Por um grupo de militantes

O texto abaixo foi escrito entre maio e outubro de 2019, no formato de carta, para discussão entre grupos militantes em diferentes regiões. Inicialmente não tínhamos a intenção de publicá-lo: ao escrever, queríamos sistematizar reflexões acumuladas e tentar esboçar novos problemas — para, no futuro, amadurecer um texto público. Mas, acompanhando os debates suscitados pela recente tradução ao português do texto Enquete operária: uma genealogia no Passa Palavra [1], pensamos que estas notas podem contribuir para pensar o papel da investigação na prática militante. A seguir, damos à carta uma forma pública, tentando manter o conteúdo da discussão mais ou menos como estava. Quando escrevemos, sequer podíamos imaginar a pandemia do novo coronavírus e suas consequências devastadoras para o mundo do trabalho. Mas hoje, inevitavelmente, estas linhas serão (re)lidas pela lentes do novo cenário, cujos desfechos ainda não são claros.

* * *

Será que não existem hoje no Brasil conflitos sociais
significativos ou será que permanecem invisíveis? E não será
essa invisibilidade uma condição para se protegerem dos
ataques dos patrões e da vigilância dos órgãos repressivos?

João Bernardo, outubro de 2018 [2]

Camaradas,

Faz tempo que conversamos e transitamos entre nossas regiões compartilhando debates, tentando conectar mobilizações e nos apoiando mutuamente. Estivemos metidos em multidões nas grandes avenidas das cidades, arranjamos tretas em terminais de ônibus, bairros de periferia, ocupações, escolas e, mais recentemente, dentro das empresas. Ao longo desses anos, usamos vários nomes, que vieram e foram conforme as lutas. Hoje, acompanhamos com interesse o processo que vocês têm chamado de “Invisíveis”. Sob esse nome, enxergamos uma proposta que parece caminhar no mesmo sentido de práticas que também temos tentado desenvolver no mundo do trabalho por aqui. Por isso, escrevemos tentando formular melhor essas práticas. Não pelo nome — o nome é bom, mas é só uma deixa —, mas como forma de debatermos e construirmos juntos uma ​posição diante do presente. Talvez uma organização deva consistir, antes de mais nada, justamente nisso: ​um ponto de vista comum, um conjunto de questões, uma forma de agir [3].

Até onde sabemos, a origem do nome “Invisíveis” remete ao contexto em que os companheiros começaram a se organizar. Surgiu da constatação de que, em uma série de ambientes de trabalho, os chamados trabalhadores-meio (limpeza e segurança terceirizada, entre outros) ficam invisibilizados. Depois, a iniciativa parece ter extrapolado esse contexto inicial, afinal os camaradas se envolveram nos bloqueios de caminhoneiros, greves de professores, protestos de estudantes e bolsistas, reivindicações de garçons etc. Podemos assumir, então, que o objetivo não é propriamente “dar visibilidade” a um trabalhador que não é notado… até porque pouco importa se tornar visível mas continuar sendo explorado.

Encarado de outra perspectiva, o nome “Invisíveis” tem a ver com a própria forma de organização que temos tentado desenvolver: um movimento baseado nos vínculos cotidianos entre os trabalhadores, por fora da estrutura sindical oficial ou aparatos semelhantes. Essa “rede de solidariedade” [4], aos olhos dos patrões, ganha ares de conspiração e precisa necessariamente ser invisível.

A posição de recusa da integração ao aparato oficial não é completamente arbitrária — quer dizer, não podemos entendê-la simplesmente como uma escolha ideológica, mas como uma condição à luta imposta pelo nosso momento histórico. É verdade que o sindicalismo de Estado já representava, no limite, um entrave para o avanço das lutas; mas hoje são os próprios capitalistas que parecem descartá-lo. Com as transformações na estrutura produtiva, as mudanças nas formas de contratação e as reformas na legislação trabalhista, os sindicatos caminham para se converterem em um peso morto sobre os trabalhadores.

Porém, ao recusar formatar os conflitos do trabalho no ​script ​do sindicalismo oficial, ficamos sem roteiros prontos para atuar. Afinal, ao menos desde os anos 1980, a militância de esquerda desenvolveu um procedimento padrão para atuar no mundo do trabalho: reunir trabalhadores em torno de um grupo de oposição, inscrever uma chapa e disputar eleições, para enfim gerir o sindicato — ​administrar a base conquistada. Se não assim, como fazer? Ficam em aberto quais formas de organização essa “rede de solidariedade invisível” assumirá na prática. Por outro lado, parece-nos que existe, sim, um método para elaborar esses caminhos: é preciso trazer ao centro a dimensão de ​investigação ​que está presente em toda ação militante.

“Enquete operária”

Não existe prática política que não envolva investigação, mas essa dimensão muitas vezes fica menosprezada. Quando qualquer militante tenta se inserir em qualquer categoria, ele precisa tentar entender como é o processo de trabalho, quem faz o quê, onde estão as brechas e os conflitos, em quem confiar… Ou seja, ele precisa investigar o ambiente, permanentemente. No entanto, de modo geral, o informe que a organização política espera receber geralmente despreza essa dimensão da experiência: o que se quer saber do militante é quantas pessoas ele aproximou, como está a formação de um grupo, a possibilidade de formar uma chapa etc.

Propomos trazer a investigação para o centro da preocupação política, pois, à medida que naufragaram as respostas prontas para a velha pergunta sobre ​o que fazer, ​a análise do processo de trabalho é um caminho para escapar de uma prática irrefletida. Tal postura nos leva a reconsiderar tarefas que soariam óbvias. O “trabalho de base”, focado em uma “categoria” estrita, perde o sentido conforme se percebe, por exemplo, que a maioria dos colegas de trabalho são terceirizados. E o próprio campo de trabalhadores com os quais se considera a possibilidade de organização pode se ampliar imensamente quando se está, por exemplo, empregado no setor de serviços básicos e se olha para a massa de usuários que é diariamente colocada em confronto com os funcionários.

Para muitas organizações de esquerda, o futuro é um programa acabado. Isso dispensa uma análise da realidade. A ideia de “enquete operária” foi retomada por uma parte da militância italiana na década de 1960 [5] a partir da constatação da ausência de qualquer receituário pronto: se do outro lado do Muro de Berlim prosperava um capitalismo de Estado, no qual tinha desembocado a mais importante revolução do século, nada estava resolvido. Era preciso buscar a perspectiva de transformação em outro lugar — precisamente no cotidiano e nas lutas dos trabalhadores. O local de trabalho, muito mais do que um espaço para a aplicação de fórmulas previamente elaboradas, passava a ser encarado como um espaço de criação de formas de organização.

É nas disputas cotidianas do processo de trabalho que a classe trabalhadora toma forma. Assim como o futuro, ela não está dada: não é uma identidade fixa e a-histórica, mas se transforma junto com as forças produtivas do capital. Desde a chamada reestruturação produtiva, o proletariado é uma incógnita. Se ao longo do período fordista ele ocupou um lugar cada vez mais claro na cena política — um papel associado por aqueles militantes italianos a uma composição histórica específica da classe trabalhadora (que encontrava sua representação em sindicatos, partidos etc.) —, suas aparições recentes são esquivas, confusas. A tarefa de qualquer organização proletária passa, assim, por investigar e tomar parte nas formas político-econômicas que a classe trabalhadora tende a assumir hoje ou, em outras palavras, na sua ​recomposição. A defesa da “enquete operária” recupera um nome antigo para essa prática — mas, num tempo em que a exploração há muito extrapolou os muros da fábrica, consumindo cada segundo da vida, e em que controle é um dos maiores produtos de qualquer trabalho, não seria mais adequado ter em vista uma “enquete anti-operária”? [6]

Registrar e, sempre que possível, publicar essas investigações sobre o processo de trabalho é condição para recompor uma memória com a qual outros trabalhadores possam se identificar, e a partir da qual se possa refletir criticamente sobre a prática. É isso que fazem textos como Reflexões de um trabalhador da CPTM [7] e ​Minutos de luta entre horas de silêncio: experiências de luta em uma biblioteca [8]; mas também boletins como ​A Voz Rouca [9]; ou ainda, a entrevista Pacto de Mediocridade: a guerra subterrânea dos trabalhadores da Livraria Cultura​, cuja enorme circulação fez aparecerem novos relatos sobre o trabalho no varejo [10].

Contudo, hoje parece ser preciso encampar a investigação para além do local de trabalho estrito, da empresa, à medida que o trabalho se dilui pela totalidade do tempo e do espaço urbano. Era o que já aparecia no mini-documentário ​Terminal Grajaú: Humilhação Coletiva [11], sobre as condições de deslocamento da força de trabalho na periferia de São Paulo. Talvez não seja descabido afirmar que o que se viu no movimento de junho de 2013, justamente ligado ao problema do transporte, tenha sido o que vivemos de mais próximo de um momento de recomposição política da classe trabalhadora por aqui nas últimas décadas.

Cotidiano e insurreição

A forma dessa aparição não foi a da organização sindical, nem da organização comunitária ou territorial, mas de uma espécie de insurreição “anônima e explosiva”, ​sem forma definida — e nisso parecem residir tanto sua novidade quanto seus limites. A relação do movimento que tomou as ruas daquele mês de junho com a vida cotidiana não passa exatamente por aquilo que costumamos chamar na esquerda brasileira de “trabalho de base” (vale uma reflexão sobre a origem desse termo que, aliás, não encontra tradução exata em outros idiomas). Isso nos desafia a investigar como a revolta irrompeu — e pode voltar a irromper — da rotina desse “proletariado urbano cuja força de trabalho se formou enquadrada pelas mais diversas políticas públicas, conectado às tecnologias da informação, empregado em regimes precários e altamente móvel” [12].

A investigação que propomos não pode levar, então, a um confinamento nos conflitos do dia a dia de cada local, mas consiste em buscar ali os traços da insurreição. Quando a militância se confina no cotidiano, ela está a um passo da gestão. Ora, é preciso reconhecer que o trabalho de base não foi propriamente abandonado pela esquerda brasileira, “mas levado às suas últimas consequências, conformando-se como técnica gerencial”: hoje, “ter uma base organizada significa, efetivamente, gerir populações”. Por isso, o clamor por “organização de base” converteu-se em “um jeito de fugir do problema colocado pelas ruas de 2013” [13], e ignorar as formas de reação ao cotidiano de sofrimento nas cidades que ali deram as caras.

Não à toa, depois de um ano contribuindo para uma tentativa de organização no setor de telemarketing, um grupo de militantes terminou avaliando que:

“Mesmo fora do aparato sindical oficial, ao estabelecer relações clientelistas, acabávamos atuando como se fôssemos um sindicato não oficial — só que muito mais precário, com a diferença de que nunca tivemos uma estrutura jurídica capaz de prestar toda a assistência que seria necessária aos operadores” [14].

A organização local na empresa, no bairro, no colégio se volta naturalmente para a ​solução de problemas e a administração do processo produtivo, que pode inclusive sair aprimorado [15]. Só a dimensão insurrecional — a recusa coletiva — do dia a dia de trabalho permite ir além dessa tendência. A gramática da insurreição é a da interrupção, da sabotagem, da destruição, da ​negação — ou do “foda-se” como às vezes dizemos por aqui. Nesse sentido, a “rede de solidariedade” precisa assumir a forma de uma ​rede de recusa (ou de solidariedade ​na recusa): uma força coletiva de ​desorganização​, mais do que de “ajuda” ou “fortalecimento”.

Contudo, os limites da revolta em si mesma têm se tornado cada vez mais evidentes. Seria sua aparente falta de forma — que abriu espaço para sua conformação à ordem — expressão da ausência de contornos do trabalho em tempos de reestruturação produtiva? Se nos voltarmos apenas para as explosões dos conflitos, corremos o risco de nos adequar a uma militância “sob demanda”, tão fluida e carente de sentido quanto o trabalho ao nosso redor — uma espécie de “’militância freelance’ que ameaça absorver os sintomas de anomia e desagregação intrínsecos à própria precarização das condições de trabalho” [16].

Na ressaca do movimento de junho de 2013, parte dos militantes do Movimento Passe Livre analisou ser preciso “superar a centralidade da tática de revolta” e buscar “uma recusa mais potente, enraizada no cotidiano” [17]. Defendendo uma linha de territorialização nas periferias, organizaram coletivos regionais, reunindo moradores em torno de problemas dos bairros, e travaram lutas que arrancaram pequenas vitórias. Mas, quando um novo movimento de massas irrompeu em fins de 2015, essa construção territorial pouco se conectou ao novo ascenso: na onda de ocupações secundaristas, mais do que qualquer trabalho prévio de longo prazo, foi o efeito exemplar da ação radical — e sua elaboração a partir de meios militantes, como o jornal ​O Mal Educado [18] — que levou à propagação de organismos de luta e decisão em inúmeras escolas.

Após o refluxo do movimento de 2016 contra a loi travail, militantes do sul da França seguiram um caminho parecido ao voltar suas energias aos locais de trabalho, orientados também por uma proposta de enquete operária. Se tinham razão ao avaliar que um próximo ciclo de lutas passaria por fora dos sindicatos, é verdade que não puderam prever de onde esse movimento surgiria. Quando trabalhadores passaram a travar rotatórias e estradas por todo país vestindo coletes amarelos em fins de 2018, esses militantes encontraram colegas de trabalho nos bloqueios; no entanto, dentro das empresas, permanecia reinando a impotência. Em vez de greve, muitos coletes amarelos anteciparam férias, arranjaram atestados ou pediram demissão para dedicar-se ao levante. O centro de distribuição da Amazon em Marselha passou oito dias travado, e os próprios trabalhadores da empresa estavam entre os coletes amarelos que bloqueavam-no do lado de fora — revezando-se entre os turnos de folga e expediente. O mesmo problema é sentido no movimento de Hong Kong: lá, militantes criaram o “Grupo de Trabalhadores” e tentam organizar apoio quando alguém é demitido ou perseguido pelos patrões por se envolver nos protestos.

Mundo afora, nos deparamos com o limite das insurreições nas ruas e também com o limite das lutas nos locais de trabalho. Como ligar essas duas esferas? Qual a relação possível entre o momento de explosão da revolta e o da organização cotidiana?

Fugindo dos roteiros?

Não são poucas as vezes em que, na tentativa de escapar do ​script​, terminamos por incorrer em práticas que criticamos e assumir o lugar da esposa na piada do marido que acredita ser uma lâmpada:

A mulher pede ajuda ao psiquiatra:
— Doutor, meu marido vive pendurado no lustre, ele pensa que é uma lâmpada.
— Minha senhora — responde o médico perplexo —, e por que não o tira de lá?
— Para não ficar no escuro — ​​explica a mulher.

É por também enxergar nessas práticas “invisíveis” uma tentativa de sair do roteiro que escrevemos para vocês. A redação dessa carta foi um jeito de tentar sistematizar conversas que já tivemos, e esperamos que sirva de pontapé para aprofundarmos os debates. Imaginamos que no futuro ela possa servir de ponto de partida para conversas com outros camaradas que possam se interessar.

Saudações,
Um grupo de militantes maio-outubro de 2019

Notas

[1] Dividido em 9 partes, o texto de Asad Haider e Salar Mohandensi pode ser lido aqui. Em seguida, um grupo de velhos militantes continuou o debate refletindo sobre uma experiência de “enquete” na Bahia na virada dos anos 1990 para os 2000.
[2] Trecho de comentário do João Bernardo em um texto do Fagner Enrique publicado no fim do ano passado no Passa Palavra.
[3] Como observou um camarada, após uma atividade em que esteve com outra companheira: “Mais do que dar respostas imediatas, ​uma linha política é o que vai estabelecendo os parâmetros que garantem que, onde quer que estejamos, falemos a mesma língua e olhemos a situação com olhos que carregam as mesmas questões​. Foi isso que notei naquela reunião: apesar de não termos conversado antes, agimos em sintonia. Essa sintonia se deve a estarmos constantemente discutindo, experimentando e refletindo juntos”.
[4] Trazemos aqui a ideia de “rede de solidariedade” genericamente. Sabemos que o site dos Invisíveis apresenta um modelo para “formação de nós” dessa rede, mas parece-nos que as formas de se organizar terminam por variar de contexto a contexto.
[5] Para uma curta introdução à corrente operaísta italiana, lembramos as notas de Manolo sobre os Quaderni Rossi e Classe Operaia​. Também em português, a introdução do livro ​Leitura política do capital​, de Harry Cleaver (Zahar, 1981), traça um panorama do desenvolvimento teórico desses grupos mundialmente no pós-guerra. Para uma história da enquete operária, desde Marx até os italianos, há o texto ​Enquete operária: uma genealogia, agora em português.
[6] “O que une os trabalhadores hoje em dia (…) [é] apenas uma relação negativa consigo mesmo enquanto dependente e exterior a seu próprio pertencimento de classe. Elaborar o que isso significa não é outra coisa senão uma enquete anti-operária.” Jacob Blumfield, ​Enquete anti-operária​, disponível aqui.
[7] Reflexões de um trabalhador da CPTM – Companhia Paulista de Trens Metropolitanos.
[8] Minutos de luta entre horas de silêncio: experiências de luta em uma biblioteca.
[9] “A Voz Rouca” é o nome de um jornal editado desde 2017 por trabalhadores do ensino público e privado para fazer circular as experiências de conflito entre os trabalhadores do setor. Todas as edições estão disponíveis no site.
[10] Dossiê: Lutas na Livraria Cultura.
[11] Terminal Grajaú: Humilhação Coletiva.
[12] Citamos o textoOlha como a coisa virou, elaboração recente sobre a situação atual das lutas no Brasil.
[13] Trecho do balanço que escrevemos sobre nossa experiência com o ​Disk Revolta: questões sobre uma tentativa recente de organização em call centers.​
[14] Disk Revolta: questões sobre uma tentativa recente de organização em call centers.
[15] Cabe perguntar, igualmente, como enfrentar o sofrimento e o medo no cotidiano de trabalho sem recair numa espécie de terapia ou de mediação de conflitos, voltada para recuperar a autoestima ou a “dignidade” dos trabalhadores. Ou problematizar, ainda, o uso da denúncia pública como arma: ela pode se aproximar perigosamente, de um lado, da lógica personalizante e ressentida do escracho; e, por outro, nos deixar numa posição de “órgão de denúncia”.
[16] Disk Revolta: questões sobre uma tentativa recente de organização em call centers.
[17] Revolta popular: o limite da tática.
[18] Conferir aqui.

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