Por João Aguiar

“Eu acho esses campos intoleráveis,

mas acho também intolerável o uso que todos os dias

se faz deles na imprensa burguesa”

Sartre

O beco sem saída do “Sim, mas…”

Na guerra de invasão à Ucrânia tem pontificado um argumento de que o regime de Putin estaria a responder desproporcionalmente a provocações provenientes da NATO e dos EUA. Nalguma esquerda portuguesa, do PCP ao Le Monde Diplomatique, sem esquecer intelectuais com perfis políticos distintos como Raquel Varela ou Boaventura Sousa Santos, bem como da defunta esquerda libertária em torno de José Neves e da Unipop, tem-se apresentado um conjunto de argumentos que se podem agrupar em torno de uma linha de pensamento “Sim, mas…”. Por outras palavras, na medida em que ninguém sensato defende a barbárie das forças armadas de Putin no terreno, a única forma de realizar a quadratura do círculo nesta matéria é sempre colocar uma adversativa para explicar ou suavizar a guerra iniciada pelo Estado russo.

1.

Nas situações de terramoto político, os agentes políticos são quase sempre tomados de surpresa pelos eventos. Especialmente quando não são protagonistas desse processo em causa. Todavia, como quase tudo na vida, tentam adaptar-se à situação recorrendo, naturalmente, ao seu paradigma ideológico de base. Esta abordagem não é uma mera adaptação mas é sempre um momento revelador. Revelador, porque nesse processo de adaptação, a única forma dos agentes políticos perceberem o contexto nunca é rejeitar o seu património político, a sua idiossincrasia mais profunda, mas, inversamente, num primeiro momento, só recorrendo aos seus pilares fundamentais podem adaptar-se ao contexto. Por isso, quando a 15 de fevereiro passado, o Partido Comunista Português abordou as perspetivas de guerra na Ucrânia, trouxe à tona o que de mais profundo sente e pensa sobre o assunto. Precisamente porque num novo contexto a primeira (e mais natural) reação é sempre adequar os princípios mais basilares e mais estáveis do pensamento ao que se desenrola perante os olhos do observador. Portanto, a 15 de fevereiro, o “PCP condena a escalada de confrontação promovida pelos EUA e a NATO contra a Rússia” (todos os negritos ao longo do texto são da minha responsabilidade). Como se verificará mais abaixo, toda esta abordagem ostensiva pró-Putin será abandonada, ou para ser mais exato, será reajustada e recauchutada. Mas não deixa de ser notável que, numa situação muito próxima da guerra que vinha sendo avisada e promovida unilateralmente por Moscovo, o ónus seja colocado no outro contendor. Não por acaso, esta é a frase que abre o comunicado, o que do ponto de vista semântico não deixa de ser revelador.

Nesse mesmo comunicado, repete-se a mesma linha de raciocínio em frases como: “A acção agressiva dos EUA e da NATO intensificou-se durante as últimas semanas”, ou “A escalada de confrontação promovida pelos EUA”.

Neste comunicado, o PCP considera ainda que seriam os “EUA, a NATO e a UE que fomentam a corrida armamentista” e seriam “responsáveis por mais de 60% dos gastos militares em todo o mundo, superando em mais de 10 vezes as despesas militares da Rússia”. É verdade que os EUA gastam em armamento mais de 10 vezes o que sucede pelo Estado russo. Mas relacionando as despesas militares com o PIB respetivo, os EUA ficam atrás da Rússia, já que esta gasta 3,9% do seu PIB e os EUA 3,4%. Em suma, ambos gastam o que podem e o que têm. Como se procurou demonstrar nas duas partes anteriores deste artigo, este é menos um problema de gastos militares e mais um problema relacionado com o que cada uma das potências (não) produz.

Após a invasão da Ucrânia, a mensagem pró-Putin do PCP acabada de expor foi fortemente atacada na praça pública. No rescaldo das eleições de 30 de janeiro passado, onde esse partido perdeu inúmeros votos e deputados, e quando a sua responsabilidade e ação consciente na queda do governo de António Costa era vista com perplexidade por uma parte significativa do eleitorado de esquerda, o PCP sabia que não se podia arriscar a que lhe explodisse um novo paiol de indignação. Tarde demais. A indignação implicou um atenuamento das declarações, sem alterar o essencial da argumentação.

Assim, não será arriscado afirmar que a surpresa com que os comunistas receberam a invasão da Ucrânia, os obrigou a recauchutar e recalibrar as declarações. Assim, logo a 24 de fevereiro, dia do início da guerra, um novo comunicado  apela ser urgente uma desescalada do conflito, instauração de cessar-fogo, abertura de via negocial. Estas são interpelações justas mas genéricas. Estes apelos genéricos não são apenas isso, apelos genéricos à paz. Face à concretização dos exercícios militares em guerra efetiva, doravante, como se verá abaixo, a enunciação de apelos genéricos deste tipo “Paz sim, guerra não”, servirá de justificativa para branquear o alinhamento do PCP com o regime de Putin. Esse comunicado é significativo sobre qual será a linha a seguir durante as hostilidades: apelar a medidas de cessar-fogo e de negociação e, no entretanto, ir reproduzindo os apelos pró-Putin. Sobre a capa deste pacifismo cabe perguntar como é possível alguém pedir paz e não exigir a prévia e incondicional retirada do ocupante? Nenhuma proposta séria de paz pode passar sem a retirada voluntária – ou a derrota militar – do exército invasor. Não equacionar sequer a questão da retirada do invasor só serve de grinalda, só serve de amuleto de hipnotismo. Por detrás deste tipo de frases redentoras e de auto-justificação, avançam-se os argumentos fundamentais e que buscam suavizar a intervenção militar russa.

Esta é uma estratégia que se pode chamar de amálgama: juntar e articular ambiguamente considerações vagas e justas no meio de enunciados menos ostensivos, sem deixarem de ser diretamente percetíveis a sua linha de orientação política.

Quando perante uma guerra se começa logo por considerar a ação militar como “Graves desenvolvimentos no Leste da Europa” e “Operações militares de grande envergadura”, percebe-se como há silêncios que falam bem alto.

A linha de apoio político a Putin chegará ao ponto de “perguntar a quem serve afinal de contas uma nova guerra na Europa. Não serve aos ucranianos nem aos russos e tampouco serve aos restantes povos europeus. Mas serve ao Governo dos Estados Unidos e ao seu complexo industrial-militar”. Quer dizer, o Estado russo inicia uma guerra de invasão a um Estado soberano vizinho, mas os maiores beneficiários não seriam os próprios perpetradores. (Por uma daquelas ironias da História, de facto, a invasão da Ucrânia pelo regime de Putin irá reforçar o bloco militar da NATO. Se se preferir, uma profecia que se auto-cumpre).

Quando se argumenta aqui que os apelos à paz não passam de enunciados para nuancear o alinhamento com o regime de Putin, não é por acaso. Repare-se na seguinte afirmação onde o ónus de eventuais negociações de paz nunca é colocado sobre o Estado russo, o único ator a invadir a Ucrânia, mas nos EUA e seus aliados.

“No quadro em que o conflito na Ucrânia está hoje colocado, a solução da paz só pode ser alcançada travando a escalada de confrontação da NATO, dos Estados Unidos e da União Europeia com a Rússia e contando com o contributo da Rússia para uma solução política e pacífica negociada.” Portanto, Putin “apenas” teria de contribuir, só poderia auxiliar na paz, unicamente após uma primeira ação dos seus rivais ocidentais. Isto seria o equivalente a alguém em 1975 exigir a Timor Leste e à resistência timorense para dar um primeiro passo, contando com um contributo subsequente da Indonésia. A escolha de um exemplo histórico em que o invasor estava do lado político oposto ao do PCP é aqui propositado.

2.

Todo este latim sobre o PCP seria absolutamente irrelevante, não fosse o caso de ao seu lado terem germinado posições muito similares em influentes setores da opinião da esquerda portuguesa. Inclusive em setores que nunca participaram organicamente em nada aproximado com o PCP.

Do meu ponto de vista, a esmagadora maioria do que se convenciona chamar de intelectuais tem muito menos importância e impacto político do que se pensa. E do que os próprios pensam, quanto mais não seja porque, à esquerda e à direita, genericamente combinam um multitasking temático com uma abordagem preferencial sobre a espuma dos dias. Contudo, existe sempre no meio de milhares e milhares de influencers letrados a possibilidade de meia dúzia terem impacto na História. Veja-se o caso dos bolcheviques, dos sindicalistas revolucionários ou dos sorelianos.

Num plano distinto, os intelectuais podem ter impacto quando, em primeiro lugar, uma abordagem do mesmo tipo se dissemina capilarmente por correntes relativamente próximas, mas separadas o suficiente para se discernir diferenças de partida. E, em segundo, quando o seu exercício argumentativo sobre contextos históricos que fogem à espuma dos dias se baseia no que acima chamei de amálgama: juntar e articular ambiguamente considerações vagas e justas no meio de enunciados menos ostensivos, sem deixarem de ser diretamente percetíveis a sua linha de orientação política.

*

Num editorial, a versão portuguesa do jornal Le monde diplomatique começa por condenar a invasão russa de um modo claro: “ataque do exército russo contra a Ucrânia, a 24 de Fevereiro, representa uma clara violação do direito internacional e da Carta das Nações Unidas pela Rússia”. Após enunciar brevemente considerações sobre a “natureza oligárquica do regime” de Putin, logo de seguida vem defender a seguinte linha de argumentação: “o papel do jornalismo seria questionar a narrativa, perguntando pelos momentos em que a OTAN e os Estados Unidos também protagonizaram na Europa guerras ilegais e baseadas em argumentos falsos. Esquece-se que em 1999 a OTAN, além do alargamento a Leste, deixou de ser um bloco defensivo e transformou-se numa aliança ofensiva, com a guerra contra a Jugoslávia a violar o direito internacional e uma guerra contra Belgrado sem aval da ONU?”, sem esquecer o caso da invasão do Iraque “invasão americana do Iraque, em 2003, sem aval da ONU e com o apoio do governo português de então”. Tendo a concordar no fundamental com tudo o que aqui foi citado relativamente à NATO. Contudo, cabe perguntar o que é que uma coisa tem a ver com a outra?

A resposta da autora encontra-se resumida na seguinte frase: “há vários anos que a Rússia salienta o medo de ver a OTAN instalada nas suas fronteiras, em contradição com os compromissos assumidos pelos Estados Unidos aquando do desmantelamento da União Soviética”. Acrescenta a autora que “Não há aqui desresponsabilização da Rússia”. Talvez não haja, e não me cabe julgar intenções, mas os argumentos justificativos para a ação militar russa advêm dessa tese relativa ao cerco da Rússia pela NATO. Ora, como procurei demonstrar na parte anterior deste artigo, a intervenção militar de Putin, a guerra movida contra a Ucrânia, decorre de um projeto político-ideológico de cariz fascista, de um nacionalismo étnico. Ao privilegiar o olhar sobre a NATO, o projeto da Eurásia de Putin pode continuar incólume à crítica.

*

No mesmo diapasão de amálgama, num post público do Facebook de divulgação do referido editorial do Le Monde Diplomatique, o economista Ricardo Paes Mamede começa, como é típico desta forma de argumentação, por chamar a atenção para a “invasão ilegal e inaceitável da Ucrânia pela Rússia”, para imediatamente a seguir recordar a “irresponsabilidade de quem anda há anos a criar as condições para que isto aconteça”: a NATO e os EUA. Mais uma vez, o pensamento na adversativa, o Sim, mas…

Numa postura mais matizada, RPM reitera que “o que o governo da Rússia está a fazer na Ucrânia como um crime contra a humanidade”, e que “Precisamos de indignação contra o governo russo e solidariedade com o povo ucraniano”. Contudo, ainda segundo o mesmo autor “Isto não tem de – não pode – impedir-nos de acusar os governos dos EUA e da UE de estarem a aproveitar o clima de indignação e de solidariedade para prosseguir os seus interesses económicos e de afirmação de poder”. RPM tem razão sobre o aproveitamento dos EUA e da UE, nomeadamente do ponto de vista político e de poder, já que, por vias travessas e inesperadas, a NATO sairá reforçada.

Do ponto de vista económico, pelo menos a curto e médio prazo, haverá uma situação de crise económica pelo que não faz sentido afirmar que os capitalistas europeus e americanos ganharão economicamente com a guerra. O que incomoda neste tipo de raciocínios, e Ricardo Paes Mamede representa uma franja mais nuanceada, é sempre ter de recorrer a adversativas para maquilhar, nuancear, matizar a ação militar do regime de Putin. Por muito detestáveis que sejam muitos governos da UE, alguns dos quais até há bem pouco andavam alinhados com Putin, a verdade é que a grande maioria deles não estava minimamente interessada na guerra.

Uma guerra só traz instabilidade para os negócios. Uma guerra europeia, ainda por cima a duas horas de avião de Berlim, tem um potencial de desastre humano e económico que nenhum governo, que se oriente por princípios políticos liberais e económicos capitalistas, quer ter de lidar. Ainda por cima, toda a camada de gestores, sobretudo europeus, que circulam alegremente entre os grandes bancos e empresas multinacionais, os governos e as instituições europeias não têm quase nenhuma experiência em lidar com crises políticas e militares. Pelo contrário, os mais altos dirigentes do regime de Putin têm décadas onde incubaram e aprenderam a atuar em instituições militares ou de espionagem. Onde na União Europeia e nos EUA, o poder real está na mão das empresas e das instituições financeiras de todo o tipo (Bancos Centrais, fundos de investimentos, bancos, etc), na Rússia, o poder está na mão de dirigentes político-militares, de gestores ideológicos.

Para os gestores ideológicos as considerações económicas são secundárias e são um meio para chegar a um fim: o seu projeto ideológico. No caso do regime de Putin, o seu projeto político e ideológico da Eurásia representa o centro da sua política externa que busca criar uma área económica e política de controlo. Ou seja, o centro de poder na sociedade russa não está nos capitalistas clássicos, apesar de não os dispensar. O regime de Putin é, na sua base económica, um cruzamento entre aspetos do capitalismo de Estado e a conexão com o mercado global de bens energéticos por via de capitalistas privados (os oligarcas). Esta estruturação da economia capitalista russa não deriva unicamente de contingências económicas, mas da própria natureza dos objetivos políticos dos gestores ideológicos que comandam o regime. Esta estruturação da economia russa que consiste em vender bens energéticos e matérias-primas funciona como forma essencial para financiar o projeto político da Eurásia ou da Grande Rússia. De outro modo, como se explica que privilegiem arrecadar volumes de capitais para a prossecução do seu ideal político eurasiático, mas deixem de lado a construção de uma economia sólida, diversificada e com tecnologia de ponta aplicada em todos os ramos de produção, incluindo o mercado dos bens de consumo?

Vejamos outro exemplo.

*

Boaventura Sousa Santos, um dos intelectuais portugueses com maior projeção, publicou a 25 de fevereiro um artigo muito eloquente. Dentro do paradigma da amálgama, o autor começa por afirmar categoricamente “a soberania da Ucrânia não pode ser posta em causa. A invasão da Ucrânia é ilegal e deve ser condenada”. Portanto, após condenar a ação militar do regime de Putin, logo de seguida desenvolve uma argumentação para tentar encontrar os responsáveis por esta guerra.

Na sua óptica, “com o fim da Guerra Fria, os EUA sentiram-se donos do mundo”, quais miúdos que jogam e levam a bola para casa. Para BSS, existe uma interrogação que o aflige, “qual a diferença entre a ameaça à sua segurança sentida pela Rússia perante o avanço da NATO e a “crise dos mísseis” de 1962, quando os soviéticos tentaram instalar mísseis em Cuba e os EUA, ameaçados na sua segurança, prometeram defender-se com todos os meios, inclusivamente a guerra nuclear?”. O paralelismo das situações faz sentido e até é mais direto do que é sugerido. Estranho é que o autor não veja que em ambos os casos, o principal instigador é o mesmo Estado, não tendo ocorrido qualquer troca de papéis. Não existe, no atual contexto, nenhuma declaração ou ação conhecida da parte dos EUA que sugira uma ofensiva nuclear. Pelo contrário, já a 27 de fevereiro, Putin elevou o nível de alerta nuclear, sem resposta direta nessa escalada pela parte da NATO.

Do ponto de vista de BSS, na base desta guerra estaria a rivalidade entre os EUA e a China: “Será outro erro estratégico pensar que assim se enfraquece a China. A China acaba de declarar que não há comparação possível entre a Ucrânia e Taiwan porque, para ela, Taiwan é território chinês. A implicação é clara: para a China, a Ucrânia não é território russo”. Pois não. Mas, para a Rússia, a Ucrânia é território russo e esse é o busílis da questão.

A rematar o artigo, o autor reitera e abrevia o seu argumento de fundo: “a invasão da Ucrânia é inaceitável”. E de quem é a culpa pode perguntar o leitor? Do Estado invasor com desejos saudosistas de expansão territorial? Para BSS, aparentemente não, pois a invasão “não se pode dizer que não foi provocada. A Rússia, como grande potência que é, não se devia deixar provocar”. Coitado de Putin, um ditador que ferve em tão pouca água… Foi uma pena que, algures na primeira quinzena de fevereiro, Putin não tenha telefonado a Boaventura Sousa Santos, em vez de andar a perder tempo a falar com Macron.

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Um outro exemplo é o de Raquel Varela. Num programa televisivo onde participa como comentadora residente, a historiadora começa por considerar a guerra na Ucrânia um “conflito completamente incompreensível” (2:20). Equaliza o plano da intervenção do regime de Putin com a ação da NATO: “também incompreensível o cerco e a provocação que a NATO faz através da Ucrânia à Rússia”.

A certa altura, quando compara o exemplo da crise dos mísseis cubanos com a guerra na Ucrânia, um outro comentador residente do programa, pergunta a RV se existiriam mísseis nucleares da NATO na Ucrânia ao qual a nossa interlocutora, após uma breve hesitação, desvia o assunto, mencionando que “Zelensky mudou a Constituição para a Ucrânia poder entrar na NATO”. Portanto, mesmo sem responder ao que lhe é perguntado em específico, para RV, poder-se-ia comparar a provocação com mísseis nucleares soviéticos em Cuba com uma intenção política do Estado ucraniano em aderir à NATO. Uma efetiva colocação de mísseis nucleares a umas cem milhas de um rival nuclear é aqui equivalente com a intenção política de um Estado soberano em aderir a um bloco militar rival de um Estado vizinho. Nas palavras de RV “é evidente que há aqui uma provocação”. A tese da provocação serve para fornecer um contexto que enquadre a intervenção militar russa num âmbito de plausibilidade. Como procurarei demonstrar adiante, persiste à esquerda o mito de uma ameaça avassaladora e quase irresistível da NATO sobre os seus rivais militares, como o Estado russo, que os levaria a cometer invasões. Com efeito, tem havido bastante insistência por alguns autores na tese da provocação da NATO. Provocação que o regime de Putin não teria sabido resistir da melhor maneira.

Em simultâneo, coexiste uma operação de retirada de autonomia estratégica do Estado russa. De facto, é o Estado russo quem tem detido forte iniciativa estratégica, pelo menos desde o ataque na Geórgia em 2008. A inversão dos papéis de quem realmente tem ditado o rumo dos acontecimentos serve às mil maravilhas para obscurecer a prossecução da política de expansão de Putin. Se este se limitaria a reagir, fica evidente que o expansionismo de Moscovo fica para segundo plano. Com uma considerável dose de bonomia, Varela ainda considera que Putin até “deixou a coisa degradar-se demais”, desde 2014, “para agora não ser uma disputa por autodeterminação” da região leste da Ucrânia “mas uma anexação por parte do território” ucraniano. Obcecado com o seu projeto Eurasiático, o Presidente russo bem que podia olhar para o oeste do continente e reconhecer o valor do capital humano da esquerda portuguesa. Não lhe faltariam conselheiros avalizados.

Num artigo mais recente ocorre uma mistura entre um economicismo rígido e uma visão da economia capitalista como se andasse à volta do acesso e competição por matérias-primas… Perante um novo cenário político, a autora consegue a proeza de aplicar a mesma lengalenga economicista. Para contextos diferentes, a mesma receita… A culpa é da “crise estrutural de acumulação”, esse velho chavão que só serve para: 1) dar esperanças milenaristas a uma esquerda completamente desligada dos trabalhadores e das pessoas comuns; 2) esconder o fracasso da esquerda (nos últimos 150 anos nunca houve um período tão prolongado de tão baixa intensidade das lutas sociais de explorados e oprimidos – em breve a Revolução de 1974 ficará mais perto temporalmente de 1917 do que do presente); 3) atribuir uma única causa – sempre económica – a fenómenos que combinam a economia, a política e a ideologia (de facto, quando se procura num único fenómeno explicar uma diversidade de situações históricas, isso significa que não se está a explicar nada); 4) disfarçar o sucesso do capitalismo enquanto modo de produção que tem na crise a sua mola de superação de dificuldades e de desafios, não o seu entrave; 5) atribuir a uma causa etérea, vaga e sem ligação concreta ao que realmente está na génese da invasão da Ucrânia; 6) dar um ar de contra-corrente – sabendo que o contra é, muitas vezes por si só, uma categoria política atrativa para camadas da população obcecadas e sequiosas por conspirações e explicações alternativas, reduzir a origem de um evento histórico a uma situação de “crise estrutural” condiz bem com a atratividade do catastrofismo anti-sistema que anima hostes, à direita e à esquerda, por projetos políticos metacapitalistas.

*

Numa posição mais matizada do que a do exemplo anterior, como é seu apanágio, José Neves, historiador das manifestações nacionalistas em Portugal à esquerda e à direita, tenta traçar uma bissetriz perfeitamente esquadrinhada entre a NATO e o Estado russo: “o cerco político, diplomático e militar a que a NATO vem submetendo a Rússia nos últimos anos/décadas não justifica a ofensiva ontem desencadeada por Putin”. A NATO é avaliada por alguma esquerda como estando na mesma situação de 2003, ano da invasão do Iraque. O desprezo pela evolução da NATO permite traçar essa (falsa) simetria geométrica perfeita entre os contendores. Como se percebeu pelos exemplos anteriores, ninguém deixa de condenar a ação militar russa, raramente sem adversativas. Aquando da invasão do Iraque, a condenação da ação militar norte-americana à esquerda era simples e objetiva: contra a atuação militar, ponto. No caso da Ucrânia, a assunção simples, direta e justa de dizer que a “ofensiva desencadeada por Putin” é condenável tem de transportar sempre uma adversativa, um elemento linguístico e político que lembre o leitor que dê/preveja/sinalize/relembre algum tipo de suavização da iniciativa do exército russo. Há sempre um subtexto que funciona como uma rede no funambulismo que alguma esquerda portuguesa protagoniza.

Num outro texto público do mesmo autor, defende-se que “uma solução negociada do actual conflito implica, além da cessação imediata das hostilidades e da retirada das tropas russas, pelo menos duas garantias: de que a Rússia não seja cercada militarmente pela NATO e de que a Rússia não tenha a veleidade de “tutelar” os governos ucranianos”. Importaria clarificar empiricamente em que consiste o cerco militar da NATO e traçar a sua trajetória recente (ver secção seguinte do artigo). E importaria também deixar de considerar a Rússia um alvo mais apetecível do que realmente é. A conceção de que o território russo seria apetecível para ocupação ou intimidação decorre de uma visão geopolítica. Evidentemente, a NATO é uma organização militar e com várias intervenções absolutamente injustificáveis. Por ser militar, tem também naturalmente uma visão geoestratégica e geopolítica. Mas esta visão subordina-se aos propósitos económicos ditados pelos Estados que a compõem. A política externa da generalidade dos seus membros obedece maioritariamente às necessidades de expansão económica.

Inversamente, o Estado russo, nomeadamente com o seu projeto Eurasiático, concebe a sua política externa primordialmente como alavanca política e geopolítica. Como tentei demonstrar na secção “Putin, filho de três progenitores” na primeira parte deste artigo, a política externa do Estado russo utiliza o comércio de bens energéticos para financiar um projeto político de domínio continental. Nesse âmbito, esperar que o Estado russo não queira “tutelar governos ucranianos”, implicaria o abandono de qualquer plano ideológico pan-russo.

Por outro lado, é curioso que esta esquerda mencione as bases da NATO e o suposto cerco à Rússia, mas nunca refira as bases militares russas na Ucrânia (Sebastopol), Geórgia, Arménia, Bielorússia, Quirguistão, Moldávia, Síria, bem como a eventual expansão de novas bases no continente africano, mais propriamente no Egito, Eritreia, Sudão, República Centro Africana, Madagáscar e Moçambique.

É uma pena que paralelamente à avaliação geopolítica das teses do cerco da NATO o mesmo não seja feito relativamente ao poder e à preponderância de regimes autoritários como os da China, da Arábia Saudita, da Rússia e do Irão, ou de governos comandados por dirigentes autoritários como a Índia de Modi e a Turquia de Erdogan. No conjunto da massa continental euroasiática, ou da ilha-mundo de Dugin só sobra a UE como espaço hegemonizado pelo liberalismo económico e político. Mesmo aí têm proliferado os eurocéticos e pró-autoritários Orban, Le Pen, Salvini, entre outros similares. É muito duvidoso que se possa afirmar assertivamente que os EUA e os seus aliados europeus – epígonos políticos e económicos do liberalismo – sejam hoje a potência avassaladora que alguns lhe atribuem. Por outro lado, a efetiva expansão de autoritarismos anti-liberais pela Ásia e pela Europa tendem a contribuir para a transferência da discussão política do plano das relações sociais e políticas (capitalismos liberais e iliberais) para o plano perverso da geopolítica e do culturalismo (civilização ocidental VS oriental; culturas materialistas VS civilizações, etc.). Mas essa é uma outra discussão. Neste ponto interessou-me simplesmente sublinhar como o argumento do cerco da NATO pode ser facilmente contraposto por algo que me parece bem mais premente para as próximas décadas: o avanço de projetos autoritários por todo o mundo, com o que até podem significar de recuperação de agendas metacapitalistas e irracionalistas.

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Se se quiser resumir o quadro do pensamento “Sim, mas…”, compare-se com uma situação recente mediática. No plano intelectual é o mesmo que justificar o sopapo e a violência gratuita do ator Will Smith ao comediante Chris Rock, porque, apesar de errado e não se dever bater em ninguém, lá teria tido as suas razões – a piada de mau gosto de Chris Rock sobre o cabelo da esposa do ator.

O mito da ameaça da NATO

Muitos dos argumentos apresentados pelos diversos autores na secção anterior são fundamentalmente especulativos e derivados das suas presunções sobre o assunto e menos sobre dados concretos e empíricos prevalecentes nos discursos de Putin, nos seus atos e na análise do que era a NATO no cenário internacional antes da invasão da Ucrânia. No geral, reduzem a uma competição geoestratégica, geopolítica e geoeconómica o que é, para o caso do Estado russo, acima de outras considerações, uma motivação ideológica de restaurar uma Grande Rússia. Esta não é uma guerra como outras, como uma invasão bárbara como outras no pós-Segunda Guerra, mas que não alterou a configuração política e relacional. É um facto internacional de uma reconfiguração gigante, quanto mais não seja porque traduz a recuperação do espectro nuclear a pairar de novo e de uma tendência para transformar as ações políticas e militares em decisões de tudo ou nada (ver penúltima secção da primeira parte deste artigo).

É também, dadas as devidas diferenças ideológicas, o regresso dos gestores ideológicos à cena das batalhas bélicas e à cena política mundial após a experiência do nazismo expressa no Holocausto. Contudo, já discuti largamente o papel dos gestores ideológicos em torno de Putin nas duas partes anteriores deste artigo, pelo que me focarei no papel específico da NATO no conflito na Ucrânia.

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É indiscutível que a NATO tem um cardápio de intervenções desnecessárias e reveladoras do seu caráter militarista, com a invasão do Iraque em 2003 à cabeça. A NATO é o que sempre foi e a questão das provocações mútuas entre a NATO e o Estado russo faz parte das manobras de pressão recíprocas. Ou seja, o argumento de que a NATO estaria sempre a reforçar-se e a aumentar os gastos militares esquece que esse é o padrão de todas as potências militares. Para além dos EUA, mais nenhum Estado europeu da NATO gastava o equivalente percentual ao dos EUA ou da Rússia. E sublinhei a forma verbal gastava, porque uma das consequências da invasão da Ucrânia será o reforço dos gastos militares por TODOS os Estados europeus da NATO. Se o objetivo de Putin era, supostamente, aliviar a pressão da NATO sobre as fronteiras russas, não se pode dizer que a intervenção militar na Ucrânia tenha sido a melhor das opções. Até porque, escudadas na movimentação bélica de Putin, os EUA enviarão contingentes militares treinados e altamente armados para a Europa de Leste, numa escala nunca vista. E a Suécia e a Finlândia muito provavelmente irão aderir à NATO… Se eu tivesse passado uma série de anos em coma, e mal acabado de acordar visse o comportamento de Putin, sem saber nada do seu papel como líder máximo do Estado russo, iria jurar que era um agente da indústria militar que tão habilmente tem fomentado…

Se a estratégia de Putin era a do alívio, saiu-lhe na rifa uma maior aflição. Como uma profecia que se auto-cumpre, se Putin se queixava de uma pressão crescente da NATO, o que dizer dos resultados obtidos? O que seria, alegadamente, uma operação militar dissuasora, resultou num auto-golo. E ainda falta saber como vai correr a situação militar no Donbass nos próximos tempos…

Um outro aspeto capital na avaliação da NATO prende-se com o seguinte. No atual contexto, muitos comentadores atribuem poderes de quase omnipotência operacional à NATO, quando até bem recentemente, esta estaria condenada a um irreversível declínio. Não só Obama não terá vendido armas defensivas a Kyiv em 2014, como Trump estava claramente desinteressado numa parceria com os aliados históricos europeus e com os destinos da NATO. Mais recentemente, a saída atabalhoada dos EUA e seus aliados do Afeganistão em agosto passado é um notório exemplo da trajetória recente daquele bloco militar.

Em bom rigor, a NATO – tal como o conjunto das potências ocidentais – era cada vez mais vista como uma organização atulhada em divisões, indecisões e falta de capacidade operacional. Se Putin a usava como espantalho para legitimar interna e externamente a sua política, acabou por lhe oferecer um sopro de vida.

Num plano paralelo, a ascensão económica e política da China no cenário mundial, a constituição dos BRICS, as dificuldades militares e políticas no Afeganistão, no Iraque e no combate ao fundamentalismo islâmico eram sinais sólidos da perda de hegemonia ocidental e dos EUA. Em simultâneo, a UE estava em retração, no respeitante à sua influência no cenário internacional. Fruto cruzado da crise das dívidas soberanas, do Brexit, do financiamento russo da extrema-direita para desestabilizar a UE, e da ação da Polónia e da Hungria para criarem um modelo de saída/desafio ao liberalismo de Bruxelas, todos os rivais do Estado russo estavam num cenário de retração. Nem a NATO, nem os EUA e a UE estavam num contexto similar ao do pós-guerra, de ascensão de poder económico e político e incontestável. Muito pelo contrário. Quem falaria da NATO nos últimos 15 anos com certeza de ser uma aliança operante e em ascensão?

Neste contexto, é risível atribuir uma força ao Ocidente que este não tem. Ou não tinha, para ser mais exato. Se se reparar na trajetória da imposição das sanções à economia da Rússia, no início as sanções foram relativamente pequenas. Demoraram-se dias e dias a decidir desligar alguns dos principais bancos russos do sistema internacional de pagamentos SWIFT. Ainda hoje, nem todos os bancos russos estão desligados do SWIFT. Nos primeiros dias da guerra, a Itália queria exceções para o calçado de luxo e a Bélgica para os diamantes. Só quando afinal Kyiv não caiu ao fim de dois dias, como parecia inicialmente, é que a NATO passou a apostar num apoio militar massivo à Ucrânia. Se o ocidente tivesse a iniciativa na altura, os pacotes de sanções e os apoios em armamento teriam sido imediatos e não às levas. Se a NATO fosse uma organização com operacionalidade efetiva, a muito badalada no-fly zone poderia ter sido uma realidade há meses atrás. Nunca se saberá se isso teria sido possível e se teria sido um procedimento dissuasor ou interpretado por Moscovo como um ato de guerra.

O que é certo é que, até ao dia da invasão da Ucrânia, foi sempre a NATO a correr atrás dos acontecimentos, com Moscovo a ditar continuamente a iniciativa. Ora, só isto demonstra quem estava por cima e quem andava aos papéis. É evidente que estes factos não escapariam a Putin [1]. Os sinais de desorientação da NATO até março de 2022 eram tais que os polacos e os EUA andaram a brincar à entrega de caças Mig, como se um assunto militar desta natureza tivesse de ser discutido na praça pública. Nos EUA e na UE todos estavam à espera de uma guerra de insurgência e resistência, de uma eventual guerra de guerrilha e não uma guerra convencional. Muito menos de vitórias militares ucranianas que terão causado milhares de mortos militares entre os russos. Guerra esta em que o Estado ucraniano mantém, no Leste e no Sul do país, praticamente o mesmo território desde as conquistas territoriais das forças militares do Kremlin nos primeiros 3 ou 4 dias de guerra, tendo o exército russo acabado por, pelo menos provisoriamente, abandonado o objetivo de tomar a capital ucraniana.

Quando o Ministro das Finanças alemão, Christian Lindner, diz ao embaixador ucraniano em Berlim que de nada servirá auxiliá-los com armas porque a guerra estaria terminada em horas, é fácil perceber como a figura de uma NATO ultra-ofensiva e em estado de prontidão para apertar o cerco ao Estado russo não tem qualquer cabimento, face aos dados apresentados.

O melhor sintoma para a crença ocidental de que a Ucrânia estaria no fundamental perdida está no famoso convite americano para que Zelensky fugisse para os EUA, tornado público a 26 de fevereiro. O melhor que uma organização supostamente tão preparada para cercar (e atacar) a vastidão do território russo tinha para oferecer nos primeiros dias de um conflito militar desta envergadura era o asilo político para os líderes políticos ucranianos. Parece-me empiricamente indefensável a tese da prontidão e do cerco militar pela NATO, no período anterior à guerra.

*

Os argumentos dos partidários do “Sim, mas…” são fundamentalmente especulativos e derivados das suas presunções sobre o assunto e menos sobre dados concretos e empíricos prevalecentes nos discursos de Putin, nos seus atos e na análise do que era a NATO no cenário internacional antes da invasão da Ucrânia. Reduzem a uma competição geoestratégica, geopolítica e geoeconómica o que é, para o caso do Estado russo, acima de outras considerações, uma motivação ideológica de restaurar uma Grande Rússia. Esta não é uma guerra como outras. Não é “só” mais uma invasão bárbara como outras no pós-Segunda Guerra, sem o potencial de induzir alterações significativas na configuração política e relacional internacional. É um facto internacional de uma reconfiguração gigante. É a possibilidade de ascensão de metacapitalismos encabeçados por gestores ideológicos.

A esquerda e os gestores ideológicos

Fala-se sempre muito em especulação imobiliária ou em especulação financeira para classificar as manobras que levam a uma alta de preços em determinados mercados, como o da habitação ou o financeiro. No caso de alguma esquerda também se pode falar numa especulação com a função de criar cortinas de fumo sobre o seu posicionamento relativamente a Putin no atual contexto de guerra. Ninguém à esquerda andou com tantos salamaleques e voltas ao bilhar grande aquando da invasão do Iraque em 2003. Pelo contrário, a condenação à ação militar norte-americana era inequívoca e seriam raros os que defendiam o regime de Saddam Hussein. Ou seja, a preocupação política na altura era a condenação do ataque militar, da guerra movida pela potência capitalista norte-americana. Tão simples quanto isso. Quase vinte anos passados, mudou o atacante e o que deveria ser a manutenção de uma posição inequívoca de defesa do direito à vida das populações civis tornou-se num pormenor, tantas e tantas vezes perdido no meio de outras derivações.

Se em 2003 alguém dissesse que:

  1. a) a guerra no Iraque era incorreta, desnecessária e injustificada;
  2. b) Mas
  3. c) Mas
  4. d) mas que, após a frasezinha redentora da praxe “queremos a paz”, começasse com uma ladainha do género “vejam lá que o Saddam matava e torturava milhares e milhares de opositores, esbanjava dinheiro público em armas e luxos pessoais, não havia democracia parlamentar nem direitos políticos básicos”; e
  5. e) quase não falassem do que representou a ação bélica para as vidas dos iraquianos;

Perante tudo isto, pergunto aos partidários dos argumentos “Sim, mas” o que diriam? Uma pessoa que dissesse isto que descrevi acima seria considerada mais favorável à intervenção ou à condenação do ataque militar norte-americano? Se se tomar em consideração que o regime ucraniano não fez um centésimo das atrocidades cometidas pelo regime de Saddam, então como justificar a condenação sem ambiguidades da invasão do Iraque mas andar com circunvoluções e desvios no que toca à agressão do Estado russo?

Até porque o que está em causa, o que menos me interessa, não é classificar alguém como mais ou menos apoiante de Putin mas, nesta terceira parte do artigo, perceber a ausência de uma crítica da guerra como sintoma de uma convivência de alguma esquerda com formas de irracionalismo político. E como isso tudo se relaciona com os gestores ideológicos.

É-me evidente que as posições de suavização da intervenção militar russa que tentei resumir anteriormente têm distinções entre si. Mas de um modo ou de outro, todas convergem numa qualquer modalidade de “Sim, mas”, procurando desvios ou justificativas para suavizar o contexto dos últimos dois meses. Algumas posições tentam esquadrinhar bissetrizes perfeitamente simétricas, outras falam no cerco ou nas provocações ocidentais. Raramente focam o real conteúdo das motivações que presidem à invasão ou sobre as consequências sobre as populações.

Outras, num plano mais harcore e irmanadas ao irracionalismo, são tão abstrusas que:

   1) após defenderem sem qualquer relação com a realidade que teria ocorrido “uma operação de genocídio programado” por parte do exército ucraniano no Donbass entre 2014 e 2021;

   2) e que isso representaria o “genocídio de todos os que não queriam o corte de ligações com o povo irmão da Rússia”, ecoando assim os temas do nacionalismo étnico de Putin que apresentei na parte anterior;

ainda se sentem ofendidos quando um qualquer comentador no Twitter lhes diz para assumirem um apoio a Putin, “desafio-o a demonstrar que apoio Putin, a guerra ou qualquer dos seus resultados”. Como dizem as crianças, se não nascesse tinha de ser inventado.

*

Para resumir, a amálgama expressa nas diversas variações do pensamento “Sim, mas” permite o apoio ou a desculpabilização a um determinado agente político inconveniente e hostil a grande parte dos leitores, vogando e deslizando pelos interstícios dos pontos de conflito. Se se quiser utilizar uma expressão bruta, é uma retórica das meias-tintas. Se, por um lado, condenam o conflito e apelam a negociações de paz (sendo poucos os casos que falam numa retirada das tropas russas), por outro, tratam de defender não apenas a entidade política invasora e promotora do conflito, mas também a politicamente mais hostil aos interesses estratégicos dos trabalhadores.

É comum verificar nesta esquerda a contínua apresentação de argumentos laterais para fugir à questão em cima da mesa. Por exemplo, é constante o exercício de falar na censura a partidos ucranianos, nas discriminações europeias relativas à proveniência dos refugiados ou que “há, na Ucrânia, um problema sério com a extrema-direita, que esta está integrada no aparelho do Estado”. É óbvio que sim, e esse é um problema.

Como já foi abordado na 1ª parte do artigo, esse é um problema lateral e com pouca relevância na determinação dos acontecimentos, quando na guerra ali existente quem tem praticado uma política de efetivo e vasto ataque à vida dos trabalhadores e das pessoas comuns é o exército de Putin. Quem foi e tem sido obrigado a fugir de casa aos milhões, a passar fome e privações, a viver aterrorizado, a perder empregos e rendimentos, a ver as suas casas destruídas, a morrerem milhares de civis, incluindo em massacres, são os trabalhadores e os habitantes da Ucrânia. A solidariedade deveria ser para com todos esses milhões, mas esta esquerda prefere andar constantemente com circunvoluções, mesmo que algumas delas sejam justas, para não ter de lidar com o elefante no meio da sala. Eu também acho uma parvoíce as tentativas de censura a obras de arte ou a canais de televisão russos, mas tudo isso deriva de um fenómeno muito mais vasto e impactante: a guerra desencadeada pelo Estado russo.

Ironicamente, alguns dos comentadores mais acintosos chamam de “silêncio” à indiferença com que a maioria da população vota as suas circunvoluções. E isto acontece porque a maioria das pessoas comuns, dos trabalhadores (ainda) têm a noção básica de se colocarem no lugar dos outros e refletem sobre o que lhes aconteceria se estivessem numa situação idêntica. Perante uma guerra que tem cada vez mais efeitos sobre a população civil, a generalidade das pessoas comuns tem uma noção de senso comum que esta esquerda, que se diz próxima e ligada ao povo, não tem: os trabalhadores e as pessoas comuns têm o sentido prático e a humanidade básica do que significa perderem tudo – vidas, casa, emprego, amigos, família. Só mesmo esta esquerda para andar a brincar com o papão da extrema-direita de uns poucos milhares de lunáticos do batalhão Azov, esquecendo-se da política real do regime de Putin que tem destruído, de uma maneira ou de outra, as vidas de milhões de pessoas.

Quando anteriormente mencionei o exemplo do regime de Saddam Hussein – responsável pelo assassinato de, pelo menos, 250 mil iraquianos – lembrei que esta esquerda, em 2003, não andou preocupada em encontrar subterfúgios, num regime muitíssimo mais violento do que o ucraniano atual, para amaciar a ação militar dos EUA. A preocupação na altura foi de condenar a guerra e a destruição que ela trouxe sobre as pessoas comuns e os trabalhadores no Iraque, ponto.

Ora, nada disto tem sucedido no caso da Ucrânia, na medida em que a esmagadora maioria das discussões desta esquerda tem sido a de suavizar ou não centrar a sua ação política na intervenção militar da Rússia de Putin. Há sempre um mas, uma digressão sobre um outro qualquer assunto para não ter de se confrontar com a guerra. Aliás, uma guerra que está a ter consequências no fornecimento global de trigo da Ucrânia, o que afeta a vida de milhões em países dependentes da importação deste bem alimentar essencial. Já para não falar dos impactos na inflação em grande parte das economias, que “come” rendimentos aos trabalhadores.

Ao aniquilar a crítica da guerra, ao apagá-la por via da sua secundarização, ao afogar a crítica da guerra em frases genéricas e avulsas pela paz no meio de textos e textos focados noutros aspetos, esta esquerda acaba por suavizar ou desculpabilizar a intervenção militar de Putin. Sem defender explicitamente a intervenção militar de Putin – como o poderia fazer? – e ao secundarizar a sua condenação, esta esquerda tenta fazer a quadratura do círculo.

*

Contudo, o posicionamento de certa esquerda relativamente aos efeitos práticos do nacionalismo étnico de Putin na Ucrânia, implica uma dupla operação de associação dessa esquerda ao irracionalismo político e da sua completa dissociação com o interesse dos trabalhadores e das pessoas comuns. Isso coloca esta esquerda no seio de um dos vetores dos gestores ideológicos (vd. ponto 4.3 deste artigo).

Sendo a guerra na Ucrânia um facto internacional de uma reconfiguração gigante, importa sublinhar que é, também, e dadas as devidas diferenças ideológicas, o regresso dos gestores ideológicos à cena das batalhas bélicas e à cena política mundial após a experiência do nazismo expressa no Holocausto. Mas como poderia certa esquerda preocupar-se com a ascensão política dos gestores ideológicos nas últimas décadas – de Putin aos anti-vacinas, da extrema-direita aos identitários – se ela é parte componente dessa mesma teia complexa de irracionalismos? Que dizer de uma esquerda que diz defender a emancipação humana e a democracia para todos os explorados e oprimidos, mas suaviza as ações militares de uma autocracia que pretende uma massa continental pan-eslava e organizar a sociedade em moldes semelhantes ao fascismo? O que dá melhores condições para lutar pelos direitos dos trabalhadores? Um proto-fascismo cada vez mais agressivo e que se dedicou na Ucrânia mais a destruir infra-estrutura civil, a levar a milhares de mortos civis e mais de 10 milhões de deslocados (dos quais mais de 3,5 milhões de refugiados) do que a “desnazificar”?

*

Sobre os campos de concentração soviéticos, Sartre terá dito um dia a Camus “eu acho esses campos intoleráveis, mas acho também intolerável o uso que todos os dias se faz deles na imprensa burguesa”. Não terá sido certamente a primeira vez que alguém avançou com um pensamento do tipo “Sim, mas” para justificar atrocidades, mas o exemplo é mais do que elucidativo.

Nos meios urbanos das sociedades capitalistas liberais existe uma perceção, nem que seja intuitiva, dos limites do que é aceitável ou legítimo para as normas dominantes ou maioritárias. Por exemplo, só os mais fanáticos têm a desinibição e o desassombro de invocar o genocídio ou a guerra como categoria política aceitável. Diferentemente, na sua grande maioria, o ajustamento das posições políticas contra-hegemónicas opera por via de equilíbrios e de adversativas que permita, num primeiro nível, o diálogo e a comunicação entre distintos campos políticos e, por outro lado, legitimar posições políticas minoritárias e vistas com particular desconfiança por grande parte da população.

Por isso, quando Sartre equivalia a repressão – os campos de concentração soviéticos – ao uso político que deles fazia a “imprensa burguesa”, havia ali nitidamente um tipo de pensamento/argumento “Sim, mas”. Esta formulação recorre à apresentação de uma adversativa, sem negar a premissa inegável. A adversativa visa diminuir o fulcro de um fenómeno, desviando a atenção para outros aspetos. É como alguém dizer a um filho adolescente “sim gosto da música que estás a ouvir” nas alturas, mas que tem de baixar o volume.

O recurso a adversativas é esse baixar do volume, reduzindo o incómodo provocado pela materialidade do som que preenche e abala o espaço em redor. Sartre queria abafar o ruído insuportável dos mortos e dos presos.

*

O corropio de gente a fugir, as ruínas urbanas despedaçadas pela artilharia, as mãos inanimadas de cadáveres, mas…

Mas…

Mas?

Leia a primeira e a segunda parte deste ensaio.

Notas

 [1] O erro do presidente russo foi confundir o que os marxistas antigamente definiam como estrutura, com a conjuntura. Ou seja, Putin confundiu a conjuntura de desunião política europeia e norte-americana com a estrutura económica dos seus rivais. Onde Putin esperou encontrar fraqueza – na desunião política dos rivais ocidentais – encontrou força: as economias muitíssimo mais desenvolvidas do capitalismo ocidental. Onde Putin esperava encontrar força – a suposta invencibilidade das forças armadas russas e do seu desígnio expansionista sobre a Eurásia – encontrou fraqueza: bem que Putin pode utilizar o capitalismo clientelar dos oligarcas para financiar o seu projeto político-ideológico, mas sem uma base económica e organizacional sólida e pujante, o sucesso dos seus delírios étnicos será sempre contingente dos resultados militares.

 

2 COMENTÁRIOS

  1. Leo V,
    Um dos artigos desse site é o mesmo que cito neste trecho.

    “ocorre uma mistura entre um economicismo rígido e uma visão da economia capitalista como se andasse à volta do acesso e competição por matérias-primas… Perante um novo cenário político, a autora consegue a proeza de aplicar a mesma lengalenga economicista. Para contextos diferentes, a mesma receita… A culpa é da “crise estrutural de acumulação”, esse velho chavão que só serve para: 1) dar esperanças milenaristas a uma esquerda completamente desligada dos trabalhadores e das pessoas comuns; 2) esconder o fracasso da esquerda (nos últimos 150 anos nunca houve um período tão prolongado de tão baixa intensidade das lutas sociais de explorados e oprimidos – em breve a Revolução de 1974 ficará mais perto temporalmente de 1917 do que do presente); 3) atribuir uma única causa – sempre económica – a fenómenos que combinam a economia, a política e a ideologia (de facto, quando se procura num único fenómeno explicar uma diversidade de situações históricas, isso significa que não se está a explicar nada); 4) disfarçar o sucesso do capitalismo enquanto modo de produção que tem na crise a sua mola de superação de dificuldades e de desafios, não o seu entrave; 5) atribuir a uma causa etérea, vaga e sem ligação concreta ao que realmente está na génese da invasão da Ucrânia; 6) dar um ar de contra-corrente – sabendo que o contra é, muitas vezes por si só, uma categoria política atrativa para camadas da população obcecadas e sequiosas por conspirações e explicações alternativas, reduzir a origem de um evento histórico a uma situação de “crise estrutural” condiz bem com a atratividade do catastrofismo anti-sistema que anima hostes, à direita e à esquerda, por projetos políticos metacapitalistas.”

    Não vejo em que é que a dinâmica capitalista global tem a ver com os desejos imperialistas e com o nacionalismo étnico de Putin – base da invasão da Ucrânia. Não entendo como a esquerda anda sempre com a conversa da crise estrutural. Das duas uma, ou o capitalismo vive numa crise agonizante tanto tempo (e não se percebe porque continua a expandir-se todos os anos), ou a classe trabalhadora é que vive numa crise estrutural há décadas, dado que desde os anos 70 (há quase 50 anos…) não existem lutas sociais capazes de ameaçar o capitalismo.

    Por outro lado, a ação do Putin não tem qualquer cabimento dentro de uma lógica capitalista clássica. Pelo contrário, ele só vai agravar a condição da já débil economia russa. E a invasão não foi tomada com o intuito de aceder a novos mercados ou matérias-primas mas tão somente cumprir o delírio expresso do nacionalismo étnico de restaurar uma Grande Rússia, de assegurar o seu “espaço vital”. Querer que a economia, pior, querer que uma realidade económica errada – a suposta crise estrutural – explique tudo, só pode resultar em não explicar nada.

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