Por Passa Palavra

 

Com o agravamento da crise sanitária no Brasil, com o colapso generalizado do sistema de saúde e com o fechamento das atividades não essenciais sendo adotado gradativamente em vários estados, o bolsonarismo, aquele movimento que “existe e não existe ao mesmo tempo”, volta a botar a cara nas ruas. Cenas que desde o ano passado não se via voltaram a acontecer por todo o país.

Numa cidade no interior do Brasil, na região Nordeste, um carro de som passava aos berros, conclamando os “patriotas” a se rebelar contra as medidas de distanciamento social impostas pelo governo estadual, chefiado por um partido de esquerda. A esquerda estaria tentando novamente, como em 1964, impor a “ditadura do proletariado” no Brasil.

Muito distante dali, em Goiânia, um grupo de bolsonaristas bloqueava uma rodovia federal, uma das mais movimentadas da cidade, promovendo o caos. O objetivo do protesto era o mesmo: combater as medidas de distanciamento social. Protestos assim têm se tornado cada vez mais frequentes. Nessa mesma capital, em fevereiro, quando da restrição do horário de funcionamento dos bares, restaurantes e distribuidoras de bebidas, o sindicato dos bares promoveu uma pequena manifestação no centro da cidade, onde era possível ver um manifestante ostentando uma camiseta do Olavo de Carvalho, um dos principais gurus da extrema-direita brasileira.

Também em Franca, em São Paulo, empresários e uma vereadora do PSL colocaram um carro de som e bandeiras do Brasil em frente ao Tiro de Guerra da cidade, pedindo uma intervenção militar. Um cartaz dizia “Nos ajude, presidente. Queremos liberdade. Queremos trabalhar. Assegure-nos, através do Exército, nosso direito de ir e vir”.

Em Salvador, noutra manifestação de bolsonaristas, uma jornalista foi agredida, chamada de “vagabunda”. A convocatória dos atos responde a um chamado do presidente. Ele chama, conclama, convoca e a malha descentralizada de grupúsculos bolsonaristas começa a agitação, primeiro nos grupos de WhatsApp, sobretudo, e depois nas redes sociais.

Longe dali, numa feira, podia ouvir-se gente comentando que “se o Exército tomasse conta da saúde, já tinha resolvido a pandemia”, muito embora o ministro da Saúde de até poucos dias atrás fosse um general da ativa. Quando objeções desse tipo são levantadas, acusam-se os assessores do ministro, os governadores, os prefeitos, os profissionais de saúde, todos de “comunistas”. Há pouco tempo, não havia bolsonaristas assumidos na feira. Havia e há, sempre, bêbados sem máscara, som alto, moradores de rua, “sacizeiros” [usuários de crack, gíria usada nos estados de Sergipe e Bahia] aglomerando-se na esquina, pequenos comerciantes a dizer, simultaneamente, que o presidente é “maluco” mas que os fechamentos estão errados — mesmo assim, nunca houve bolsonaristas assumidos em tão altos decibéis. Agora, há.

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Parece haver uma relativa coordenação nacional entre esses protestos, não apenas contra as medidas sanitárias mas também em defesa do presidente. Organizações patronais, de pequenos proprietários, parecem receber diretrizes de grupos de WhatsApp (e, em menor medida, Telegram), ou pelo menos participam desses grupos de comunicação onde são veiculadas convocatórias de protestos: uma coordenação mais centralizada ou mais difusa.

Seja como for, chama a atenção o fato de tais protestos adotarem táticas de manifestação de rua antes características da esquerda (bloqueio de rodovias, por exemplo). Entretanto, nesse como certamente noutros casos, uma grande diferença: não houve ação policial para desbloquear a rodovia, como geralmente ocorre nas manifestações da esquerda, com o uso de bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha para dispersar os manifestantes — o que talvez esteja ligado à participação dos próprios policiais nos grupos de comunicação onde tais manifestações são convocadas.

Protestos contra o distanciamento social, no entanto, não são um privilégio do Brasil, nem um privilégio da extrema-direita. Há uma inusitada conjugação entre setores da extrema-esquerda e fascistas nas manifestações contra as quarentenas e as medidas sanitárias. Recentemente isso foi visto na Alemanha, e ainda há poucos dias na Holanda.

Em Portugal, onde essa conjugação praticamente não tem expressão na rua, no parlamento o Partido Comunista tem votado sempre contra o prolongamento da quarentena, ao lado do partido fascista Chega e da Iniciativa Liberal, de extrema-direita. Por seu lado, o Bloco de Esquerda tem-se abstido. A ausência de máscaras é visível por vezes em jovens e sobretudo em jovens negros de bairros mais pobres. Estes últimos, especialmente, ostentam a ausência de máscara com um ar de desafio. Já os trabalhadores negros mais velhos andam sistematicamente de máscara. O que se passa no Brasil, passa-se também no resto do mundo.

Voltando ao Brasil, havia um imaginário, especialmente nas comunidades pobres do Rio de Janeiro, de que “a COVID é uma doença de playboy”. Quando os moradores dessas comunidades aperceberam-se de que pertenciam aos grupos socialmente mais vulneráveis, foram se enquadrando no uso de máscaras e as facções que comandam o tráfico de drogas, em muitas comunidades, passaram a incentivar o seu uso. Mas isso mudou.

Hoje, se você entra de máscara em uma comunidade, todos te olham de um jeito estranho, e muitas vezes os traficantes se sentem intimidados. É como se, para provar que confia naquelas pessoas, você devesse tirar a máscara, tal como os veículos precisam ligar a luz interna para não serem imediatamente alvejados. Além da despreocupação geral com a pandemia, portanto, há também essa vigilância do poder interno às comunidades. Acrescentem-se as horas gastas no transporte público, com dezenas de pessoas adeptas do “foda-se”, e tudo contribui para um cenário de afrouxamento dos cuidados.

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A situação aponta estranhas convergências.

Quanto às organizações patronais, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (ABRASEL), por exemplo, que representa os patrões de um dos setores mais atingidos pelos fechamentos, é evidentemente contrária à medida, mas não “bota a cara” em manifestações pelo fim dos fechamentos. Mantendo-se “aberta ao diálogo”, silencia enquanto os donos de bares e restaurantes mais engajados fazem o serviço.

Complementarmente, pessoas ligadas a partidos da extrema-direita brasileira, como o Partido Social Liberal (PSL) e o Partido Novo (NOVO), têm sido fundamentais para a formação e manutenção dos grupos onde aparecem as convocatórias. É certo que desempenham papel destacado na mobilização, mas serão as únicas? A filiação partidária deverá ser critério único para “mapear” essa rede de convocação e mobilização?

Quanto à extrema-esquerda, o alinhamento antissanitarista, internacionalmente falando, evidencia disparidades curiosas.

Entre as organizações envolvidas com o Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários (EIPCO), há aquelas que, como o próprio Partido Comunista Português (PCP), interpretam a seu modo a diretiva entre elas pactuada de “não a qualquer restrição aos direitos democráticos do povo sob o pretexto do coronavírus”. Por outro lado, há outros signatários desta diretiva, como o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB), que ou bem silenciam quanto aos fechamentos sanitários, ou apoiam-no abertamente. Há de investigar o porquê destas posições tão diferentes entre organizações que subscreveram uma declaração com posicionamento unificado.

No campo trotskista, chama a atenção desde sempre a posição abertamente contrária aos fechamentos sanitários de organizações como o Partido da Causa Operária (PCO) e a Liga Bolchevique Internacionalista (LBI), cuja insistência no assunto chegou ao ponto de se tornar caricata. O PCO tem feito tamanha propaganda antissanitária por meio de seus veículos de imprensa que chega a merecer comentários elogiosos de alguns dos principais influenciadores da extrema-direita. A LBI chega ao extremo de aderir à tese da “imunidade de rebanho”, já fartamente desacreditada, e alinhava todo tipo de teoria conspiratória acerca da inserção de chips, do uso do coronavírus como arma de “guerra híbrida” etc. para formar uma leitura delirante da realidade travestida de “anticapitalismo”. Teriam estas posturas sido originadas no extremo isolamento do campo altamirista do trotskismo, de onde se originam? O curioso é que as duas organizações vivem às turras, e mesmo assim convergem neste aspecto.

Entre anarquistas, além do posicionamento antissanitarista de certas figuras de destaque, há grupos no campo do chamado anarquismo insurrecional que posicionam-se contrariamente às medidas restritivas, em primeiro lugar, porque implicam um cerceamento de liberdades (provisório e plenamente justificado, mas trata-se de cerceamento assim mesmo) e porque pretendem aproveitar a insatisfação com os fechamentos para promover levantes.

A propósito, quando a COVID-19 começou a se alastrar pela Europa, foram os anarquistas e os libertários alguns dos primeiros a se opor às medidas de quarentena e distanciamento social. Situações semelhantes puderam ser observadas em vários lugares. Na Alemanha, porém, essa convergência chegou mais longe, com grupos esquerdistas diversos, incluindo ecologistas e veganos, unindo-se à extrema-direita populista e aos neonazistas e aos hooligans nas ruas, formando uma verdadeira amálgama ideológica.

Nesses meios ocorrem situações inusitadas: é curioso, por exemplo, que entre os antissanitaristas brasileiros existam defensores das mais radicais políticas chinesas de combate à pandemia.

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Os setores da esquerda que, de modo correto, defendem as medidas sanitárias de restrição criticam, obviamente, todo este campo antissanitarista. Fazem-lhe diuturnamente a caricatura a cada nova oportunidade. Mas costumam cair, infelizmente, na armadilha do “a favor ou contra”. Mobilizados pela algaravia das redes sociais, agitam-se ora para um lado, ora para o outro, a depender sempre da “treta” [rixa] da semana. Defendem e pressionam, com razão, pela vacinação em massa, pela maior extensão das medidas de restrição, pelo pagamento de auxílio emergencial aos trabalhadores informais e todos aqueles que não têm de onde tirar seu sustento com o fechamento dos serviços não essenciais, pelo aumento de leitos — em suma, fazem o que devem fazer quando o governo é omisso ou quando ataca frontalmente a vida do povo. Ao fazê-lo, entretanto, cedem ao governo e aos parlamentares de oposição toda a iniciativa política na conjuntura, quando ainda há muito por fazer fora do campo das intrigas palacianas.

Devemos voltar nossos olhares, com muita atenção, para as formas locais de solidariedade e apoio mútuo. Se há algo a que se deve ter atenção durante a pandemia é a estas formas “elementares” de solidariedade ativadas pela crise. Não somente as formas de luta, como nas mobilizações em torno do auxílio emergencial, mas as formas de construção de laços de solidariedade pela sobrevivência. Delas pode depender muita coisa. Delas pode sair muita coisa.

 

As fotografias que ilustram são de Alanah Correia, Roby Monty e juanrfa.

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