Por Passa Palavra

“Meu Deus do céu, se tem uma liminar aí, com que coragem eu posso investir mais?” – desabafa o seu Sebastião. O impasse o impede de dar continuidade à criação de abelhas que mantém em seu lote, conquistado há 7 anos no assentamento Milton Santos. E basta uma breve caminhada pela comunidade para saber que é esta a tormenta que paira sobre as cabeças dos pequenos agricultores que em 23 de dezembro de 2005, após um acordo com o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), se estabeleceram na área do sítio Boa Vista, em Americana.

Seu Sebastião, negro alto, septuagenário, acaba de sair de uma reunião com outros assentados e se prepara para participar de outra, com apoiadores. Antes de entrar na sala da casa que sediaria a conversa, ele lembra do acontecimento como resultado de um processo bastante doloroso, e chega a questionar se toda essa luta por um simples pedaço de terra valeria mesmo a pena. “Reforma Agrária desse jeito é difícil. Era melhor que não existisse” – debate ele com a sua antiga consciência. Naquele fim de tarde, com fala mineira carregada, ele narra os primeiros dias de sua família naquele brejo, fala da dificuldade que foi conseguir um bom pedaço de lona preta para cobrir seu barraco e da necessidade de se trabalhar fora para conseguir o sustento. Suas mãos, já um pouco trêmulas e com dedos pretos e compridos, produzem um outro texto, mais impreciso, impossível de ser relatado em seus detalhes, mas que carrega o mesmo tanto de incerteza.

Blogs, vídeos, impressos e facebook seriam alguns dos assuntos da reunião. Seu Sebastião diz não entender nada daquilo, mas não se importa, quer participar, pois crê que “sempre se aprende um pouquinho”. Acompanha-o o seu neto, igualmente alto, igualmente negro, com seus 15 ou 16 anos; morava na cidade ao lado, Limeira, mas mudou-se recentemente para o Milton Santos para ajudar os avós nessa empreitada de última hora. A reunião vai começar; a chuva também. O Seu Sebastião adentra o recinto e se encosta na parede, prefere não sentar. Avisado de que a prosa poderia se estender, ele aceita o assento.

De início, seu tamanho o deixa um pouco curvado naquela roda, é verdade, mas ele rapidamente se apruma ao tomar a palavra. Num atravessar da pauta previamente combinada, Seu Sebastião junta as palmas das mãos em posição de reza, às vezes tocando o queixo com as pontas dos dedos, e esmiuça seu drama: “Eu gastei tudo o que eu tinha pra construir minha casa. Se eu tiver que sair daqui, eu não sei pra onde é que eu vou. Acho que vou pra debaixo de uma ponte. Onde que eu vou arrumar dinheiro pra fazer uma mudança? Nem isso a gente tem”.

A reunião propriamente dita se inicia, falas se alternam, e Seu Sebastião as escuta atentamente, agora com os braços cruzados sobre a barriga, pernas esticadas, olhos escondidos sob a aba do boné vacilando pelo chão da sala. Alguém comenta que o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) teria entrado com uma ação jurídica, solicitando averiguação mais apurada sobre a questão da propriedade do terreno. Se bem sucedida, a medida poderia reverter o mandato de reintegração de posse, pelo menos temporariamente. Quem sabe haja aí um alento, não mais do que isso.

Como se sabe, o governo federal alega que não pode assinar o decreto de desapropriação pelo fato do terreno constar como de propriedade do INSS. E, no entanto, uma liminar de reintegração de posse a pedido da Usina Ester existe desde julho, está assinada, baseada num contrato de arrendamento que a empresa firmou com a família Abdalla. Ora, se se reconhece que a propriedade é de um órgão do próprio governo federal, como pode haver um mandado de despejo com base no direito de propriedade de um agente privado? A questão é simples, mas tão simples, que chega a encafifar mesmo os mais instruídos. “Então eles governam só para os ricos?” – deixa o homem escapulir uma indagação que talvez fizesse só a si mesmo.

A dona da casa que recebe a reunião serve o café. Seu Sebastião prepara a sua xícara, com bastante açúcar, curvando-se sobre a mesa improvisada no centro da roda; toma-a e volta a se encostar na cadeira com os braços cruzados.

Na avaliação dos reunidos, configura-se um quadro bastante delicado. Por um lado, é possível que, ao se derrubar a presente liminar, o “imbróglio” se estenda por anos e anos; por outro, notificados o Incra e os assentados, dá-se início a uma contagem regressiva. Quais interesses estariam por trás da manutenção desta situação agonizante? Já houve quem dissesse “por que não nos despejam logo?” Nas errâncias de seu Sebastião, uma pista: “Tudo o que nós precisa é garantia, se nós vai ou não vai ficar aqui.” Pois bem, tudo o que não têm, e talvez nunca terão, é garantia de nada; a não ser que a presidente da república assine o decreto de desapropriação por interesse social.

Atravessado pela conversa, Seu Sebastião ergue a cabeça, inclina o corpo para frente e formula ali aquilo que ele diria – cara a cara – para a presidente Dilma, se tivesse oportunidade. Novamente uma pergunta: “Eu comecei a trabalhar desde os 6, 7 anos. Eu estou com 74, trabalhei a vida inteira. Vocês têm coragem de tirar nóis daqui e jogar no meio da rua? Vocês vão ter coragem?”

Fim da reunião, a noite avança e a chuva permanece. Como de costume, as pessoas assumem algumas responsabilidades. Seu Sebastião não poderá ajudar com o site nem com os vídeos, ao menos por enquanto. Mas, com a companhia de alguém, compromete-se a bater de porta em porta da comunidade e a conversar com as pessoas. O sujeito, firmando-se nos joelhos para se levantar, escolhe o rosto de um dos participantes da reunião para mirar e dizer: “Eu nunca arrumei briga com ninguém, nunca dei trabalho. Mas agora eu vou dar, eu não vou sair da minha casa”.

Resolvido, agradeceu a oportunidade de ter aprendido mais um pouquinho, levantou-se, juntou-se ao neto e caminhou lentamente em direção à porta.

Enquanto este artigo era escrito, confirmava-se a notícia de que Incra já havia recebido a notificação da liminar na quarta-feira, dia 09. A partir de então, passou-se a contar o prazo de 15 dias para que as famílias deixem o local.

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Acompanhe e participe das atividades de apoio lendo aqui.

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Para saber mais sobre o caso, leia:

A política do “bate-assopra”: despejos, violência e retirada de direitos. Milton Santos Resiste!

Assentamento Milton Santos: ocupação da Secretaria da Presidência

Carta aberta aos apoiadores do assentamento Milton Santos

Assentamento Milton Santos realiza bloqueio da rodovia Anhanguera

4 COMENTÁRIOS

  1. EU IZABEL CRISTINA SILVA, FILHA DE SEBASTIÃO SANTOS SILVA, venho neste espaço comentar , que a narração feita é veridica que justiça seja feita este é meu heroi! no texto diz ele diria cara cara para nossa presidenta Dilma eu tambem diria e se tiver oportunidade direi ainda!

  2. Eu izabel cristina silva, venho por meio deste espaço comentar. q a narração feita é veridica que justiça seja feita este é meu herói! todo mundo tem pai eu tenho um herói, notexto ele diz diria cara cara com a nossa presidenta Dilma, eu tbm diria e se tiver oportunidade digo ainda ele não pode sofrer as consequencias por causa da irresponsabilidade desses organizadores, e o que plantou e a casa q ja construiu ?

  3. A president@ (sic!) é um pseudoente ou pseudoent@ institucional ocupadíssim*, como se sabe…

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