Por Asad Haider e Salar Mohandesi

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Por outro lado, apesar de que privilegiar a forma narrativa possa ter amplificado o poder da enquete operária como um meio de autoatividade, isso teve o potencial de minar outro aspecto daquele projeto, o que Marx chamou de aquisição de “um conhecimento exato e positivo das condições” da classe trabalhadora. A abertura da forma narrativa exagera uma tendência de escorregar de uma generalização ponderada para uma generalização excessiva e insustentável. Por tentar unir sua subjetividade com aquela dos operários como um todo, Singer acaba tentando se legitimar como um porta-voz legítimo para todos os trabalhadores de sua fábrica: “Seus sentimentos, ansiedades, alegria, tédio, exaustão, raiva, foram meus de uma forma ou de outra”.[1] Mas como o texto procede, Singer calmamente passa de “seus sentimentos são os meus” para “meus sentimentos são os deles”, levando o leitor a acreditar que as experiências pessoais de Singer, seus desejos e opiniões, são realmente os dos próprios operários da GM [General Motors] – se não os da classe trabalhadora americana inteira. Suas experiências, ou aquelas de alguns trabalhadores do seu chão de fábrica em particular, são apresentadas como as experiências de todos os trabalhadores em qualquer parte.

Experiências cotidianas alegadamente comuns são então generalizadas para atitudes políticas universais: “Os trabalhadores sentem que as greves meramente por salários não os levam a lugar algum”.[2] Este é um problema compartilhado por todos os relatos narrativos, já que todos eles replicam o modelo de Singer. Em A Woman’s Place, por exemplo, Selma James escreveu “As coautoras deste livro tinham visto isto em suas próprias vidas e nas vidas das mulheres que conhecem. Elas escreveram isto como um começo da expressão do que a mulher média sente, pensa e vive”. Alguém primeiro considera se há alguma coisa como uma “mulher média”, livre das dimensões complicadas da região, classe, raça, sexualidade, etc; mas até se essa preocupação for posta de lado, alguém ainda poderá perguntar se as experiências únicas e próprias de James são o suficiente para acessar “a média”. De fato, James introduz outra inovação que estende o alcance de suas generalizações. Sua enquete começa na terceira pessoa, mas depois de apenas algumas páginas muda abruptamente para a segunda pessoa. O padrão rapidamente se repete: “Tudo que uma dona de casa faz, ela faz sozinha. Todo o trabalho na casa é para você fazer por si mesma”.[3]

Este tipo de homogeneização se apoia, e de fato é apoiada, por uma descontextualização da experiência. Quase todas estas enquetes, com a pequena exceção de Indignant Heart, esforçam-se em desassociar suas narrativas de um lugar específico. Não há nada em The American Worker revelando onde Singer realmente trabalha; a mesma coisa se passa com A Woman’s Place.[4] Se um dos objetivos primários da enquete operária é estudar rigorosamente as condições de exploração em pontos específicos da produção, produzir um conhecimento exato e positivo da classe trabalhadora, ela tem que especificar os limites de sua investigação. Embora as fábricas na América pós-guerra pudessem ter pontos em comum, elas eram radicalmente diferentes, cada uma com suas condições distintas de produção, relações de poder e demografia.

Um problema intimamente relacionado é a modificação deliberada de informação, de uma forma que frequentemente altera o significado dos relatos. Um exemplo imediato resulta do uso de pseudônimos. Quase todos na tendência Johnson-Forest tinham um, e a maioria vários; na verdade, tinham tantos nomes falsos em circulação que Boggs relembra que haviam momentos em que nem eles mesmos sabiam quem era quem.[5] Isso era parcialmente remanescente das práticas trotskistas, mas mais seriamente uma medida contra o macarthismo; em um momento, o Correspondence tinha até 75 infiltrados e CLR James seria depois deportado por conta de suas atividades com o grupo.[6]

Mas apesar das justificativas para a prática de assumir pseudônimos, eles providenciaram uma cobertura para ambiguidade autoral. A Woman’s Place foi assinado por duas mulheres, ambas sob pseudônimos, mas na verdade foi escrito apenas por Selma James. Como James depois relembrou, ela escreveu o livro anotando ideias em pedaços de papel, depois jogando-os em uma fenda na tampa de uma caixa de sapato. Ela depois se sentou e juntou as ideias em um rascunho. Depois dela compartilhar o rascunho com o grupo e seus vizinhos, e de fazer algumas revisões, CLR James disse a ela para incluir a assinatura de Filomena D’Addario para que depois ela pudesse falar com seu público com alguma legitimidade. [7] Acontece que uma obra que declara ter sido escrita por duas mulheres, e que de fato tenta convencer seus leitores de que foi construída com as experiências de duas mulheres diferentes, foi na verdade escrita por uma.

Mas o problema mais sério está em Indignant Heart. De todos os relatos, este é o único que dá detalhes precisos sobre lugares e também, num primeiro olhar, parece quebrar com o modelo desenvolvido por Singer. Na verdade, porém, apesar do livro ser bastante preciso a respeito da vida posterior de Owen no norte, ele deliberadamente distorce seu lugar de nascimento, colocando sua infância no sudeste do Tennessee ao invés de Lowndes County, Alabama. Na reedição de 1978, que incluiu uma segunda parte partindo de onde o original de 1952 tinha parado, Owens justificou isto lembrando os seus leitores da “viciosa caça às bruxas macarthista”, adicionando que “poucos que não passaram por aquela experiência de repressão nacional de ideias podem entender completamente a natureza verdadeiramente totalitária do macarthismo e o terror que produziu”.[8] Menos convincente, contudo, é sua afirmação de que estas mudanças “não tiram nada da verdade das experiências descritas” e que o que escreveu sobre seus primeiros anos “pode ser a verdade de quase todos os negros” morando no sul dos Estados Unidos.[9]

Em outras palavras, a reescrita dos fatos é racionalizada pela suposição de uma experiência universal e homogênea. Mas Alabama não é Tennessee e tal movimento drástico compromete o caráter científico da obra; ela se torna mais ficção histórica e menos uma enquete concreta acerca de condições específicas de exploração. Uma enquete a respeito do mundo da classe trabalhadora ameaça se degenerar em um tipo de diário de viagem; a investigação militante próxima, meticulosa, tende a ser substituída com estórias de entretenimento sobre o mistério, exotismo e estranhamento de um mundo desconhecido.

Talvez até mais preocupante, Si Owens na verdade não escreveu Indignant Heart. Constance Webb, outro membro do grupo e antiga namorada de James, escreveu. Correspondence defendeu uma prática que Dunayevskaya depois chamou método da “caneta-tinteiro carregada” – apesar de ser talvez mais conhecido como amanuense. Intelectuais se juntariam com trabalhadores que talvez se sentiriam desconfortáveis em escrever suas experiências; eles escutariam enquanto os trabalhadores contavam suas histórias, escreveriam em seus nomes e então pediriam aos trabalhadores para revisar os documentos escritos como acharem melhor. Foi Webb, então, quem registrou a história, fez revisões, editou os rascunhos e uniu tudo isto em um todo coerente.[10] Era, de muitas maneiras, um livro dela.

Mas a liderança, neste caso principalmente Dunayevskaya e não os autores, decidia como o livro deveria aparecer. Dunayevskaya insistiu que ele se chamasse Indignant Heart, conforme uma citação de Wendell Phillips, sob os protestos de ambos, Owens e Webb; e, ainda mais grave, ela decidiu publicar ele todo sob o único nome de Matthew Ward.[11] De uma maneira estranha, Correspondence tinha deliberadamente ocultado suas condições de produção, fazendo parecer como se um único autor tivesse escrito o livro sozinho, o que estava longe da verdade. Mas um dos objetivos principais das enquetes do Correspondence tinha sido reconciliar honestamente as tensões entre intelectuais e trabalhadores. Por que hesitar em admitir que Indignant Heart tinha sido, no seu cerne, um trabalho de colaboração? Por que ir tão longe para fazer o texto parecer como um exemplo de experiência proletária pura, ao invés de uma produção mediada?

Por fim, todas essas enquetes imbricaram o descritivo com o prescritivo. Elas delinearam conclusões limitadas baseadas na análise do fenômeno observável enquanto simultaneamente declaravam manifestos sobre como a realidade deveria ser. A direção primeiro foi definida por Singer, que concluiu a primeira parte do The American Worker anunciando que a frustração dos trabalhadores com o sistema de incentivos equivalia a “dizer não menos que as relações de produção existentes devem ser derrubadas”.[12] Da mesma maneira James acaba sua própria enquete “Mulheres estão descobrindo cada vez mais e mais que não há outra saída senão a mudança completa. Mas uma coisa já está clara. As coisas não podem seguir da maneira que estão. Toda mulher sabe disso”.[13] Certamente nem todas as mulheres realmente pensavam isto em 1953. E certamente James sabia disto, assim como Singer estava bem consciente de que a maioria dos trabalhadores não queria derrubar as relações de produção existentes. Essas declarações só podem ser realmente entendidas como performáticas – não descrições de situações existentes, mas movimentos declarativos buscando transformar o que o texto já tinha descrito. Para uma tradição que se baseou na elevação da consciência, estas afirmações sobre a consciência dos trabalhadores, propagadas a esses próprios trabalhadores, procuraram tornar-se profecias autorrealizáveis.

Apesar de todas as quatro enquetes certamente se dedicarem à análise científica, comentando sobre novas formas de produção, exploração e resistência, essas observações apenas parecem servir como o contexto literário para uma narrativa em desenvolvimento, em vez de servir como observações incisivas sobre um ponto particular da produção. Todas as tensões exploradas acima trabalham para diminuir seriamente o valor da pesquisa específica desses textos. Mas é importante reconhecer que eles apenas se tornam problemas se alguém continuar a priorizar a função de pesquisa da enquete operária. Se, contudo, o objetivo é construir consciência de classe, então as distorções da forma narrativa não são um problema em absoluto. Elas talvez sejam muito necessárias. Com essas narrativas a tensão na enquete operária de Marx – entre uma ferramenta de pesquisa por um lado e uma forma de agitação no outro – é em grande parte resolvida pela subordinação da primeira forma à segunda, transformando a enquete em um meio para o objetivo de construção de consciência.

Referências

[1] Romano and Stone, The American Worker, 1.
[2] Romano and Stone, The American Worker, 12.
[3] Selma James, “A Woman’s Place” em The Power of Women and the Subversion of the Community (London: Falling Wall Press, 1972), 58, 64.
[4] Isso está apenas no prefácio ao panfleto por Martin Glaberman, em 1972, que revela finalmente que Phil Singer trabalhou na fábrica da General Motors em New Jersey.
[5] Citado de Rachel Peterson, “Correspondence: Journalism, Anticommunism, and Marxism in 1950s Detroit,” em Anticommunism and the African American Freedom Movement: “Another side of the Story,” ed. Robbie Lieberman e Clarence Lang (New York: Palgrave Macmillan, 2009), 146. Como se para confirmar dramaticamente isso, o próprio pseudônimo de Boggs, Ria Stone, é frequentemente confundido com Raya Dunayevskaya.
[6] Peterson, “Correspondence,” 146.
[7] Selma James, Sex, Race, and Class – The Perspective of Winning: A Selection of Writings, 1952-2011 (Oakland: PM Press, 2012), 13-14; Frank Rosengarten, Urbane Revolutionary: CLR. James and the Struggle for a New Society (Mississippi: University of Mississippi Press, 2008), 89.
[8] Charles Denby [Si Owens], Indignant Heart: A Black Workers’ Journal (Detroit: Wayne State University Press, 1978), xi. Essa edição foi atribuída a Charles Denby, o pseudônimo mais comum de Owen e que ele usou na maior parte dos seus artigos no Correspondence. Também é significante que Owens ainda escrevia sob um pseudônimo em 1978, mesmo depois do macarthismo já ter claramente terminado.
[9] Denby, Indignant Heart, xi.
[10] Peterson, “Correspondence,” 123.
[11] Constance Webb, Not Without Love: Memoirs (Lebanon, NH: University Press of New England, 2003), 266.
[12] Romano and Stone, The American Worker.
[13] James, “A Woman’s Place,” 79.

Este artigo foi traduzido e dividido em nove partes pelo coletivo Passa Palavra. A versão original está em Viewpoint Magazine.

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