Brizola, à reconstrução do PTB. Eric Sachs, que também estava no exílio, era quem mantinha contato com a OCML-PO.
Além dos equívocos, já corrigidos no corpo do artigo, apontou outros fatos relevantes sobre a influência da POLOP na fundação do PCBR. Mário Alves teria sido o dirigente comunista mais influenciado pela POLOP, pois publicou artigos com orientação semelhante à da POLOP ainda antes de romper com o partido. Daí a ver que a POLOP influenciou a formação do PCBR é simples. Mas Jacob Gorender, outro dos dirigentes fundadores do PCBR, segundo a mensagem que recebi de Moniz Bandeira, “nunca deixou de ser stalinista” e “não admitia críticas”, “daí haver deturpado a posição da POLOP com relação do Governo Goulart”.
Por fim, nesta mensagem Moniz Bandeira anuncia que está elaborando algumas notas sobre a POLOP, por estar sendo muito consultado por estudantes sobre o assunto.