Por Passa Palavra

1.

Foi em boa hora que as Edições Antipáticas lançaram o sugestivo documento Sobre a passagem de alguns milhares de pessoas por um breve período de tempo. Neste escrito encontra-se uma descrição minuciosa e articulada das lutas sociais ocorridas em Portugal nos últimos anos. Mas não se trata aqui de uma abordagem impressionista. Pelo contrário, esta reflexão denota o mergulho de activistas anticapitalistas nos próprios acontecimentos. Nesse sentido, Sobre a passagem de alguns milhares… merece a leitura atenta e o debate de todos quantos se inserem na esquerda anticapitalista.

Da nossa parte mais não faremos do que abordar os aspectos mais relevantes deste escrito, bem como procuraremos identificar alguns pontos que vale a pena debater com maior detalhe. São mais os pontos de contacto do que as diferenças. No que toca ao debate sobre o desenvolvimento das lutas sociais, é oportuno desenvolver os pontos onde se desenrolam as actuais encruzilhadas políticas e sociais. Nesse sentido, se a base de partilha de perspectivas é suficientemente sólida, o debate de outros aspectos só pode e deve ser entendido como um prolongamento necessário da discussão política fraterna para as lutas que se avizinham.

2.

Não vamos descrever todos os pontos do panfleto das Edições Antipáticas. Em termos de avanço das lutas sociais em Portugal destaca-se, em primeiro lugar, a relevância dada à articulação entre grupos libertários, moradores de bairros sociais da periferia de Lisboa e estivadores. Se a heterogeneidade cultural e laboral da classe trabalhadora é um facto no período toyotista, é muito relevante que existam colectivos anticapitalistas interessados em articular diferentes segmentos da classe trabalhadora num movimento comum contra a austeridade. E quando essa perspectiva se conjuga numa dinâmica de base e sem o recurso à parafernália e à logística das burocracias dos sindicatos e de vários movimentos, melhor ainda.

Por conseguinte, os eixos situados em torno dos objectivos de articulação de vários sectores dispersos da classe trabalhadora e em torno da dinamização desses mesmos sectores a partir de uma luta de base antiburocrática são talvez o dado politicamente mais importante no cenário das lutas sociais em Portugal. Só pelo desenvolvimento destes dois eixos poderá existir alguma possibilidade de ruptura com as políticas de austeridade. De outra forma, toda a luta de rua encabeçada pelos sindicatos da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) e por alguns outros movimentos só poderá desaguar na criação de uma base eleitoral para os partidos de esquerda. E com a transformação da luta de rua num trampolim para a ascensão política de organizações parlamentares e burocráticas, quem perderá serão os trabalhadores e não os capitalistas.

3.

As tentativas de controlo das manifestações de rua (12 de Março de 2011; 15 de Setembro de 2012; 2 de Março de 2013) são evidentes e já em Setembro do ano passado o Passa Palavra publicou um artigo sobre o assunto.

A evolução do movimento “Que se lixe a troika” nas duas últimas manifestações demonstra que os perigos de hetero-organização das lutas sociais existem ao virar de cada esquina. A perspectiva de fechamento e de controlo das decisões relativas às formas e ao calendário das lutas e a perspectiva cada vez mais nítida de tentar canalizar o protesto das ruas para a criação de um governo de esquerda constituem dois exemplos de como as lutas sociais dos trabalhadores comportam sempre uma conflitualidade entre os princípios da auto-organização e da hetero-organização. Conhecendo o historial, as práticas e os agentes das organizações que ambicionam participar num governo de esquerda, só resta concluir que as possibilidades de desenvolvimento das lutas autónomas se verão diminuídas. Apesar do diferente contexto, o caso brasileiro da última década demonstra à exaustão como «as classes dominantes apoiam-se em bases mais sólidas quando dispõem de governos ocupados ou hegemonizados por partidos políticos oriundos de esquerda. Se estes partidos mantiverem ramificações no interior da classe trabalhadora, torna-se muito mais fácil executar as medidas exigidas pelo desenvolvimento do capitalismo» (leia aqui).

Neste aspecto, o posicionamento expresso no panfleto Sobre a passagem de alguns milhares… é claro o suficiente para rejeitar as dinâmicas de hetero-organização que chefes e candidatos a chefes buscam introduzir nas lutas sociais. Como é igualmente expresso no escrito das Edições Antipáticas, as dinâmicas tendentes a libertar energias e práticas de auto-organização cresceram nos últimos anos. Do nosso ponto de vista, elas ainda são quantitativa e qualitativamente inferiores às registadas pelas dinâmicas de hetero-organização. A existência de um sector activista relativamente alargado que busca desenvolver lutas autónomas nas ruas já é positivo em si mesmo. Ele é também sintoma de que eventuais desenvolvimentos autónomos das lutas podem surgir com o decurso dos processos de contestação. Mas será isso suficiente?

4.

Não obstante estes aspectos, importa referir que o desenvolvimento autónomo das lutas só prosseguirá se se verificarem pelo menos mais duas condições imprescindíveis. Em primeiro lugar, tem de ser constante a crítica às organizações e às práticas que, vindas de onde vierem, tenderão a conduzir as lutas para a colocação de novos gestores no aparelho de Estado. Com todos os efeitos que isso comporta para o amarrar das mobilizações de trabalhadores à política estatal. Em segundo lugar, como desenvolveremos no ponto 5, a autonomia das lutas sociais só pode expandir-se se a classe trabalhadora conseguir introduzir focos de contestação a partir dos locais de trabalho e dentro deles.

Antes de abordarmos este segundo ponto com maior detalhe, foquemo-nos no primeiro. Assim sendo, a crítica à CGTP (e a todas as organizações burocráticas) não se pode cingir ao seu objectivo de hetero-organização das lutas, não obstante este ser um aspecto com que nós concordamos a 100%. A crítica às organizações burocráticas será tanto mais frutífera quanto for capaz de se complementar com a crítica ao nacionalismo e à capacidade de o Partido Comunista Português (PCP) e a CGTP influenciarem umas poucas centenas de milhares de trabalhadores. É nossa convicção que uma coisa não faz sentido sem a outra. De facto, como todas as organizações burocráticas, o PCP não quer apenas desorganizar as lutas. Em termos de actuação nas lutas sociais, o seu propósito é o de que as manifestações de rua se conformem ao modelo de uma massa compacta de indivíduos atomizados. Assim sendo, este tipo de desorganização das lutas de rua não é um fim em si mesmo, mas busca fornecer respaldo popular e de rua ao seu projecto de um capitalismo de Estado.

Nesse aspecto, importa destacar muito sumariamente dois itens. O primeiro vincula-se com o facto de o PCP continuar totalmente apegado ao saudosismo das experiências de desorganização e de repressão da classe trabalhadora a partir da intervenção do aparelho de Estado (URSS, Cuba, etc.). Nesse sentido, o programa que o PCP propõe não rompe em nada com os modelos repressivos e burocráticos do passado. Derivado do anterior, mas projectado na actual conjuntura europeia, o segundo item relaciona-se com o propósito do PCP (e de várias personalidades que seguem no mesmo pelotão) de atirar os trabalhadores que vivem em Portugal para uma solução nacionalista, isolacionista e que em nada travaria a austeridade. Pelo contrário, iria agravá-la muitíssimo e transportaria perigos políticos e humanos inultrapassáveis por décadas (leia aqui, aqui, aqui, aqui e aqui).

Verdade seja dita que esta dinâmica desorganizadora das lutas dos trabalhadores não é exclusiva do PCP. Aqui referimo-nos sobretudo ao PCP na medida em que é a maior força eleitoral e social da esquerda. E porque, em termos organizativos e políticos, o PCP é tomado como modelo por grande parte da esquerda. A competição mais ou menos consciente, e eventualmente mais desejada do que real, pelo controlo das lutas não é sinónimo de oposição aos princípios de burocratização dessas lutas. De facto, os princípios estruturais de tentativa de desarticulação das lutas sociais e a condução das lutas para projectos de revigoramento de novas hierarquias sobre os trabalhadores aplicam-se quase ponto por ponto a praticamente todas as organizações, movimentos e partidos da esquerda portuguesa (BE, MRPP, MAS, Rubra, MSE, 15O, QSLT, PI, etc.). A crítica que todos eles fazem ao PCP é a mesma que as pequenas empresas fazem aos oligopólios: serem grandes demais…

Somando as cerca de duas centenas de milhares de pessoas que o PCP e a CGTP conseguiram mobilizar nas suas manifestações de rua mais bem-sucedidas, com as tentativas de controlo das lutas de rua por boa parte dos restantes movimentos aquando das manifestações de 15 de Setembro e de 2 de Março, temos um cenário potencialmente perigoso para o avanço de lutas autónomas dos trabalhadores. Só da crítica das práticas de hetero-organização, das organizações que as desenvolvem e das potencialidades e dos riscos políticos inscritos nos seus projectos, poderá a luta do conjunto de todos os trabalhadores avançar.

5.

Mas não basta a crítica política à esquerda burocrática e/ou parlamentar. Importa também compreendermos todos que se a rua é um importante espaço de lutas, ele está longe de ser o único e até o principal. Nesse capítulo, discutir as virtudes da rua (que as tem, na medida em que articula, numa fase inicial, sectores dispersos como os estivadores, os desempregados, etc.), mas sem discutir a ausência de lutas nos locais de trabalho é, do nosso ponto de vista, insuficiente. É verdade que todas as esferas são dominadas pelos capitalistas e que os ócios se tornaram espaços de preparação e de formação para o trabalho. Todavia, as relações de trabalho que estruturam a exploração económica não se desenrolam no espaço público, mas dentro das empresas.

É bom lembrar que, apesar de algumas nuances, todas as ondas revolucionárias do passado despoletadas pela acção espontânea dos trabalhadores colocaram como objectivo a crítica da produção capitalista. Isto é, ou o monopólio das funções de gestão e de direcção do processo de trabalho por parte dos proprietários e dos gestores é de alguma forma colocado em causa pelos trabalhadores, ou os limites estruturais de uma dada mobilização terão de ser tomados em linha de conta.

Salientamos portanto que:

a) Neste aspecto a circunscrição das actuais lutas à rua pode ser interpretada como um sinal das enormes dificuldades com que os trabalhadores se têm defrontado noutros espaços. No quadro da reorganização toyotista da produção, com a sofisticação da repressão e da vigilância das empresas numa escala realmente global, com a segmentação transnacional das cadeias produtivas e com a precariedade laboral associada, as lutas da classe trabalhadora têm tido condicionalismos de monta para se desenvolverem dentro dos locais de trabalho.

b) Não se trata de atribuir qualquer carácter negativo às lutas na rua, bem pelo contrário. Trata-se, isso sim, de chamar a atenção para o facto de que, numa hipotética situação-limite, as ruas até poderiam ser tomadas pelos trabalhadores. Mas se uma determinada mobilização não for capaz de parar ou sequer beliscar a produção capitalista, então como poderá o capitalismo ser superado?

Para se desenvolverem na actualidade as lutas autónomas enfrentam, sem dúvida, muitos obstáculos, que se expressam em dois grandes planos; no plano externo, a organização transnacional da produção capitalista face à fragmentação nacional das lutas sociais; no plano interno à própria classe trabalhadora e à esquerda que se considera anticapitalista, os ímpetos de controlo e de desorganização das lutas dos trabalhadores a partir de organizações burocráticas de variado tipo.

Mas, se os obstáculos são colossais, o potencial de luta existente também o é. As respostas das lutas anticapitalistas sempre se deslocaram no sentido de tentar superar as dificuldades que a malha institucional do capitalismo vai colocando às possibilidades de auto-organização dos trabalhadores. Não sabemos como será a próxima resposta dos trabalhadores. Sabemos, contudo, que no confronto entre os princípios antagónicos de organização da sociedade expressos por trabalhadores e capitalistas, a espiral de conflitos tem-se concretizado numa subida da parada. Venha ela!

2 COMENTÁRIOS

  1. um breve elogio às edições antipáticas…

    daqui do brasil, eu e o pequeno grupo de amigos com os quais compartilho meus anseios, já aproveitamos muito das construções dos antipáticos. achei que vocês tinham dado um tempo, mas pelo visto isso foi para que coisas melhores surgissem. irei conferir o folheto para poder debater melhor com o texto do passapalavra.

    apesar da difícil articulação, é sempre bom ver aquilo com o que nos identificamos. se uma revolução se espalha com ressonância, saibam que por aqui algo ressoa.

    abraços!

  2. Texto interessante por chamar a atenção para a produção. Só não compartilho o viés empirio-contemplativo. O modo como as questões são colocadas é uma força material, uma abertura para o futuro que potencializa a praxis em algum sentido (qualquer que seja, inclusive o do árduo trabalho de manter e acumular o status quo, lamentavelmente).

    Os conflitos autônomos nas esferas da moradia, consumo, espaço público, produção, por exemplo, são lutas fadadas “empiricamente” à derrota (burocratização, exaustão, empresarização, repressão etc, ainda mais nesse contexto de crise mundial). Seria diferente, por exemplo, considerar esses conflitos atuais num contexto “futuro”, como o de uma greve geral na produção que não interrompesse a produção mas, ao invés, produzisse livrevemente (gratuitamente), libertando as forças produtivas para associção humana livre, onde não há mais empregados nem desempregados. As esferas da moradia, consumo, espaço público, produção, assumem outro potencial quando as questões são colocadas ao modo do que Marx chamava de “materialismo prático”.

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