Por Passa Palavra
Reza a lenda difundida pelos identitários que a ascensão social de alguém com uma dada identidade beneficia todas as outras pessoas dessa identidade. Mas será que o argumento sobrevive ao teste empírico?
A maior parte daquilo que ainda chamamos de esquerda, pela falta de um termo melhor, levanta a todo momento palavras de ordem como “por mais mulheres no poder” ou “por mais mulheres negras no poder”. Não é preciso ir muito longe para verificá-lo, já que isso se tornou um fato do cotidiano, onde quer que estejamos. Vejamos, porém, alguns casos que ajudam a elucidar as verdadeiras consequências de slogans como esses, para avaliarmos se a realização de tais palavras de ordem configura realmente um avanço para todo o público feminino e negro.
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Nossa primeira parada será no Reino Unido, onde Kemi Badenoch, uma pessoa que se enquadra perfeitamente nos critérios acima (mulher e negra), acaba de ser eleita líder do Partido Conservador. Trata-se da quarta mulher e da primeira pessoa negra a ocupar esse tipo de posição no Reino Unido. Mas quem é Kemi Badenoch? Ela integra a ala mais direitista do Partido Conservador, especialmente agressiva contra os imigrantes — muitos deles, logicamente, negros.
Badenoch nasceu em Londres, filha de pais nigerianos, da etnia iorubá. Viveu a infância em Lagos, capital da Nigéria, e nos Estados Unidos. Voltou ao Reino Unido aos 16 anos. Estudou engenharia da computação na Universidade de Sussex e possui um mestrado em engenharia. Começou a trabalhar como engenheira de software, ascendendo depois a cargos de gestão em instituições financeiras. Posteriormente bacharelou-se em direito. Pretendendo ingressar na Assembleia de Londres, disputou as eleições em 2010 e novamente em 2012, sem sucesso. Ficou em quinto lugar, contra três vagas disponíveis. Sua sorte começou a mudar quando a terceira e a quarta colocadas foram eleitas para o Parlamento em 2015. Assumiu um assento na Assembleia de Londres e conseguiu se reeleger em 2016. Em 2017, noutra eleição, ingressou no Parlamento.
Desde o início de sua carreira política, Badenoch apoiou o Brexit, cuja principal motivação, como se sabe, era conter a vaga migratória. Ideologicamente, Kemi situa-se na extrema-direita do Partido Conservador, adotando um perfil anti-identitário, hostil sobretudo aos transgêneros. Além disso, se opõe à teoria crítica da raça (critical race theory) e saiu em defesa do neocolonialismo britânico. Para completar o quadro, Badenoch prega a redução do Estado e a desregulamentação da economia.
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Ainda no Reino Unido, temos o exemplo de Suella Braverman, filha de dois imigrantes de origem indiana. Sua mãe (da etnia tâmil) emigrou para o Reino Unido a partir das Ilhas Maurício; seu pai, originário de Goa, a partir do Quênia. Como Badenoch, Suella tem um especial desprezo pelos transgêneros e uma especial admiração pelo neocolonialismo, tendo certa vez expressado sua gratidão pelos feitos do Império Britânico.
Braverman nasceu no Reino Unido e estudou direito em Cambridge, onde integrou a Cambridge University Conservative Association, uma associação de estudantes conservadores acusada de elitismo. Trabalhou na Procuradoria-Geral a partir de 2010 e conseguiu ingressar no Parlamento em 2015, após duas tentativas fracassadas, em 2005 e 2012. Tal como Badenoch, fez campanha pelo Brexit e não perde a oportunidade de declarar seu desprezo pela cultura woke e pelo “marxismo cultural”. Em 2020, Boris Johnson a nomeou Procuradora-Geral da Inglaterra e do País de Gales e Advogada-Geral para a Irlanda do Norte. Com a renúncia de Johnson, fracassou na disputa pela liderança do Partido Conservador: na ocasião declarou que, eleita primeira-ministra, priorizaria a redução de impostos, o corte de gastos e… a retirada do Reino Unido da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Além disso, prometeu pôr fim à entrada de imigrantes e aos pedidos de asilo.
Em setembro de 2022, durante o mandato de Liz Truss, foi nomeada Ministra do Interior e declarou à imprensa que “seu sonho e sua obsessão” era despachar os chamados asylum seekers do Reino Unido para Ruanda. Em 2023, já no governo de Rishi Sunak, outro descendente de indianos, Suella visitou Ruanda para inspecionar os alojamentos onde os refugiados seriam alocados. O plano havia sido idealizado ainda no governo de Boris Johnson, mas foi questionado nos tribunais britânicos e no Tribunal Europeu de Direitos Humanos, sendo postergado várias vezes até ser engavetado por Keir Starmer.
Entre as iniciativas legislativas de Suella estão uma lei para limitar o uso de tendas nas ruas por sem-teto, alegando que muitas pessoas querem viver nas ruas por uma escolha de “estilo de vida”. Quando manifestantes começaram a protestar contra a invasão da Faixa de Gaza por Israel, Braverman os chamou de “terroristas”.
Enfim, vistas sob diversos ângulos, as trajetórias de Badenoch e Braverman revelam uma oposição intransigente à inclusão e à melhoria das condições de vida das identidades das quais são provenientes e das camadas mais vulneráveis da sociedade, o que convida a muita reflexão.
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Vamos agora para o outro lado do planeta, o extremo-oriente. Em 1947, o domínio britânico da Índia foi dividido em dois Estados, um de maioria hindu e outro de maioria muçulmana, os modernos Estados da Índia e do Paquistão. Uma guerra eclodiu logo em seguida, entre os dois países recém-formados. Não tardou, entretanto, para que surgissem divisões étnicas no interior dos países inimigos. No caso do Paquistão, a população do Paquistão Oriental, de maioria bengali, embora configurasse o maior grupo demográfico, era sub-representada nos negócios, instituições de ensino, burocracia e exército, o que suscitou um novo conflito separatista em 1971. O nacionalismo bengali recebeu, é claro, o apoio da Índia. No fim, formou-se um novo Estado, Bangladesh, após outra guerra sangrenta.
O fundador do novo país, Sheikh Mujibur Rahman, conhecido como Mujib, tentou estabelecer uma planificação econômica de tipo soviético, à qual se atribui a grande fome de 1974. Além disso, estabeleceu uma ditadura de partido único, por ele liderada até que fosse assassinado em 1975, com vários membros de sua família, num golpe militar. O exército se ressentia da criação de um sanguinário grupo paramilitar por Mujib, usado pelo ditador para massacrar seu oponentes. Além disso, o governo tentava lidar com uma insurgência de esquerda, resultante de um racha na Liga Awami, o partido de Mujib.
O país submergiu então num longo período de golpes militares e assassinatos de presidentes, até a redemocratização em 1991. Em 1996, Sheikh Hasina, filha de Mujib e líder da Liga Awami, foi eleita primeira-ministra, ocupando o cargo até 2001. Foi reeleita em 2008, 2014, 2018 e 2024 (sob alegações de fraude).
No longo período em que esteve à frente do país, Hasina chegou a ser chamada de “a dama de ferro de Bangladesh”. O período entre 2009, quando tomou posse pela segunda vez, e 2024 foi marcado por um forte culto à personalidade (sua e de seu pai), autoritarismo (Hasina conseguiu, na prática, restabelecer o unipartidarismo) e escândalos de corrupção (o país é considerado o mais corrupto da Ásia depois do Afeganistão). Em julho deste ano, o país foi tomado por uma onda de protestos violentos, após a Suprema Corte de Bangladesh determinar o retorno de uma política de cotas que havia sido há muito revogada. A partir de então, 30% dos cargos públicos deveriam ser destinados a descendentes de veteranos da guerra de independência de Bangladesh, beneficiando sobretudo os membros da Liga Awami, causando a ira de milhares de jovens em todo o país. Para piorar, a organização estudantil da Liga Awami atuava, então, como uma milícia sanguinária, nos mesmos moldes da milícia comandada pelo pai de Hasina.
Perante os protestos, que passaram a pedir o restabelecimento da democracia, o que fez o governo? Responsabilizou a oposição pelas manifestações, acionou as forças armadas, colocou toques de recolher em vigor e deu ordem de atirar para matar. Além disso, desativou os serviços de internet no país e começou a espalhar corpos pelas ruas (mais de dois mil). Não foi o suficiente para restaurar a ordem e, em agosto, o Chefe do Estado-Maior do Exército anunciou a renúncia da primeira-ministra, sem que esta tenha feito qualquer declaração ao público, sendo apenas flagrada embarcando num voo para a Índia.
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Que dizer então de outra personagem, Alice Weidel, que divide a liderança da AfD (Alternativa para a Alemanha) com Tino Chrupalla? Weidel é uma lésbica assumida, que mantém uma relação de união estável com outra mulher, com quem adotou dois filhos. Isso não a impede de fazer parte de um partido protofascista.
Weidel estudou economia e administração de empresas e trabalhou como analista para o Goldman Sachs na Alemanha. Viveu na China por seis anos, trabalhando para o Bank of China. Após doutorar-se, trabalhou como vice-presidente da Allianz Global Investors em Frankfurt. Pouco depois ingressou na AfD, atraída pela retórica anti-Zona Euro do partido. Em 2017 esteve envolvida num escândalo envolvendo o bilionário Henning Conle, que teria doado mais de 130 mil euros para sua campanha através de laranjas. Desnecessário dizer que a visão de Weidel sobre a imigração é a mesma de outras lideranças de extrema-direita, como Kemi Badenoch. Weidel chegou a afirmar que o Brexit é um exemplo a ser seguido pela Alemanha. Ao mesmo tempo, é contra a existência do salário mínimo e é partidária da cartilha econômica neoliberal, tomando Margaret Thatcher como modelo. Apesar de ser lésbica, é contra o casamento homoafetivo, defendendo a proteção à família tradicional.
Aqui novamente é possível perceber que o fato de ser proveniente de uma dada identidade não faz da pessoa um representante autêntico dessa identidade. Como poderia uma lésbica conservadora, que defende a família tradicional, representar os interesses da comunidade LGBT? Não é preciso refletir muito para perceber que pessoas como Alice Weidel, ao mesmo tempo em que logram ascender socialmente, fazem todo o possível para transformar essa ascensão em privilégio, negando a todos os outros o acesso aos espaços decisórios e às instâncias de acumulação de riqueza.
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Façamos agora uma parada final, em Portugal. Um dos mais novos partidos de direita no país chama-se… Nova Direita, e foi fundado em 2022 por uma angolana chamada Ossanda Líber.
Ossanda nasceu em Luanda, capital da Angola, onde estudou direito antes de se mudar para Paris para prosseguir os estudos. Encontrando dificuldades financeiras, mudou-se em 2004 com o marido e a filha para Coimbra e depois Lisboa. Tendo interrompido os estudos jurídicos, resolveu empreender no ramo audiovisual, posteriormente investindo em outras áreas. Durante duas décadas, abriu e geriu seis empresas, colecionando ações trabalhistas na justiça, processos por insolvência e execuções.
Durante a pandemia da covid-19, resolveu investir na política: em 2021, candidatou-se à Câmara Municipal [Prefeitura] de Lisboa pelo movimento Somos Todos Lisboa. Não teve êxito. Em seguida ingressou no Aliança, um partido de direita, chegando ao cargo de vice-presidente da legenda. Nas eleições de 2022, novamente não foi eleita. Foi então que decidiu sair e fundar seu próprio partido, o Nova Direita, que se define como um movimento “patriótico, conservador e soberanista”. No site da legenda, o partido é assim definido por Ossanda: “Somos de direita. Sem medo nem complexos. Sem hesitações”. Ossanda já teceu elogios a Donald Trump e fez uma postagem criticando as vacinas na época da pandemia.
No tocante à imigração, a presidente do Nova Direita defende que seja “seletiva”, baseada em “critérios de viabilidade econômica e proximidade cultural”. Defende ainda a deportação de imigrantes que cometam crimes. Para não fugir à regra, acusa a esquerda de tentar impor sua agenda nos estabelecimentos educacionais, insurgindo-se contra o que chamou de “invasão ideológica”, notadamente no que diz respeito às questões de gênero.
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Boa parte da esquerda que adere aos discursos identitários, é claro, não tem nada disso em mente quando defende “mais mulheres no poder” ou “mais mulheres negras no poder”. A esquerda identitária não se vê no espelho ao deparar com perfis biográficos, profissionais e políticos como os delineados acima. É bem possível, inclusive, que o leitor deste texto esteja pensando: ah, mas são pessoas provenientes de grupos oprimidos que nunca tiveram um compromisso autêntico com as causas defendidas pelos movimentos identitários! Sem dúvida, mas não é essa a questão.
O fato de a esquerda identitária não se identificar com as trajetórias de pessoas como Badenoch, Hasina e Weidel não muda o fato de que essas pessoas estão realizando na prática aquilo que os identitários defendem no plano do discurso, embora esse discurso venha sempre envolto noutras roupagens. A esquerda identitária deveria olhar para esses exemplos e reavaliar sua própria visão de mundo, tal como o movimento negro, que deveria olhar para os regimes oligárquicos, cleptocráticos, ditatoriais e genocidas da África, reconhecendo neles a realização prática de palavras de ordem que, noutros contextos, aparecem repletas de idealismo e candura.
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No cerne do problema estão os dilemas e armadilhas da noção de representatividade, que continua a ser o pano de fundo das intervenções ideológicas dos identitários. Essa noção, que os movimentos de esquerda souberam tão bem criticar no passado, está hoje na ponta da língua de qualquer pessoa que pretenda se definir como “de esquerda”, “progressista” ou até anticapitalista. A crítica à representatividade deu lugar à apologia da representatividade.
Essa esquerda mira num alvo, mas acaba acertando sempre outro, e o resultado parece ser invariavelmente o mesmo. Em vez de promover uma ascensão social coletiva, no contexto de um amplo e radical movimento de transformação social, o que se obtém é a renovação da burguesia e da classe dos gestores. E os novos burgueses e gestores, em vez de empoderarem os grupos sociais oprimidos, acessam os corredores e salões frequentados pelas velhas elites apenas para fechar as portas detrás de si. Mas para a esquerda identitária pouco importa: é uma esquerda que não se cansa de errar.
Seria uma coincidência que o Passa Palavra tivesse publicado este artigo no mesmo dia das eleições presidenciais num dos países da América do Norte, em que uma candidata é uma mulher, filha de uma mãe indiana e de um pai jamaicano?