Por Passa Palavra
A atual greve dos caminhoneiros tem causado reflexos em diversos setores da sociedade, o que, somado ao grau de autonomia e radicalização das ações diretas, lhe dá um lugar ímpar na história recente da luta de classes no Brasil. A paralisação, que já dura mais de uma semana, fora de certo modo anunciada (e ignorada pelo governo federal) com manifestações e paralisações desta mesma categoria ao longo do ano de 2015, por exemplo aqui e aqui. Naquele período o movimento não teve um impacto social tão grande, mas já continha a configuração explosiva atual: a maioria dos manifestantes, assim como as atuais mobilizações, eram caminhoneiros autônomos, que não acreditam nas medidas paliativas como as relacionadas à tributação como uma resolução de sua situação de trabalho precarizado.
Centralizadas na questão da isenção de impostos visando desonerar os “custos estatais” do diesel, viabilizando a queda do preço sem prejudicar os ganhos das empresas do setor, as propostas do governo não são capazes de alterar as condições de trabalho degradantes que estes profissionais enfrentam. Porém, juntamente com os montantes deixados nos pedágios das estradas, os gastos com combustível compõem ao mesmo tempo um elemento central da composição dos gastos/ganhos monetários dos caminhoneiros. Essa centralidade do combustível nos resultados financeiros de seus trabalhos certamente explica o porquê de uma das principais reivindicações dos grevistas estar pautada na nova política da Petrobras quanto à formação do preço do combustível. Com este foco para além dos impostos estatais eles tocam em elementos profundos da formação dos preços, o que por si só lhes dá maior poder de pressão política. Além disso, embora com essa demanda eles deixem suas reivindicações nos braços do governo e do aparato estatal, ao invés de incidirem contra o patronato, a forma como são formuladas suas demandas traz necessariamente implicações diretas para os interesses dos acionistas privados da Petrobras e das empresas ligadas direta (distribuição, refino, venda, plataformas, equipamentos de sondagem, etc.) e indiretamente ao setor em termos da cadeia global de valor (construção de estradas, pontes, navios, portos, embalagens e produtos de plástico, etc.). Nesse sentido, o impacto econômico da greve dos caminhoneiros já é por si só explosivo em sua própria pauta imediata, tornando-se ainda mais radical se a isso somamos os impactos decorrentes da interrupção dos serviços de transporte de mercadorias, tāo amplamente noticiados desde o início da paralisação.
Não é possível negar que a redução da tributação atraia o interesse das empresas de transporte. Aliás, este viés foi muito enfatizado pela grande mídia (e até mesmo por muitos setores da esquerda) no sentido de sustentar a tese de que a greve seria melhor qualificada como um lockout. Tanto as experiências históricas de lockout quanto as centenas de relatos e análises de inúmeros pontos de bloqueio mostram que essa tese não reflete o caráter real do movimento atual e nem mesmo dos pretéritos. Por mais que o setor patronal tenha apoiado a greve, logo no início das negociações ficou evidente que eles não tinham o controle e o caráter duplo do movimento em muito foi ultrapassado pelas mobilizações autônomas dos caminhoneiros.
É necessário refletirmos que as características morfológicas desta categoria de trabalhadores é bastante complexa e não é tão simples instrumentalizá-la. Ruy Braga – um dos principais estudiosos do precariado brasileiro – afirma que existem mais de dois milhões de caminhoneiros no Brasil, se considerarmos a relação formal e informal de emprego. Nesta conta, estão incluídos os caminhoneiros autônomos e aqueles com uma relação formal de emprego. Esta é a divisão mais clara do movimento, mas mesmo sob a ótica destes dois grandes grupos é possível identificar mais subdivisões:
– Os caminhoneiros autônomos formam cerca de 70% do total da categoria, e dentre eles é preciso considerar aqueles que têm seu próprio caminhão, e, na expressão de Ruy Braga, os seus agregados. Neste último grupo estariam inseridos os trabalhadores que dentro de uma relação informal ou são contratados pelos autônomos, ou alugam seu caminhão, etc.
– Nos outros 30% restantes estão os empregados formais. Mas mesmo assim, formalizados, a maioria destes profissionais é terceirizada ou trabalha a partir da formação de cooperativas.
Para refletir ainda sobre a caracterização dos caminhoneiros é necessário ainda considerar que são profissionais que estão constantemente em movimento por todo o Brasil, não tendo um lugar fixo de trabalho no qual encontram as mesmas pessoas cotidianamente, estabelecendo assim relações pessoais e laços de solidariedade.
É de se perguntar então: qual foi o elemento de união e mobilização que possibilitou esta massificação do movimento Brasil afora? Esta categoria fragmentada mostra, desde suas manifestações de 2015, que os custos com o combustível têm tornado seu trabalho altamente imprevisível (algo que chega a um extremo com a nova política de formação do preço do diesel praticada pelo atual governo), inviabilizando o agendamento de fretes com preços realistas que garantam a lucratividade do serviço etc.
Embora a atual paralisação tenha demonstrado a importância deste setor para a economia e o funcionamento da sociedade em geral, isto não se reflete em termos de garantias legais com respeito às condições nacionais de exploração e de remuneração dos caminhoneiros, enfim, garantias quanto às suas condições de trabalho, que são degradantes. Não por acaso diversos relatos apontam um elemento “moral” na greve, que teria restituído a dignidade a muitos desses trabalhadores. A maioria dos caminhoneiros passa cerca de 19 dias por mês fora de casa, rodando cerca de 10.000 km e sequer tem uma jornada fixa de trabalho, chegando por vezes a rodar por 24 horas consecutivas. Desde 2015 está em vigor a popularmente chamada Lei do Caminhoneiro, que regulamenta as horas de descanso desse trabalhador, no entanto, como muitas outras leis, ela dificilmente é aplicada, e particularmente os caminhoneiros autônomos são os que encontram mais dificuldades em seguir esta legislação. Estes trabalhadores carecem de qualquer tipo de seguridade social, arcam absolutamente com todos os custos de desgaste do caminhão e peças, de mão de obra para ajudar a carregar e descarregar a carga, saúde, alimentação, insegurança nas estradas, seguro do caminhão e o mais oneroso, o combustível e pedágio. A única coisa que estes trabalhadores independentes e autônomos que trabalham com seu próprio caminhão têm de segurança é o preço combinado pelo frete. E como os próprios manifestantes (tanto de 2015 como os da atual mobilização) mostram, o custo com o combustível é a parte que mais compromete o valor deste frete.
Com a nova política de composição do preço do combustível que varia diariamente (explicada pelo DIEESE) o cálculo do frete tem se tornado inviável. Como tarifar um serviço se você não sabe o quanto gastará para realizar o mesmo? É o valor do combustível que regula os ganhos desta categoria, portanto, se o preço do combustível é imprevisível, o trabalhador perde o controle mínimo daqueles fatores que fazem parte de seu processo de trabalho. E desta forma, acaba perdendo também o controle de variáveis elementares de sua vida, como um planejamento familiar, a saúde, educação, moradia e, por fim, a dignidade inerente ao ethos do “trabalhador”. Foi certamente a confluência prática de condições de vida e demandas materiais que viabilizou a união política deste complexo, heterogêneo e multifacetado grupo de trabalhadores.
A cada novo aumento no preço dos combustíveis, menores são os lucros que restam (quando não se tornam prejuízos) e assim as condições de trabalho desta categoria, que sempre foram duras, vão se tornando cada vez mais degradantes. Com isso, a pressão por mais fretes e entregas mais rápidas leva a práticas como o uso de drogas lícitas e ilícitas para conseguir rodar mais quilômetros por dia. Se algumas dessas práticas já eram antigas conhecidas no combate individual aos percalços materiais e sentimentais da profissão, tornam-se cada vez mais corriqueiras, comprometendo cada vez mais a saúde deste trabalhador. Vale lembrar, ainda, que a equalização para baixo dos ganhos da categoria tem dificultado a aquisição de caminhões pelos trabalhadores assalariados do setor, o que tem levado a um envelhecimento da categoria em suas franjas autônomas: poucos conseguem, ainda jovens, realizar o sonho de ter seu próprio caminhão e ser “patrão de si mesmo”. Se nas décadas de 1970 e 1980 ser caminhoneiro era associado à possibilidade de autonomia e liberdade, hoje, com a renda líquida reduzida, estima-se que a média de idade entre os caminhoneiros autônomos é de 50 anos e de 40 anos entre os contratados. E ainda, muitos sequer têm a perspectiva de parar de trabalhar, pois não lhes foi possível estabelecer um plano de aposentadoria.
Dada essa configuração de condições de vida e possibilidades de atuação política visando melhorias nas condições de trabalho, a greve “selvagem” dos caminhoneiros deve ser apoiada pelas forças de esquerda. Seus elementos conservadores e mesmo reacionários, como o propalado apelo por uma intervenção militar e apoio ao candidato fascista à presidência da república, não devem ser vistos por uma ótica rígida, típica de certo marxismo brucutu que torce o nariz para tudo que não encaixa em seus modelos puros. Muito menos devemos cair nas acusações fáceis do identitarismo. Todo movimento de massas é cortado por contradições internas, que devem ser analisadas de perto (se possível ombro a ombro) e não descartadas.
Um elemento dessa greve que precisa ser observado é a articulação entre uma pauta econômica bem delimitada e progressista e uma pauta política difusa, conservadora e protofascista, que associa bandeiras como “Fora Temer” e tomada do poder via intervenção militar. Ora, quanto a essa pauta política, há que se ponderar a atuaçāo da direita e extrema-direita fazendo o que a esquerda e extrema-esquerda não fizeram: se aproximando e construindo a necessária rede de solidariedade à greve. Para além da atuaçāo pontual nesta greve, que alternativas políticas a esquerda apresentou para estes trabalhadores? A falta de horizontes de perspectivas à esquerda cumpre papel de vácuo a ser preenchido pelos horizontes mais nefastos da direita, e isso se torna tão mais trágico quanto mais percebemos, nas falas e posições destes trabalhadores que pedem intervenção militar, que eles não pedem uma Ditadura e que, em verdade, sua confusão política chega ao ponto de que poderia-se substituir, em seu léxico, a palavra “intervenção militar” por “revolução” sem grandes prejuízos para a narrativa. O que eles querem mesmo é uma mudança profunda das relações de trabalho e no sistema de representação política. A resposta débil das forças estatais à greve nos demonstraram que atualmente não há governo, nem no sentido prático nem no sentido de legitimidade frente ao povo. Por isso a guerra contra a greve está sendo travada na mídia: ou a aparência de que há governo vence ou se instaura um caos social a ser aproveitado por sabe-se lá quais forças.
Dado o cenário conjuntural atual e suas contradições, nos parece que a hora é de apoiar de todas as formas possíveis a greve dos caminhoneiros, estendendo-a rumo a uma greve geral que já existe, em alguma medida, “extra-oficialmente”. Nesse sentido, a hora é de mobilizar os locais de trabalho fomentando greves em mais e mais setores ao mesmo tempo em que se articulam redes de solidariedade para com os grevistas, a começar pelos próprios caminhoneiros, que infelizmente têm sido vistos por alguns grupos de esquerda como se fossem pura e simplesmente forças retrógradas cuja atuação pode legitimar um novo golpe militar no país. Não há radicalização à esquerda que não venha acompanhada de radicalização à direita. No emaranhado dos conflitos sociais atuais, temer a radicalização à direita ficando inertes e pasmos não é o papel que a história exige atualmente das forças anticapitalistas. Ao contrário, é a melhor forma de abrir a estrada para o desfile dos fascistas.
As obras que ilustram o artigo são de Takashi Murakami.
Este artigo assinado pelo Passa Palavra deixa-me perplexo.
Por um lado, trata-se de uma situação típica do fascismo em ascensão. Patrões, muitos deles pequenos patrões, mobilizam os seus trabalhadores, o que reforça o quadro social das empresas. E mesmo que as maiores empresas de transporte rodoviário tivessem sido ultrapassadas nos protestos pelos caminhoneiros autónomos, como muitos deles angariam informalmente auxiliares, isto converte-os em pequenos patrões, e o artigo é confuso ao classificar uns e outros como trabalhadores. Ora, a mobilização de trabalhadores por iniciativa dos patrões, e especialmente de pequenos patrões, tem constituído um dos mecanismos sociais promotores da expansão do fascismo.
É nesta perspectiva que deve avaliar-se o apoio prestado ao movimento por Bolsonaro ou pelos seus arautos. Até agora Bolsonaro limitou-se a ser um político da extrema-direita. Ele representa a ala mais truculenta da extrema-direita, mas sem sair desse terreno. Para se converter num fascista falta-lhe um programa social. Pode consegui-lo com este movimento. A análise do artigo deixa-me mais perplexo ainda, porque recorre às noções de vácuo de uma física arcaica para explicar os movimentos sociais. Devia ser a extrema-esquerda a lá estar, raciocina o Passa Palavra, mas como não está, está a extrema-direita. Já Gramsci, quando faltava apenas um ano para a implantação do fascismo em Itália, apresentou um raciocínio semelhante (ver os seus artigos em L’Ordine Nuovo de 2 e 6 de Janeiro, 19 de Fevereiro e 9 de Agosto de 1921, e é neste contexto que deve apreciar-se a sua tentativa falhada de se encontrar com D’Annunzio), e anos depois, no exílio moscovita, Togliatti continuava a defender o mesmo argumento (ver a primeira das suas Oito Lições sobre o fascismo italiano). Os grupos sociais, porém, e sobretudo quando estão empenhados em movimentos e lutas, não são marionetes que possam ser puxadas para um lado quando não são puxadas para outro. Têm uma dinâmica própria, que o próprio movimento se encarrega de mostrar.
Ora, quando no âmbito do movimento se apela à intervenção dos militares está a indicar-se um dos aspectos fundamentais do fascismo clássico, a articulação entre um pólo radical, o pólo da agitação social, e outro pólo representante das forças da ordem. E esta articulação é sobremaneira importante agora, quando o movimento dos caminhoneiros se encarregou de mostrar que o governo simplesmente não governa. A falência das elites políticas tem sempre servido aos fascistas para legitimarem a sua pretensão a nova elite. Todavia, e este é o terceiro aspecto a deixar-me perplexo, apesar de o discurso emanado directamente do próprio movimento evidenciar a sua dinâmica, o artigo põe de lado essas expressões ideológicas como se fossem coisas de somenos.
Nesta situação, e surge aqui um quarto elemento de perplexidade, o facto de o movimento ter ultrapassado a categoria profissional que o iniciou e se ter estendido a outros sectores representará um indício de que as suas limitações originárias estão a ser ultrapassadas? Ou demonstrará a expansão de um quadro de mobilização caracterizadamente fascista?
É certo que as tão evocadas lições da história são sempre insuficientes, ou mesmo enganadoras, porque a história, quando o é, caracteriza-se precisamente por não se repetir. Mas também é certo que dar tiros no escuro não é a melhor maneira de acertar no alvo.
Considero as ponderações do JB de primeira importância, o que torna urgente o seu debate. Pois, vários setores da esquerda passam neste momento a buscar formas de tentar influenciar ideologicamente o movimento. É possível? É uma ilusão? Nunca foi tão urgente realizar um diagnóstico correto. Eu próprio estive dividido é só me manifestei quando acreditei que o movimento poderia ser “disputado”. Mas, não tenho medo de mudar minha posição se ela estiver errad e, que seja a tempo. Peço que o Passapalavra, os comentaristas habituais e não habituais se manifestem, pois a situação é grave, estamos prestes a entrar num vácuo de poder institucional…
comentário muito lúcido. só espero que o analista esteja errado. nossa democracia de fachada é um fiasco. no entanto, criticá-la já parece insuficiente. a cadela, sempre no cio, nunca deve ser ignorada/esquecida… o termômetro para o risco fascista parece-me acionado quando eu começo a simpatizar com posições moderadas do tipo: ‘a democracia é o pior dos mundos, salvo suas alternativas’
Não me parece claro que haja uma mobilização autônoma dos trabalhadores do transporte de cargas. Quando adotamos a ideologia do movimento de que são caminhoneiros misturamos os donos de caminhões com esses trabalhadores, como se tivessem os mesmos interesses quando de fato não os tem. Embora possam existir as pautas relacionadas diretamente a melhoria de condições de trabalho não parecem ser elas a se destacar na construção da greve, porque elas implicariam em entrar em contradição entre o chamado grupo de caminhoneiros, nos quais um são responsáveis pelas condições de trabalho dos outros.
Não fica claro para mim de que maneira seria possível uma greve geral gestada dessa maneira, a esperança seria em rachar este movimento dos caminhoneiros à esquerda? É a função da esquerda disputar os rumos de toda mobilização social que aparece? Estes rumos seriam objetos de disputa ou estão determinados pelo processo social gerador do ato?
O comentário de João Bernardo reforça o receio atual de praticamente toda a esquerda brasileira, de uma expansão das mobilizações para outros setores engrossar o caldo do caos social legitimador de uma intervenção – e até pior, de reforço das tendências fascistas hoje presentes no Brasil. Embora seja consistente sua argumentação sobre os caminhoneiros (sua composição social e o caráter de sua movimentação política) discordo de algumas formulações e conclusões políticas tiradas.
Primeiro, a ideia de que não há disputa possível dos rumos do movimento leva a um imobilismo, como se o movimento tivesse uma essência imutável e não adiantasse querer mudá-la, restando tāo somente observar qual é sua “dinâmica própria”. Se assim for com todos os movimentos cada organização só poderia organizar seus próprios atos e não haveria cooptação de lideranças e assimilação de lutas iniciadas por outras forças políticas, e sabemos que não é assim que as lutas sociais se desdobram.
Em segundo lugar, mesmo que se chegue à conclusão de que não se pode fazer frente à presença das igrejas, da influência patronal e da hegemonia de ideologias fascistas no bojo dos grevistas caminhoneiros, ainda assim um chamado à greve geral não implica necessariamente nem que os demais trabalhadores em greve sejam solidários, afinados e confluentes com as ideologias e práticas dos caminhoneiros. Joāo critica a metáfora do vácuo e coloca em seu lugar outra, a do “tiro no escuro”. Penso que chamar greve geral e redes de solidariedade aos grevistas (não só caminhoneiros) não é necessariamente um tiro no escuro, não só porque acredito que a classe trabalhadora ainda não está engolida pelo fascismo mas também porque o fato de a história ser algo aberto não significa que o que está à frente seja algo que não se possa prever senāo com um tiro no escuro. Aliás, pode-se ver a coisa com mais otimismo, no sentido de que as demais franjas da classe trabalhadora têm outros históricos de luta e de organização à esquerda e, além disso, que saberão ou poderão vir a saber identificar o caráter patronal de parte da greve dos caminhoneiros forçando-a a seguir rumos à esquerda. Ou seja, uma generalização da greve poderia tornar minoritários os setores fascistas. Se não pudermos acreditar na capacidade avaliativa e de ação social da classe e não confiarmos que podemos influenciar os rumos da história então nos resta o suicídio político enquanto pretensos anticapitalistas. De todo modo, penso que ainda que seja um tiro no escuro, é melhor que sejamos nós a dá-lo do que deixar que apenas outras forças decidam sozinhas e sem reação o rumo dos acontecimentos – ainda que isso implique o risco de estarmos a contribuir com a expansão de um quadro de mobilização caracterizadamente fascista.
Terceiro, embora Joāo tenha razão ao afirmar que o artigo e as análises em geral mesclam num só saco como “trabalhadores” setores distintos, me parece que a hegemonia dessa greve é ou foi (notícias informam forte desmobilização, e parecem ser confiáveis) dos trabalhadores, portanto há no mínimo confluência de interesses econômicos. Daí ser interessante o ponto do texto que fala em uma bifurcação de pautas econômicas à esquerda e pautas políticas à direita. Além disso, por se tratar de um setor econômico chave – CGP, Condições Gerais de Produção – a greve tem potencialidades de reverberação econômica por todo o tecido social, envolvendo o restante dos trabalhadores e podendo gerar uma situação historicamente incomum no país de parada geral dos processos capitalistas. Frente a isso volto aos pontos anteriores sobre nossas possibilidades de influência no rumo dos acontecimentos. Seria melhor nada fazermos e torcer para que tudo volte à normalidade? Ou ainda, se caracteriza-se o movimento como protofascista, então devemos agir de modo a desarticulá-lo? Afinal que eu saiba há uma insígnia histórica dentre os anticapitalistas segundo a qual fascismo se combate.
“Hoje, cerca de 554 mil unidades estão concentrados nas mãos de 374 mil motoristas autônomos. Ou seja: esses profissionais sem empresa constituída concentram, em média, 1,5 caminhão cada um. A participação dos autônomos na frota total do Brasil – que hoje soma 1,66 milhão de veículos – é de pouco mais de um terço do total. ” (https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,hipotese-de-locaute-para-a-greve-dos-caminhoneiros-esbarra-em-pulverizacao,70002327133). Ter a propriedade de instrumentos de trabalho como motocicletas, carros de passeio e, talvez, veículos utilitários de pequeno porte como ferramenta de trabalho talvez não descaracterize a condição de trabalhadores e, acima de tudo, de trabalhadores “precarizados e presos a uma situação de submissão semi-salarial” (http://passapalavra.info/2018/05/119926). Todavia, ter a propriedade de um instrumento de trabalho como um caminhão, um bem normalmente de elevado custo (mesmo e principalmente se adquirido por financiamento. Veja aqui o preço dos caminhões mais barato e de menor tamanho e capacidade: https://www.tabelafipebrasil.com/caminhoes/mais-baratos) colocaria nas mesmas condições seus proprietários aos “proprietários” de motocicletas e carros (ainda mais sabendo que a média de propriedade de caminhões é de 1,5 caminhão por motorista, o que significa, em algum momento, há exploração de outro trabalhador…). Além disso, se apenas um terço do total de caminhões está nas mãos de caminhoneiros “autônomos” (tive a impressão que em alguns artigos uma certa invocação a um pretenso espírito libertário desta autonomia caminhoneira…), esta autonomia poderia caracterizar todo o movimento?
Outra dúvida (talvez a principal): além das diversas manifestações nacionalistas e de pedidos de intervenção manifestadas pelos caminhoneiros, o que significaria a relativa tranquilidade das forças repressoras como das polícias e dos militares? Quem é manifestante sabe a bestialidade com que as forças repressoras costumam agir por menores e mais banais que sejam as pautas reivindicatórias. Se ocupar o vão do MASP é motivo para uma saraivada de bolas de borracha e bombas de gás lacrimogênio, como tantas rodovias poderam ser tranquilimente fechadas por dias? Só vi mesmo repressão policial em face a manifestações de motociclistas aqui na periferia de São Paulo…
Talvez um importante indicativo possa ter sido dado pelo ministro da Defesa, general Joaquim Silva e Luna em entrevista ao Estado: “O ministro lembrou que as Forças Armadas só agem dentro da legalidade e declarou que o “único caminho” para os militares chegarem ao poder “é pelo voto”. Primeiro militar a assumir o Ministério da Defesa, o general Silva e Luna disse ainda que as Forças Armadas estão 100% empenhadas no estabelecimento do abastecimento do País.” (https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,unico-caminho-de-acesso-ao-poder-e-pelo-voto-diz-ministro-da-defesa,70002330333). Lembremos que o nazismo ascendeu ao poder através das vias legais…
Defendo em outro canto que é impossível “blocar” a caracterização do movimento com base pura e simplesmente na composição da categoria, mesmo porque nem os especialistas conseguem chegar a acordo quanto a ela. Isto reflete muito cabalmente o fenômeno da precarização, e mais especificamente o da pejotização, que atravessam o setor inteiro: fica cada vez mais difícil separar “patrão” de “peão” com base apenas na posição na estrutura produtiva. O fato é que as divisões internas da categoria, somente, não dão conta de explicar o caráter do movimento. Precisa cruzar isto com renda e processos de trabalho para separar o joio do trigo.
Defendo agora, noutra perspectiva, que há vários sentidos políticos sendo lançados sobre o movimento, e que todos os campos políticos tentam aproveitá-lo de uma ou de outra forma.
Bolsonaro e Silas Malafaia, por exemplo, são contrários às paralisações. Da mesma forma como para entender o fascismo clássico é preciso entre outras coisas ler as propostas de seus ideólogos (Evola, Corradini etc.), hoje isto se faz acompanhando os youtubers certos, porque este tem sido o meio de eleição para a propagação das propostas fascistas. Neste campo, Bolsonaro, Malafaia e outros “mitos” fascistas têm sido duramente criticados, e o receio de perda de votos para Ciro Gomes — sim, os votos de Bolsonaro orbitam entre Lula, o próprio Bolsonaro e Ciro Gomes a depender da conjuntura — tem levado outros youtubers do mesmo campo a “racionalizar” o posicionamento de Bolsonaro para minimizar os danos.
Os fascistas, ao contrário do que se esperava, saíram rachados do processo. Se é aqui que os fascistas esperavam encontrar um lastro social, não deu certo, apesar de seus esforços. Sobre tais esforços, que não são apenas midiáticos, um exemplo basta. Num bloqueio na Bahia havia denúncias de que umas figuras estavam ameaçando jogar a polícia em cima dos caminhoneiros se não botassem a frase “intervenção militar” em seus veículos. Ao mesmo tempo em que havia caminhoneiros “celetistas” dizendo que “receberam orientação da empresa para parar”, havia outros, tanto “celetistas” quanto “autônomos”, dizendo que haviam parado por conta própria. Muita gente aparecendo para se solidarizar, tanto à esquerda quanto à direita.
Em outro campo político, os setores da esquerda mais próximos ao PT e ao PCdoB fizeram por sua parte um movimento duplo: de um lado, desde o primeiro dia mobilizaram todas as forças de sua militância para desqualificar o movimento como locaute puro e simples, ignorando a diversidade da composição da categoria; de outro, corroborando o ditado que critica quem “fica suado com o trabalho dos outros”, aproveitaram o clima causado por uma mobilização que não conseguiram nem controlar nem gorar para queimar a política de preços da Petrobras e pedir a cabeça de Pedro Parente. Ou seja: criticam o movimento, mas capitalizam em cima dele.
Defendi, em outro canto, que o momento político pós-2013 é marcado simultaneamente por recusas e ensaios, ou seja, tanto pela negação de certas formas e instrumentos de luta quanto pela criação de outros novos, tudo na base da tentativa e erro. A greve dos caminhoneiros reforçou-me esta conclusão.
“O único caminho para os militares chegarem ao poder é pelo voto”, diz o General Ministro da Defesa (da defesa?????)… Este é o mesmo voto pelo qual TODOS, de Bolsonaro à Boulos, buscam o poder (poder?????)… Ante este e outros tantos turbilhões de fatos (fatos…), buscamos fagulhas de esperanças onde o fogo já não queima. Negamos que o processo que ora se desenrola não está, nem nunca esteve, sob nossa condução e sim está nos conduzindo a uma “revolta no interior da coesão, chamando assim atenção para sua ambivalência, ao mesmo tempo radical e conservador. (…) O fascismo mobilizou a classe trabalhadora para efectuar uma revolução capitalista contra a burguesia, ou talvez mais exactamente, apesar da burguesia” (João Bernardo – Labirintos do Fascismo). Este é o processo, e é um processo mundial, mas o “espírito de Gramsci” que vive em nós persiste a nos empurrar não a um labirinto, mas a um “paredon”…
João Bernardo, a sua análise teórica e histórica está muito boa, disso não há dúvida. Mas, toda reconstrução histórica se dá sobre situações já “resolvidas”. É possível reconstituir o quadro de opções e possibilidades que se colocavam a cada momento para as lutas, bem como as consequências de cada decisão prática tomada. Isso nos trás inúmeras lições sobre o que fazer nas lutas presentes, mas, principalmente, sobre o que não fazer, como bem colocou Manolo em algum momento. A questão que me parece crucial é que parece claro que o movimento dos caminhoneiros não é homogêneo nem socialmente, nem ideologicamente, tanto pelos “números” discutidos minuciosamente pelo Manolo no outro artigo, quanto pelas declarações que tenho lido em inúmeras reportagens, que têm saído com pequenas entrevistas com caminhoneiros grevistas. Há indícios de uma quantidade significativa de caminhoneiros que podem ser identificados empiricamente como proletários, ainda que sociologicamente tenham se mobilizado como pequenos patrões, o que te dá razão quanto à hegemonia das empresas. Por outro lado, não estamos nós constantemente denunciando o controle subjetivo que a pejotização, e outras formas jurídicas que escamoteiam o caráter proletário do trabalho precarizado, exerce sobre os trabalhadores? Não estamos nós há tempos buscando formas de intervir na subjetividade destes estratos sociais, contra as novas formas de dominação de classe trazidas pela reestruturação produtiva? Subjetividades não podem ser transformadas? É lógico que não é qualquer subjetividade que pode ser transformada, nem em qualquer contexto. Não se transforma um fascista convicto e praticante em um revolucionário, com uma “boa conversa”. Mas, será que nesse mais de 1 milhão de indivíduos que compõe a heterogênea categoria dos caminhoneiros, todos estão fascistizados? Mesmo que a análise do Passapalavra esteja totalmente equivocada, ao menos este ponto não estaria correto?
“Temer a radicalização à direita ficando inertes e pasmos não é o papel que a história exige atualmente das forças anticapitalistas.”
Está claro que você deixou um espaço para a dúvida, em sua breve análise, quanto a inevitabilidade de a história se repetir. Mas, entre isso e “dar tiros no escuro”, não há outra alternativa?
Juba não sabe trabalhar com médias, e quer dar meio caminhão a cada autônomo que tenha seu próprio veículo. Só posso entender assim a afirmação seca de que “em algum momento, há exploração de outro trabalhador” sem qualquer outra consideração, distribuindo a exploração entre todos os autônomos.
Como ninguém dirige caminhão serrado ao meio, parece-me interessante fazer alguns exercícios matemáticos, tendo como base os números da reportagem. Que fique claro: não penso em qualquer “autonomismo” do caminhoneiro classificado como “por conta própria” só porque são usualmente chamados de “autônomos”. Quero apenas ilustrar cenários possíveis da distribuição da frota entre eles.
a) Se há 554 mil veículos na frota dos autônomos e há 374 mil proprietários, é razoável supor que todos eles tenham pelo menos um veículo.
b) Se tirarmos 374 mil veículos da frota total de 554 mil, sobram 180 mil (48,12% da frota). É com estes “veículos que sobram” que farei dois exercícios.
c) Num cenário hipotético em que os pequenos proprietários de frotas têm apenas dois caminhões, pelos resultados anteriores verifica-se que dos 374 mil motoristas autônomos há pelo menos 194 mil deles, ou 51,87% do total, que só teriam um veículo, e outros 180 mil, ou 48,12% do total, que teriam dois veículos.
d) Pode-se também fazer um cenário hipotético em que há proprietários de um só veículo, proprietários de dois veículos e proprietários de três veículos. Aí, novamente “brincando com números”, seria preciso dividir os 180 mil caminhões “sobrantes” em três grupos de 60 mil veículos cada para que fique mais fácil de visualizar a operação. Como todos os 374 mil caminhoneiros têm um veículo, o grupo de proprietários de dois veículos seria composto por 60 mil indivíduos que se apropriariam de um dos três grupos de 60 mil veículos, e o grupo de proprietários de trẽs veículos seria composto por outros 60 mil indivíduos que se apropriariam dos dois grupos restantes de 60 mil veículos. Resultado do exercício: 60 mil proprietários de três veículos (16,04% do total), 60 mil proprietários de dois veículos (16,04% do total) e 254 mil proprietários de um só veículo (67,91% do total).
Poderia seguir assim, mas este último exercício é bem ilustrativo e mostra que quanto maior for a frota de um pequeno número de proprietários, mais amplo será o número daqueles que são donos de um só caminhão. É possível, por exemplo, que um número considerável de caminhoneiros “autônomos” usem o veículo de outra pessoa pagando diárias, porcentagem do frete etc., mas trabalhar com esta variável levaria a uma complexificação desnecessária do argumento. Sabemos além disto que a composição da concentração veicular não é assim tão exata, que há proprietários de quatro, cinco veículos, que as proporções são desiguais etc. O que fiz foi apenas um exercício matemático para demonstrar os efeitos da concentração da frota, que médias simples não explicitam.
Insisto, como disse em outra oportunidade, que com a pejotização do assalariamento, com as “coopergatos” atuando no setor etc. fica difícil separar alhos de bugalhos.
Já que Irado me incitou a reflectir de novo sobre a questão, aqui vai.
Decerto a condição de trabalhador explorado não se define apenas, nem sobretudo, pela relação jurídica do assalariamento. Por um lado, os gestores podem apresentar-se juridicamente como assalariados quando na realidade são capitalistas. Por outro lado, se no mercado de trabalho as empresas funcionarem como oligopsonistas ou mesmo monopsonistas (poucas compradoras ou uma só compradora), muitos trabalhadores terceirizados são na realidade prática assalariados.
É precisamente a este respeito que o comentário de Juba me parece esclarecedor, já que ressaltou a diferença entre o investimento necessário para adquirir uma moto ou até um automóvel e para adquirir um caminhão. É nesta perspectiva que devemos considerar se um caminhoneiro autónomo, que seja proprietário do seu veículo e não assalarie nenhum ajudante, pode ser considerado como um assalariado de facto. Por outras palavras, tratar-se-á de uma situação social equivalente à dos uberizados? Ou de uma situação social equivalente à do artesanato arcaico?
A este respeito parecem-me pouco úteis os malabarismos com números, porque um caminhoneiro que seja proprietário de um único veículo pode conduzi-lo em certos trajectos, mas assalariar um condutor para outros trajectos. Neste caso ele já é um pequeno patrão. Sucede ainda que um caminhoneiro possa ter um único veículo e seja sempre ele a conduzi-lo, mas assalarie ajudantes, nomeadamente para tarefas de carga e descarga e outros tipos de assistência. Para complicar as coisas, há as cooperativas fictícias, tão frequentes no Brasil. Assim, o movimento dos caminhoneiros é muito diferente daquilo que classicamente tem sido denominado greve, porque enquanto uma greve diz respeito apenas aos trabalhadores explorados, o movimento dos caminhoneiros envolve tanto trabalhadores, com diferentes estatutos jurídicos, como patrões, alguns grandes e muitos pequenos.
Mas importa-me aqui ressaltar que esta categoria profissional não se limita a incluir situações de emprego muito diversas. A questão fundamental é que as fronteiras entre essas situações nem são claras nem são estanques, o que permite aos patrões, e nomeadamente aos pequenos patrões, tecer uma rede de influências muito mais vasta e profunda do que sucede quando existe uma demarcação nítida entre empresas e assalariados. Ora, como escrevi no meu comentário anterior, a mobilização de trabalhadores por iniciativa dos patrões, e especialmente de pequenos patrões, tem constituído um dos mecanismos sociais promotores da expansão do fascismo.
A questão, porém, é ainda mais complexa, já que por si só a condição proletária dos participantes num movimento não constitui nenhuma garantia política. Aqui seria bom que os brasileiros deixassem de olhar para o umbigo e vissem o que se passa no resto do mundo. Ora, na Europa e nos Estados Unidos são os trabalhadores mais sujeitos à mais-valia absoluta, aqueles que dispõem de escassa qualificação profissional ou cujas qualificações já não correspondem às novas técnicas e que trabalham em sectores em crise ou em risco de serem transplantados para outros países, são precisamente estes trabalhadores quem tem constituído a base eleitoral da extrema-direita ou mesmo do fascismo. Foi graças aos votos destes trabalhadores que Trump foi eleito para a presidência dos Estados Unidos, foram eles quem assegurou a maioria no referendo que decidiu a saída do Reino Unido da União Europeia, são eles que garantem a importância política que Marine Le Pen conseguiu em França, e não faltam exemplos que permitiriam prolongar a lista. Ora, o nacionalismo constitui a base comum desta extrema-direita e do fascismo, o que torna a situação mais delicada ainda no Brasil, um país onde o nacionalismo é tão entranhado nas pessoas da extrema-esquerda que para elas ser nacionalista é tão natural como respirar. O que pensar, então, da convergência entre o movimento dos caminhoneiros e a greve dos petroleiros?
As experiências históricas podem não indicar o caminho a seguir, mas alertam-nos para os caminhos a não seguir.
o que me chama a atenção, não por novidade mas por ter aparecido com força, é a divisão campo/metrópolis em toda esta questão. E isso para mim se relaciona muito com o comentário anterior do João Bernardo com relação aos processos ocorridos em outros países: uma clivagem entre cosmopolitanismo e nacionalismo. Vemos que com o fim do ciclo de lutas do movimentos camponês no Brasil, o campo se torna um território quase completamente alheio à extrema-esquerda, e concordo com o texto do Manolo quando diz que o recurso aos especialistas, aos números, à análises superficiais, o que revelam é que no nosso campo não se tinha a menor ideia do que estava ocorrendo (não estávamos sós quanto a isso, é certo). Penso aqui “campo” incluídas as pequenas e médias cidades.
E creio que é justamente neste território onde o fascismo brasileiro tem mais força, talvez como resposta ainda efetiva ao movimento camponês de algumas décadas atrás. Vimos notícias de “agromilicias”, da organização social das igrejas nestes territórios, e sobre as ameaças aos caminhoneiros que queriam deixar os bloqueios.
Não vejo os caminhoneiros como um setor fascista, embora historicamente, por tudo o que o João Bernardo expõe, tem uma facilidade em entrar sob a órbita política dos fascistas e da extrema-direita. Justamente por sua posição no processo produtivo, são bastante capazes de travar a economia e gerar situações de instabilidade, mas por sua fragmentação e dispersão, não parecem formar eles mesmos os grupos de choque dos fascistas.
E com o risco de errar a pergunta, mas compartilhando-a (quem sabe alguém não a melhora?): é de nosso interesse que a extrema-esquerda volte a fortalecer-se no campo, ou são as grandes cidades nosso lugar estratégico na atual organização socio-econômica?
Além dos malabarismos matemáticos, os retóricos: através de um fragmento discursivo, evidencia-se a aparência, em detrimento da essência, para se fazer a crítica e, além de silenciar sobre os questionamentos mais pertinentes (como, além do escancarado pleito de intervenção militar por parte dos caminhoneiros, a questão do velado apoio militar aos caminhoneiros), ao mesmo tempo propõe a aparência como explicação da essência…
Ortodoxia ou não, a maioria dos caminhoneiros têm um papel no capitalismo moderno que mais me parece com aqueles camponeses descritos por Marx e Engels. Mas há quem os veja como os camponeses de Proudhon… De certa forma as esperanças são compreensíveis… Se foram os camponeses foram (se é que foram eles…) a principal força social da Revolução Russa, talvez os caminhoneiros façam suas vezes nos dias de hoje… e, quem sabe, a esperança é a última que morre…, sem que se repita um “nacional-bolchevismo”…
De fato, não só no que diz respeito a caminhoneiros, a pejotização mistura precarizados e pequenos patrões. Em especial quando o investimento em meios de produção seja pré-requisito para a atividade profissional autônoma. Nisto, por exemplo, uberistas e caminhoneiros comparam-se apenas pelas diferenças: ainda não há, que eu saiba, nenhum mercado massivo de aluguel/arrendamento de caminhões como o há para veículos de passeio, e esta é a porta de entrada de muitos precarizados nas malhas da Uber. Caminhão no Brasil via de regra compra-se, e o aluguel/arrendamento existe, mas é irrisório. E mesmo na comparação entre a mensalidade do carro alugado e a compra do caminhão o valor da parcela é desproporcional: a parcela do caminhão oscila entre R$ 3.500,00 a R$ 4.500,00 mensais para o pagamento em 60 vezes de um veículo que custa R$ 180.000,00, enquanto a soma mensal das diárias de um carro de passeio podia variar, em 2016, entre R$ 1.400,00 a R$ 3.000,00, já com os descontos intermediados pela Uber para que as locadoras auferissem ganhos de escala pelo direcionamento dos motoristas a elas. De passagem, é isto, entre outras coisas, o que me leva a considerar que os “autônomos” / “por conta própria” oscilam entre o artesanato arcaico e o assalariamento mascarado de pejotistas por força do oligopsônio dos embarcadores ou destinatários. A este último tipo de “por conta própria” os caminhoneiros chamam de “agregado”, e os administradores das transportadoras o chamam de “contratado em regime BYOD (bring your own device)”.
No caso específico deste movimento de caminhoneiros não se pode esquecer que a maioria das fontes consultadas ou dá papel de destaque aos assalariados, aos celetistas, em meio à categoria, ou por outro lado dá primazia dos “autônomos”, dos “por conta própria”, mas evidenciam as diversas situações laborais agrupadas nesta categoria, sobre as quais já se falou muito aqui nos comentários. Ressalto, entretanto, que via de regra as operações de carga e descarga correm por conta de embarcadores e destinatários, não dos próprios caminhoneiros.
Disto tudo, ficam questões importantes. Que fazer quando há mobilização em categorias onde assalariados e pequenos patrões misturam-se no mesmo processo de trabalho? Ainda mais quando a condição proletária de fato não dá qualquer garantia política, situação ainda mais agravada em setores como o do transporte rodoviário, onde a extração da mais-valia se dá principalmente por meio dos processos arcaicos característicos da mais-valia absoluta? Parar e assistir? Debater a composição de classe no setor antes de intervir de algum modo no debate público? Penso que a ação sem a reflexão é cega, mas a reflexão sem a ação é inerte.
Me parece, adicionalmente, que os petroleiros aliaram-se conjunturalmente aos caminhoneiros não pelo nacionalismo — a “defesa da Petrobras” é discurso de dirigente sindical — mas para defender seus empregos e pressionar pelo barateamento de combustíveis — afinal, petroleiro também cozinha, também dirige etc.. Eles sabem que o aumento proposital da capacidade ociosa da empresa nos últimos anos tende a desempregá-los, e que o aumento nos combustíveis causado pela atual política de preços corrói também seus salários. Para piorar, com a suspensão do PDV e a adoção da “demissão consensual” implementada pela reforma trabalhista como nova política de enxugamento do quadro funcional da empresa, sequer a saída voluntária do emprego é-lhes vantajosa. Ao menos é o que me dizem os que conheço, que de politizados não têm nada.
Ps: do jeito que as coisas vão, logo, logo, as esquerdas vão estar lutando por uma “identidade” caminhoneira…
Se Juba se afeiçoasse menos à retórica e ao próprio ego e tivesse se dado ao trabalho de ver o que apresentei em outro artigo que linkei aqui incessantes vezes, veria inclusive que respondi lá muito dos questionamentos que apresenta. Mas como não direcionei-lhe a resposta e Narciso acha feio o que não é espelho, ter como base as boas informações que trouxe ao debate para fazer algumas reflexões é “tomar a aparência pela essência”, frase fácil que poucos se dão ao trabalho de levar às últimas consequências.
Pergunta a rainha malvada a seu espelho:
– espelho, espelho meu…, existe alguém mais bela do que eu?
Ao que o espelho responde:
– sim, Branca de Neve…
E para quem gosta de links…: https://m.bebeatual.com/historias-branca-de-neve-e-os-sete-anoes_52
… E a rainha malvada continuou sem saber a resposta de sua primeira e principal pergunta: por que os milicos foram tão bonzinhos com os caminhoneiros…
Foram “bonzinhos” porque enxergaram no movimento dos caminhoneiros um campo de disputa e não quiseram comprar o desgaste. Não faltam exemplos de polícia federal dizendo que não ia descer o sarrafo, de policial rodoviário fazendo corrente de oração com caminhoneiros e de polícia rodoviária estadual apoiando protestos. Por outro lado, também não faltam exemplos de polícia militar atirando em caminhoneiros, polícia federal escoltando caminhões para furar bloqueios, policial aposentado atirando em manifestantes… Disse antes, e sigo na mesma tese: o campo fascista saiu rachado do processo. A essência é mais complicada que a propaganda.
É certo que o veículo em que saiu essa entrevista é de esquerda e por isso pode ter seus motivos para pinçar este entrevistado em particular. De todo modo:
‘Segundo Moisés, a categoria dos autônomos é unida, porém tem dificuldade de articulação em função das distâncias e da logística. “Cada um está cada hora em um lugar, então fica difícil”, admite. Ele criticou ainda o assédio por parte de “gente de extrema direita” tentando emplacar o discurso da intervenção militar aproveitando-se da falta de informação de boa parte de seus companheiros. Nesse aspecto, diz o motorista, é que faltou a presença de movimentos sociais e esquerda, para fazer esse contraponto ante a desinformação.’
http://www.redebrasilatual.com.br/trabalho/2018/05/caminhoneiros-autonomos-deixam-as-estradas-e-vao-a-brasilia-pressionar-o-governo
Acredito que o melhor debate sobre o movimento dos caminhoneiros está aqui, nesse texto e nos comentários a esse texto.
Esse movimento serviu para mostrar, também, o quanto a esquerda está ausente do campo e das pequenas e médias cidades? Sem organização e mesmo sem categorias de análise para tudo o que está fora das grandes cidades?
O caminhoneiro, o caminhoneiro autônomo mesmo, é trabalhador pejotizado ou é um “pequeno patrão”, empregador de auxiliares e proprietário de um meio de trabalho/bem de capital inacessível à maioria (sendo assim uma categoria incomparável ao motorista de Uber e ao motoboy donos de seus veículos)?
Tanto os gestores podem apresentar-se juridicamente como assalariados, sendo em realidade capitalistas (p.ex.,CEOs, gerentes, a turminha do Fora do Eixo), quanto os trabalhadores podem apresentar-se juridicamente como “patrões de si”, sendo em realidade subcontratados na relação de extorsão do seu trabalho. Mas o que acontece quando assalariados e pequenos patrões se misturam num mesmo processo de trabalho (e de luta)? Como se intervém à esquerda nesse campo?
A memória e a análise histórica dos fascismos tende a servir mais a um “marxismo brucutu”, que nos imobiliza e nos tira das disputas decisivas (inclusive contra as tendências fascistas que disputam as classes trabalhadoras), ou está aí para nos alertar acerca dos caminhos que não devemos mais seguir?
Não significam nada as fortes e verborrágicas divisões em relação ao movimento dos caminhoneiros no seio da direita e extrema-direita? Não significa nada a oposição do Bolsonaro aos bloqueios e a ridicularização do Olavo de Carvalho aos que bradam por intervenção militar?
Pode existir algo como uma greve geral “em alguma medida”, como algo “dado”, que acabou acontecendo involuntariamente, ou esse quadro de paralisação passiva (da maioria trabalhadora) não é outra coisa que uma forma fascista de agitação e construção de hegemonia? Dito de outro modo: a forma pela qual se luta (p.ex., por meio de lutas diretas, não institucionalizadas, com autonomia frente aos patrões e às máfias sindicais, experimentando formas de solidariedade, horizontalismo e coletivismo) é o que há de mais essencial acerca do conteúdo de uma luta, ou neste caso trata-se apenas de voluntarismo ingênuo que acredita em “vácuo político” e não consegue enxergar a dinâmica própria do movimento na sua estruturação?
Não disponho de manancial teórico ou técnico como muitos dos comentadores, mas queria compartilhar algumas reflexões. Desde 2013 a militância à esquerda no Brasil parece viver num imobilismo. O choque foi tão grande que grupos e organizações se desestruturaram, tanto as ditas autônomas quanto as organizações tradicionais. Neste cinco anos, qualquer tipo de engajamento parecia difícil, e vários foram os contextos em que fomos derrotados pela nossa “não-ação”.
Neste processo vimos o desmonte da seguridade social, com a reforma trabalhista e a reforma da previdência em um âmbito nacional, e aqui no Rio de Janeiro mais precisamente, a falência do Estado, deixando de pagar todos os funcionários públicos e aposentados (que faziam filas quilométricas em busca de uma cesta básica em instituições de ajuda social). Tudo isso sem qualquer ação consistente ou organizada.
A greve dos caminhoneiros aparece neste cenário fragmentado e de precarização das condições de vida. Nos comentários existe uma discussão sobre quem de fato seriam “os caminhoneiros”, e meu questionamento se relaciona a esta questão. Será possível categorizar um pra cá e outro pra lá? É um grupo difícil de mapear, mas que impetrou uma mobilização contra a precarização das condições de trabalho.
Não sei como as notícias circulam por outros lugares, mas aqui a grande mídia, com seu trabalho habitual, mostrava a articulação à direita destes caminhoneiros, e os pedidos de intervenção militar. Um fato que sabemos é que assim que o movimento começou estes grupos de extrema-direita estavam organizados a tal ponto que foram em praticamente todos os pontos de bloqueio a estender faixas e cartazes na frente. Também organizaram grupos de whatsapp onde circulam a maioria das fakenews. Em alguns lugares foram expulsos, em outros, “só eram deixados lá” para não criar confusão, em outros encontravam adesão a esta pauta externa. Mas é de conhecimento geral que nestas “caravanas” não tinham pessoas que não exerciam esta profissão.
Refletindo sobre um ponto do primeiro comentário do João Bernardo, concordo que não é possível disputar um movimento como se todos fossem passíveis de serem esticados de um lado pro outro da corda, mas vendo a situação por aqui e uma não unidade ideológica no movimento, o que nós, da esquerda, poderíamos fazer? Não existiriam realmente trabalhadores precarizados entre os caminhoneiros? Estes não poderiam crescer enquanto movimento?
Outra questão dos comentadores que me chamou a atenção foi o argumento de que a suposta “não-ação” do exército e das tropas seria decorrente de uma afinidade ideológica. Ora, vejo duas coisas nesta questão. Primeiro, que a repressão não foi mostrada, ela existiu. Segundo, que a adesão e solidariedade das pessoas (como aquelas que moravam perto dos pontos de bloqueio ao levar alimento aos caminhoneiros parados) mostrava que uma ação de repressão sem reflexão poderia ter o sentido contrário do desejado. Aliás, foi isso que o presidente Michel Temer disse à imprensa ontem, que sempre priorizou o diálogo.
Acho que em alguns pontos do país a situação foi diferente, mas aqui no Rio de Janeiro parecia que vivíamos em uma cidade fantasma. Tudo parado, sem abastecimento, sem carro, sem ônibus, alimentos escassos, escolas fechando, comércio idem… um eterno domingo. E a crítica popular (medida de forma precária pelos grupos de whatsapp e escolas que trabalho) não era a mesma de sempre: baderneiros, estão estragando tudo, etc… As instituições e figuras políticas não estão com credibilidade no Brasil. Mais uma vez isso me parece explicar a política de ação do governo em relação a repressão.
Por isso tudo me pareceu que esta movimentação merecia atenção, ainda mais por ela deixar evidente o lugar dos caminhoneiros (ou caminhões) nas condições gerais de produção.
No fim, o processo já está desmobilizado, e a política atual de preços praticada pela Petrobras não mudou. “Baixar o preço do diesel” era a pauta relacionada a esta política e não apenas aos subsídios, por isso a meu ver, a união dos petroleiros. Mais uma vez me refiro ao caso particular do Rio. Diversas cidades que viviam em torno da indústria petroquímica faliram, muitos desempregados e o círculo vicioso que tudo que isso causa.
Para piorar, com a desmobilização, percebemos que o que mantém ainda os bloqueios são quase que majoritariamente estes grupos de extrema-direita, impedindo muitos caminhões de sair, utilizando para isso da força. Já surgiu a especulação de que milícias ruralistas estejam atuando neste ponto. Não duvidaria da veracidade desta informação.
Enfim, é mais ou menos estes questionamentos que têm passado por minha cabeça, e que ainda sinto dificuldade de sistematizar e “fechar uma posição” sobre este episódio, por isso acho importante conversar e ver outras perspectivas.
acredito que o sério da questão, passada já a paralisação, é constatar que de fato existem hoje, como um salto qualitativo em relação a 2013, grupos fascistas bem organizados e com claridade política — já não gangues de skinheads nacionalistas ou turmas de marombados, senão prováveis baixas patentes da PM e do exército (http://piaui.folha.uol.com.br/abin-e-procuradoria-investigam-infiltracao-militar-em-paralisacao/).
Tomando esta nota anterior, penso em algumas questões históricas também. Os golpes militares latinoamericanos dos anos 60/70 foram marcados por decisões “de cima”, e em muitos casos as primeiras vítimas foram justamente setores de baixas patentes que pendiam para a esquerda.
Neste exato momento, um dos principais assessores de Temer é Etchegoyen, um dos milicos mais “políticos” e estrategistas. Ele foi criticado pela Folha como responsável direto pelo despreparo do governo para lidar de forma preventiva com a greve (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/05/etchegoyen-acumula-reveses-na-inteligencia-do-planalto.shtml) e agora deve perseguir (ou ao menos identificar) setores das PMs e do exército que incitaram o caos violento na greve, o que numa linguagem simples militar seriam seus inimigos táticos diretos no objetivo de controlar a situação.
Pois bem, estaríamos agora frente a uma situação nova, onde as baixas patentes estão mais à direita que os altos oficiais? Estes últimos, frente o desafios do mundo atual parecem estar pouco preparados para tomar as rédeas do país.
Sinais deste “pouco preparo” ou simplesmente de certa confusão política e ideológica é que Bolsonaro, o candidato que quer transformar o segundo turno das eleições em um “milicos sim vs milicos não”, indicou como seu futuro ministro da Fazendo um liberal puro privatista (https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-anuncia-paulo-guedes-como-ministro-da-fazenda/). Nada de programa social fascista. Parece haver pouco tempo até as eleições para tirar da cartola um tal programa (com todos os quadros e ideólogos necessário para isso).
Seguindo a parte final do comentário do Lucas:
O candidato da extrema-direita há tempos pendeu para o neoliberalismo para se viabilizar politicamente, visto a tamanha hegemonia do poder econômico (neoliberal) a ponto de derrubar presidente, prender etc etc.
Nesse sentido estaríamos mais próximos de um regime de Pinochet do que do fascismo.
Mas se por meio de mobilizações populares (como essas dos caminhoneiros por exemplo), demandas populares e trabalhistas forem rompendo com a hegemonia neoliberal, na atual conjuntura é mais provável que elas sejam canalizadas por figuras ou organizações protofascistas do que por organizações socialistas.
Joaquim Barbosa era o candidato ou figura perfeita para tanto. Um pé no discurso de Justiça Social e o outro pé no moralismo anticorrupção. Atraía os chamados coxinhas com seu pseudomoralismo e seu ressentimento e falsa consciência de classe ao mesmo tempo que atraía até mesmo José Dirceu para aliança.
No rescaldo destes acontecimentos, e enquanto se espera pelos que hão-de vir em breve, talvez seja a ocasião de esclarecer três questões.
1) A propósito dos comentários da Ana e de outros, quero recordar que eu nunca disse que não havia trabalhadores entre os caminhoneiros. Decerto os há, e muitos. O que disse é que, contrariamente ao que sucede noutras categorias profissionais, as fronteiras entre trabalhadores e patrões, sobretudo pequenos patrões, não são ali claras e nítidas, tanto as fronteiras sociais como as ideológicas. E tudo o que conheço sobre o fascismo me leva a ter um grande receio dessas situações.
2) O Manolo insistiu em vários comentários que «o campo fascista saiu rachado do processo», mas por si só isso não é um óbice. Talvez um dos maiores inconvenientes da noção de Totalitarismo é o de confundir a coesão interna do stalinismo e a sua ideologia única com a fragmentação interna de cada regime fascista e a sua diversidade ideológica. Coabitaram sempre múltiplas versões ideológicas do fascismo, que é acima de tudo um modo de acção. Para me limitar aos fascismos que efectivamente governaram, sem sequer mencionar os movimentos que nunca chegaram ao poder, pouco depois de criado o movimento fascista italiano já se dividira entre uma ala radical, que se reivindicava de D’Annunzio e que pretendia que o fascismo se ligasse às grandes greves que então alastravam no país, e uma ala moderada, encabeçada por Mussolini, que se recusou a seguir essa via e manteve o movimento articulado com o campo da ordem. Esta dicotomia pode ser útil para analisar o que se passa hoje no Brasil. Aliás, ela deixou marcas tão profundas que foi um dos chefes da antiga facção dannunziana, Dino Grandi, quem apresentou no Grande Conselho, em Julho de 1943, a moção que arrastou a queda de Mussolini. Mesmo durante as duas décadas em que Mussolini se manteve à frente do governo ele teve que contar com múltiplas oposições dentro do partido fascista, por exemplo da parte de Farinacci, de Italo Balbo e de outras figuras significativas. Também o nacional-socialismo alemão foi sempre percorrido por fissuras, e a habilidade táctica de Hitler mede-se pelo facto de ter sempre conseguido equilibrar-se entre elas. Em França, durante a ocupação germânica, o regime fascista conservador de Vichy nunca conseguiu unir-se com os fascistas radicais de Paris, nem estes conseguiram superar as fissuras que os separavam. Em Espanha, mesmo durante a guerra civil e mesmo depois, fissuras, por vezes muito graves, opuseram os falangistas radicais aos generais mais conservadores. Na Hungria o regime contava com uma multiplicidade de partidos fascistas, que por vezes se opunham em confrontos muito violentos. No Japão os fascistas da facção militar Via Imperial foram marginalizados violentamente pelos fascistas da facção militar Controle, e só no final da guerra, quando o país estava inevitavelmente derrotado, voltaram a desempenhar um certo papel. Na Roménia o fascismo dividiu-se entre a facção de Codreanu e a facção encabeçada pelo rei Carol II e depois pelo marechal Antonescu, numa inaudita e permanente violência. Até em Portugal o fascista conservador e católico Salazar deparou com a oposição do fascista radical Rolão Preto, que resolveu rapidamente, mas que deixou traços ao longo do regime. É nesta perspectiva que devemos analisar as fissuras de um qualquer fascismo, que por si só não o impedem de globalmente se reforçar. Mas, é claro, também não garantem que ele se reforce.
3) Lucas, no seu último comentário, parece considerar que uma orientação económica liberal seria, por si só, impeditiva de um programa social fascista. Todavia, tanto o regime fascista italiano como o Terceiro Reich aplicaram os seus programas sociais enquanto oscilavam, cada um à sua maneira, entre a pura economia de mercado e o intervencionismo estatal.
O fascismo nunca foi nem é um movimento rígido, mas sempre multiforme e adaptável.
“Economia mundial à beira da guerra comercial” (http://www.jb.com.br/economia/noticias/2018/06/01/economia-mundial-a-beira-da-guerra-comercial/)
“União Europeia se recusa a negociar com Trump e guerra comercial se intensifica”( https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,uniao-europeia-se-recusa-a-negociar-com-trump-e-guerra-comercial-se-intensifica,70002333617)
“Na edição extra do Diário Oficial da União (DOU) de hoje (31) também está publicada a lei, sancionada pelo presidente Michel Temer, que reonera a folha de pagamento de 39 setores da economia. A estimativa é que o impacto nos cofres públicos será de R$ 830 milhões. Os benefícios se estendem até 2020.
Também está na edição extra a medida provisória que estabelece o cancelamento de dotações orçamentárias em diversas áreas, como programas de fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), concessão de bolsas, reforma agrária, demarcação de terras indígenas, segurança e policiamento em estradas. A informação oficial é que o cancelamento de gastos foi definido de forma pulverizada para causar baixo impacto.” (http://www.jb.com.br/economia/noticias/2018/05/31/veja-medidas-do-governo-federal-para-viabilizar-diesel-mais-barato/)
Em brevíssima síntese, penso que são a partir destes pontos que podemos tentar entender o que pode representar o movimento de paralisação dos caminhoneiros.
As malhas rodoviárias e os meios de transportes fazem partem das condições gerais de produção, as CGP. Elas são vitais para que a produção possa ocorrer e circular. Por isso, tanto em tempos de paz, como em tempos de guerra, externa ou interna, o Estado Estrito e o Estado Amplo as operam cirurgicamente, sempre.
A questão que se esta operação das malhas rodoviárias esteve sob o controle dos meios de transportes ou não, neste momento de crise no capital, pode até ser que não esteja ainda bem clara. Menos obscura, porém, parecem ser as consequências. Parece evidente que, não tendo condições ou simplesmente não querendo arcar com a redução nos custos das CGP (malhas rodoviárias e meios de transportes), especialmente neste momento de acirramento de “guerra comercial” nos mercados internacionais (guerra esta que exige esta redução de custos das CGPs), o Estado Restrito e o Estado Amplo, numa jogada “contabilística”, oportunista ou não, repassaram os custos desta redução com as CGPs, mais uma vez, para a classe trabalhadora, como se pode confirmar pelo DOU de hoje.
Esta é uma perspectiva que, diante não apenas da realidade nacional, me parece ser uma hipótese plausível para explicar pelo menos uma parte deste problema.
Apesar de continuar defendendo que no Brasil o momento pede mais ação que cautelas, tenho acordo com os três pontos apresentados por João Bernardo em seu comentário mais recente. No que diz respeito ao item 2, se ressalto as fissuras no campo fascista resultantes dos últimos acontecimentos, não é por considerar que neste campo não existam fissuras; pelo contrário, é para reforçar o que os fatos apresentam frente a certas perspectivas comuns em meio à esquerda e à extrema-esquerda, de que o campo fascista em desenvolvimento no Brasil seria um bloco monolítico. Não acho central explorar politicamente tais fissuras, somos poucos e nossas energias são mais bem aproveitadas em outras coisas, mas não reconhecê-las, como o fazem tantos, é erro grave de avaliação política.
Peço desculpa por colocar demasiados comentários, e se o comentário de Beto tivesse aparecido antes do meu, evitava comentar de novo. Mas o problema que ele levanta recordou-me algo que escrevi aqui ( http://passapalavra.info/2011/08/43784 ) há já sete anos:
«As deficiências nas vias de comunicação criaram grandes problemas para as exportações do agronegócio, pois as áreas produtoras situam-se longe dos portos. “Por exemplo”, elucidou Werner Baer, “o custo de transporte da soja no Brasil atingiu uma média de US$ 50 por tonelada, comparado a US$ 20 por tonelada nos Estados Unidos” [4]. E o deficiente escoamento portuário contribuiu para aumentar as dificuldades. É realmente preciso que o ramo das commodities tenha atingido um elevadíssimo grau de produtividade para ser mundialmente competitivo em tais condições de transporte. Aqueles que tanto peroram acerca dos inconvenientes da actual taxa de câmbio para as exportações fariam melhor em prestar mais atenção às infra-estruturas.»
O debate segue em geral em um bom tom, e acredito que a reflexão coletiva que se estabelece aqui tem muito a contribuir.
Entendo que o João Bernardo não afirmou uma inexistência de trabalhadores entre os caminhoneiros, e acho muito acertado quando fala sobre a dificuldade em se estabelecer a fronteira entre trabalhadores e pequenos patrões. Partilho deste pensamento, e por esta razão achei revelante tentar pensar sob a ótica da desestruturação social e da precarização dos trabalhadores em geral, questionando nossa atuação neste ponto.
Com o avanço do debate, novas questões foram colocadas e as reflexões sobre as fissuras no fascismo, como a questão do apoio a greve geral na Itália, pode ser um bom eixo para repensar o aparecimento da pauta da intervenção militar entre os caminhoneiros.
Esta dificuldade em mapear o campo também me deixa muito receosa, e talvez por isso entenda quando o Manolo diz que o momento pede mais ação que cautela, pois muitas vezes penso que o imobilismo desde 2013 parece ter dado oportunidade para o crescimento da extrema-direita, principalmente com o crescimento e fortalecimento dos grupos identitários. Seria por esta última razão que as fronteiras de classe ficaram cada vez mais difíceis de se definir?
Outro ponto que queria levantar é que Fakenews ou não, por razão das medidas tomadas por Temer (publicadas na edição extra do Diário Oficial como mencionado por Beto) já começaram a circular áudios nas redes sociais de uma nova paralisação (mais radical) a partir da noite de domingo. Se de fato isso ocorrer, como se portará a população em geral?
Por fim, tive notícias de mais duas greves de caminhoneiros. Uma no Irã (https://en.radiofarda.com/a/iran-truck-drivers-continue-strike/29253039.html) e outra em Portugal (http://sicnoticias.sapo.pt/pais/2018-05-27-Camionistas-paralisam-para-alertar-para-os-problemas-do-setor; https://www.mundolusiada.com.br/acontece/em-portugal-caminhoneiros-mantem-protesto-mas-vao-negociar-com-governo/). Será possível relacionarmos estes eventos?
Que bom que os ânimos se recobraram e o debate segue como deve ser. O objetivo aqui parece o mesmo, mudam as análises e os métodos.
Agora, uma curta. Notícia pedagógica sobre pautas como o “fora Pedro Parente”, de quem não sabe (ou finge não saber) das relações entre Estado restrito e Estado amplo. Parente sai da Petrobrás diretamente para a BRF…
https://www.google.com.br/amp/amp.valor.com.br/agro/5486975/pedro-parente-e-confirmado-para-presidencia-do-conselho-da-brf
Outra, não menos óbvia do que a anterior, mas que se registre:
“Temer também disse que a política de preços da Petrobras continua. “Continuaremos com a politica econômica que nesses dois anos retirou a empresa do prejuízo e a trouxe para o rol das mais respeitadas do mundo. Não haverá qualquer interferência na política de preços da empresa. Ivan Monteiro é a garantia de que esse rumo permanece inalterado”, afirmou o presidente”.
https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2018/06/01/temer-monteiro-deve-ser-ceo-efetivo-da-petrobras-politica-de-preco-segue.htm
As duas notícias, a do comentário anterior e essa, passariam desapercebidas não fossem os delírios nacionalistas da esquerda tradicional:
https://pcb.org.br/portal2/19832/parente-cai-a-petrobras-e-o-petroleo-ficam
“Pela recompra das ações da Petrobrás nas bolsas de valores por parte do governo!
Pela democracia da escolha dos rumos e dos gestores da Petrobrás!”
Caro João Bernardo,
Acredito que a perplexidade do seu primeiro comentário neste artigo não deve ser esquecida. Posso estar enganado, mas ainda que dentre os caminhoneiros prevalecessem trabalhadores juridicamente assalariados, ou mesmo trabalhadores autônomos em condição de uberização ou pejotização, ou qualquer outra forma de precarização que o valha, isso por si só não seria a garantia nem de um movimento de base, nem autônomo. Aqui no Brasil, o estado mais populoso da federação, São Paulo, nunca teve um partido de esquerda e, desde de 1994, o PSDB é quem o governa e, ao mesmo, tempo, na capital e grande São Paulo, várias são ou foram as prefeituras governadas pelo PT. Isso se verifica em outras unidades da federação. Bahia, por exemplo, onde há um governador petista e um prefeito descendente direto de Antonio Carlos Magalhães… Aliás, é bom lembrar que em São Paulo, o governardo Geraldo Alckimin se reelegeu em primeiro turno, com 57% dos votos, em plena crise hídrica. Se eu não estiver enganado, a maioria dos eleitores de São Paulo devem ser trabalhadores, assalariados ou não, uberizados ou não, pejotizados ou não… Diante desta característica, em meu primeiro comentário repliquei um excerto de uma obra sua sobre o caracterizando o fascismo como “revolta no interior da coesão, chamando assim atenção para sua ambivalência, ao mesmo tempo radical e conservador. (…) O fascismo mobilizou a classe trabalhadora para efectuar uma revolução capitalista contra a burguesia, ou talvez mais exactamente, apesar da burguesia”. Por isso, se eu também não estiver enganado, os elementos fascistas do movimento dos caminhoneiros não se apresentaram a posteriori, mas já estavam presentes, se não já de forma latente, mas, minimamente, em forma de gérmen.
E essa latência, possivelmente, não é de hoje… “O grande número de adesões à AIB fez dela o primeiro partido político de massa organizado nacionalmente no Brasil. Em 1936, o total de seus membros era estimado entre 600 mil e um milhão” (http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/anos30-37/RadicalizacaoPolitica/AIB), o que vai ao encontro de outro ensinamento seu “E é tanto mais incómodo quanto no Brasil a génese do comunismo se confunde com a génese do nacionalismo moderno. Com efeito, a circulação ideológica entre a esquerda e o fascismo é tão profunda no Brasil que quase se pode dizer que está inscrita no código genético daquelas correntes políticas”(http://passapalavra.info/2012/09/63916), e hoje o maior partido de massas no Brasil é o PT, o mesmo PT que “podia ter optado com igual proveito por Otto Bauer, mas foi Gramsci o escolhido”(João Bernardo, idem). É bem verdade que a história não se repete, mas também “Hoje, quando tudo parece recomeçar, não partimos do zero, mas de uma enorme experiência acumulada, que permite esclarecer muitas questões” (https://comunism0.wordpress.com/transnacionalizacao-do-capital-e-fragmentacao-dostrabalhadores/).
Neste momento no Brasil, tenho a impressão que o eixo exógeno já se encontra em perigoso estágio caracterização fascista com os militares (não só das forças armadas, mas também das polícias militares) a intervir em amplos setores da sociedade, e as igrejas, principalmente as neopetencostais, que já há muito, além de lotarem suas respectivas igrejas, realizam marchas com milhões de pessoas (a grande maioria, se eu não estiver enganado, de trabalhadores, dentre eles caminhoneiros, os quais, ao menos parte deles, além de pedirem intervenção militar, também exaltavam a intervenção divina. Aliás, muito emblemático políticos como Temer, Dória, Márcio França, entre outros, terem participado destas marchas religiosas… talvez em vez de uma “nação proletária”, estejam em busca de uma “nação cristã”…). No eixo endógeno, também me parece que já se encontra em vias de fascistização, sendo que o judiciário e o MP poderiam fazer as vezes do partido político, e os sindicatos poderiam estar representado justamente por movimentos “AUTÔNOMOS” como o dos caminhoneiros…
Bom… tentei ser o mais sintético possível, mas peço desculpas pela longa divagação. Gostaria de saber sua opinião e de todos os demais se faz sentido estas análises…
Obrigado a todos!
Gilberto.
Existe claramente um quadro armado no Brasil destes dias com enorme potencial para desenvolver uma modalidade renovada de fascismo, com tintes religiosos tal como a radicalização teocrática vista em diferentes partes do mundo, e com um militarismo que também se está vendo em ascensão em diferentes partes do mundo. Todavia, aqui na América Latina os dois estados (relevantes) com maior presença militar nos governos são Venezuela e Cuba – o que mostra que tanto à direita quanto à esquerda o militarismo é uma opção que está próxima na mente das pessoas.
O diagnóstico, embora alguns e algumas coloquemos mais ênfase nisto ou naquilo, tenhamos pequenas diferenças de análise sobre algumas peças, é que estamos na merda e a água está próxima de transbordar os limites do vaso sanitário.
Pois bem, quais são então os possíveis entraves para que um tal movimento fascista se concretize na realidade nacional brasileira? Acho que se a grande maioria de nós tem certa clareza sobre o diagnóstico, seria mister pensar coletivamente em como travar este processo, ainda que sejamos poucos: em que lugares, organizações, dinâmicas, etc, parece haver maior potencial de barrar este fluxo? Ou seja, passar da constatação à uma análise que permita algum tipo de proposta estratégica de ação, justamente para superar a inação.
Penso eu que a integração do território e da população nacional apresenta um primeiro desafio. Se bem o fenômeno dos caminhoneiros foi bastante nacional, isso se deve a sua especificidade laboral; seria a população de todas as regiões igualmente propensas a este movimento fascista? Quais são os vínculos mais frágeis do nacionalismo brasileiro enquanto organizador político? Talvez o nordeste e o sul do país apresentem quadros bastante diferentes com relação a isso, assim como as capitais do sudoeste em comparação com o interior do centro-oeste.
Outro ponto: se o fascismo se articula na conjugação (entre outros elementos) do nacionalismo e da agitação proletária, é possível conservar um e combater o outro? Isto diz respeito ao que Manolo tem trazido à discussão. Como fica a tarefa de agitação, se nos parece que isso contribui ao perigo, neste contexto específico, como que jogando gasolina na fogueira do nacionalismo/militarismo? Seria um momento de trabalho de laços e alianças com setores que identifiquemos que serão necessários no pior dos cenários?
Em todos os casos, frente ao diagnóstico, creio que no mínimo seria importante o fortalecimento dos grupos e das formações de autodefesa, já não apenas para contexto de manifestações.
Muito interessante o texto e os comentários. A única coisa difícil de engolir é a constante fala de “a (extrema)esquerda isso”, “a (extrema)esquerda aquilo”, como se “esquerda” fosse um sujeito e não as classes, com as inúmeras tendências contraditórias das classes e nas classes que se expressam simultaneamente na práxis e no pensamento (incluindo todos nós, com nossas várias divergências). E como vejo quase todas as questões polêmicas dos comentários girarem em torno do que “a esquerda” fez ou deixou de fazer, questão que como explicamos não faz sentido para nós, pouco temos a acrescentar além da crítica a essa ideia enquanto tal.
Quanto às várias questões sobre o patronato no movimento dos caminhoneiros, o aspecto pequeno burguês deles e a relação disso com o atrativo deles pelo nacionalismo/militarismo/bonapatismo, tínhamos durante a greve tentado entender no texto do link abaixo as possibilidades de, caso o movimento ultrapassasse o limite dos caminhoneiros e se espalhasse para toda a sociedade, o aspecto de luta de classes (que, por definição, é contra a classe dominante nacional e, assim, internacionalista, anti-nacionalista, cosmopolita) se tornaria predominante (talvez irresistível, mesmo que a “vontade” e as “ideologias” dos envolvidos fossem outras):
https://humanaesfera.blogspot.com/2018/05/sobre-greve-dos-caminhoneiros.html
O grupo Iniciativa Revolução Universal também nos enviou esse texto, que publicamos:
https://humanaesfera.blogspot.com/2018/05/a-rebeliao-dos-caminhoneiros-na.html
João Bernardo, se o Varguismo foi expressão do fascismo; se há, hoje, fortes indícios de apelos de cunho fascistas não só entre os caminhoneiros, mas inclusive entre eles por intervenção militar; sendo este pleito inspirado no Golpe de 1964, poderíamos considerar este período ditatorial (1964-1984), em razão da presença de movimentos como a TFP( terra, família e propriedade), dos militares, além do forte apelo nacionalista e desenvolvimentista, como fascista?
Ferreira, sem dúvida que enquanto articulação entre a revolta e a ordem os fascismos, para se estabelecerem como regimes, tiveram sempre de se conjugar com o exército, e no Japão foi mesmo no interior das forças armadas que o fascismo se desenvolveu e se implantou. Mas ocorreram movimentos inversos. Em Portugal, por exemplo, o fascismo foi instituído a partir do desenvolvimento do golpe militar de Maio de 1926, mas uma das primeiras preocupações de Salazar, quando se tornou presidente do Conselho de Ministros, foi fazer os militares regressarem aos quartéis. O caso mais interessante parece-me ser o do peronismo, que tem na sua origem o golpe militar de 1930 e depois, em Junho de 1943, um golpe militar dentro do golpe militar. Foi enquanto coronel que Peròn passou a ocupar-se, em Outubro de 1943, do Departamento Nacional do Trabalho, estabelecendo a partir daí as suas relações com os sindicatos. Mas as forças armadas opuseram-se ao fascismo sindical de Peròn, até que em Setembro de 1955 o peronismo foi derrubado por uma insurreição militar. Neste caso o regime militar instaurou um antifascismo de cariz conservador. Então, entre os dois extremos, o do fascismo militar nipónico e o do antifascismo militar argentino, em que posição devemos situar o regime militar brasileiro? Os elementos que você indica no seu comentário, especialmente o nacionalismo e o desenvolvimentismo, parecem-me claramente fascistas, mas não encontro naquele regime uma componente que me parece indispensável à presença de um fascismo — uma política social e a mobilização da rua através de organizações de massas.
E já que essas organizações de massas incluem milícias, ou pelo menos tendem a incluí-las, lembrei-me de recorrer ao mecanismo de busca e procurei aqui a palavra Marielle. Não aparece uma única vez, nem no artigo nem nos comentários, incluindo os meus. Diria que nos faltou a todos o que deve ser um dos elementos principais na análise da actual conjuntura, sobretudo quando falamos de milícias. No Brasil os núcleos de milícias estão disponíveis e activos e a sua extensão será fácil de organizar.
O último comentário de João Bernardo faz valer a pena linkar aqui outro texto publicado neste site:
http://passapalavra.info/2018/03/119022#comments
Passado um ano da “Greve dos Caminhoneiros” (… “Greve”…? … E dos Caminhoneiros…?), vão se evidenciando quais as reais dimensões do referido movimento. João Bernardo, em comentário de 01/06/2018 at 17:44, afirmava: “A propósito dos comentários da Ana e de outros, quero recordar que eu nunca disse que não havia trabalhadores entre os caminhoneiros. Decerto os há, e muitos. O que disse é que, contrariamente ao que sucede noutras categorias profissionais, as fronteiras entre trabalhadores e patrões, sobretudo pequenos patrões, não são ali claras e nítidas, tanto as fronteiras sociais como as ideológicas. E tudo o que conheço sobre o fascismo me leva a ter um grande receio dessas situações”
Em matéria hoje no Estadão: “A greve dos caminhoneiros trouxe efeitos colaterais para todo o setor, entre eles queda na receita dos caminhoneiros e aumento na das transportadoras. Estudo dos economistas Cristiano Aguiar de Oliveira e Rafael Mesquita Pereira, da Universidade Federal do Rio Grande, mostra que o rendimento dos proprietários de caminhão subiu 28% depois da paralisação, enquanto o dos autônomos caiu 20%.” (Disponível em https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2019/05/21/internas_economia,1055426/rendimento-de-autonomos-caiu-20-aponta-estudo.shtml).
Se os números da matéria estiverem certos, relembrando que em comentário de Juba 30/05/2018 at 17:06. “Hoje, cerca de 554 mil unidades estão concentrados nas mãos de 374 mil motoristas autônomos. Ou seja: esses profissionais sem empresa constituída concentram, em média, 1,5 caminhão cada um. A participação dos autônomos na frota total do Brasil – que hoje soma 1,66 milhão de veículos – é de pouco mais de um terço do total. ” (https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,hipotese-de-locaute-para-a-greve-dos-caminhoneiros-esbarra-em-pulverizacao,70002327133), aquilo que fora chamado de “Greve”, vai se enquadrando muito mais como um “locaute”, muito embora, desde então, os 2/3 da frota de caminhões na mão de empresas já apontasse neste sentido. Agora, com o aumento de 28% na lucratividade das transportadoras e queda de 20% na lucratividade dos autônomos – ou seriam os pequenos patrões com 1,5 caminhão cada um? – não se estaria evidenciando mais uma luta intraclasses, pequena X alta burguesia, do que uma luta de classes propriamente dita? E o “grande receio dessas situações” manifestado por João Bernardo estaria se concretizando no panorama atual?
Prezado João Bernardo,
Em 07/06/2018, eu lhe perguntava se o Golpe de 1964 poderia ser considerado como fascista, ao que você responde: (…) Os elementos que você indica no seu comentário, especialmente o nacionalismo e o desenvolvimentismo, parecem-me claramente fascistas, mas não encontro naquele regime uma componente que me parece indispensável à presença de um fascismo — uma política social e a mobilização da rua através de organizações de massas. Passado mais de um ano daquela pergunta, a refaço noutros termos.
Se até junho do ano passado a eleição de Bolsonaro era uma possibilidade, ela se tornou uma realidade, mas uma realidade muito além do limite à eleição de Bolsonaro. Elegeu-se uma bancada “messiânica” (da direita à esquerda, pois, recordemos que o messianismo não se restringe ao religioso, mas prossegue no político, no identitário, no cultural, etc…) de norte a sul do país. Elegeu-se, nos âmbitos estaduais e federal, como nunca antes, uma plêiade de militares e religiosos (além de identitários, ecologistas, etc) assumida e decididamente “militares e religiosos”… O quadro se replica na composição dos ministérios federais e secretarias estaduais de todo o país.
Ainda, naquele seu comentário de 07/06/2018, você lembrou o caso Marielle, afirmando que o fascismo necessita de “organizações de massas. E já que essas organizações de massas incluem milícias, ou pelo menos tendem a incluí-las (…)”.
Tomando cuidado sempre com a espetacularização (e se valendo do conceito de espetacularização no sentido dos situacionistas), as denúncias de envolvimento do “clã Bolsonaro” com as milícias do Rio de Janeiro só faz evidenciar algo maior, que são a existência e a ação das próprias milícias.
Portanto, presentes militares, religiosos e milicianos em todas as esferas do poder e ocupando as ruas (a exemplo das gigantesca marchas de “exército de Jesus”), estamos vivendo de fato um fascismo no Brasil?
Grato por sua atenção!
Ferreira
Aproveitando o gancho do Ferreira, gostaria de saber a possibilidade de uma hipótese. Quando Beto levanta a questão das CGP no conflito dos caminhoneiros, e o quando o João Bernardo levanta a questão das milícias, fez com que eu me lembrasse do transporte público. Em São Paulo é público e notório o envolvimento que as Milícias têm nas cooperativas de transporte, as quais um dia foram defendidas pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes. Celso Daniel, prefeito de Santo André foi morto pela máfia dos transportes…. Portanto, parte das CGP é controlada por milícias e máfias…. Seria possível a greve dos caminhoneiros ter sido conduzidas sorrateiramente também por milícias e máfias?
Ferreira,
A situação política actual no Brasil é muito instável, mas para que lado se inclinará? O exército não quer encarregar-se do governo, isso agora já não se usa, e decerto prefere vigiar nos bastidores. O presidente Bolsonaro vê fugir-lhe a base de apoio partidário, que defende posições mais radicais do que as suas. Esta é a primeira componente da questão do fascismo. A segunda componente é a ligação às milícias de bandidos, e os filhos truculentos do presidente sinalizam essa via. A terceira componente, que por enquanto se tem manifestado menos do que eu calculava, são os movimentos de rua.
Para agravar a situação, uma parte substancial da oposição a Bolsonaro cabe a movimentos que eu incluo naquilo a que chamo fascismo pós-fascista. Trata-se de movimentos que retomam temas característicos do fascismo racial, o nacional-socialismo alemão, nomeadamente operando uma circularidade entre biologia e cultura e, no plano social, mobilizando massas para a promoção de novas elites.
O que me deixa mais preocupado no Brasil é este contexto em que, num lado, surge a ameaça da forma clássica de fascismo e, no outro lado, a oposição mais estridente cabe a formas de fascismo pós-fascista.
Você evocou o messianismo, que nisto tudo está a ser uma componente importante. Mas se, de um lado, há a bancada evangélica, do outro há quem queira combatê-la com quê? Com o candomblé ou com a devoção à Mãe-Terra ou com a recolha do sangue menstrual ou mais idiotices deste género. Ora, quando contra um messianismo se erguem outros messianismos, é o messianismo que sai reforçado.
É certo que existe o PT. Mas o PT, que começou como um partido de esquerda e que depois encabeçou a necessária modernização do capitalismo no Brasil, encontra-se hoje numa situação completamente retrógrada, tendo assumido o padrão do velho caudilhismo latino-americano. Para isto contribuiu poderosamente o estilo político de Lula, que só soube reforçar o seu poder próprio fazendo um deserto em seu redor. Foi assim que Lula se converteu de dirigente socialista em caudilho populista, e o PT adequou-se à transformação.
E não é o caudilhismo uma forma, embora laica, de messianismo?
Você pergunta se estamos vivendo de facto um fascismo no Brasil. Talvez o estejamos vivendo nas ideias e na sociedade antes de ele existir no governo. Peço-lhe que observe o seguinte. Hitler foi nomeado chanceler no final de Janeiro de 1933. O Terceiro Reich desencadeou a guerra no começo de Setembro de 1939. E Hitler suicidou-se no final de Abril de 1945. Desde a tomada do poder pelos nacionais-socialistas até à guerra passaram apenas seis anos e meio. Ora, nesses seis anos e meio o nacional-socialismo conseguiu não só destroçar os seus adversários e inimigos na política, mas conseguiu destruir uma das vidas culturais mais pujantes que a Europa conhecera, destruí-la no plano musical, nas artes plásticas, nas artes gráficas, na arquitectura, no design. Tudo isso foi destruído, e tão completamente que não restaram traços de continuidade, e o que apareceu depois teve de nascer de novo. Não bastam seis anos e meio para isto. É que o fascismo já estava sendo vivido de facto na Alemanha antes de Hitler ter sido nomeado chanceler. E tanto mais que a oposição mais aguerrida, a do Partido Comunista, evocava contra os fascistas os próprios temas nacionalistas, por vezes mesmo anti-semitas, que caracterizavam os fascistas.
Então, será que estaremos vivendo de facto um fascismo no Brasil?
Dúvidas,
Se foi conduzida ou não, isso não sei. Mas se é possível que o fosse, isso parece-me sem dúvida possível. Dou-lhe um exemplo, que não envolve máfias, ou que envolve outro tipo de máfias. Em Portugal houve, ao longo deste ano de 2019, várias greves de enfermeiros do Serviço Nacional de Saúde, um serviço público usado sobretudo pela população mais pobre. Estas greves, além de outros inconvenientes, atrasaram vários milhares de cirurgias, com repercussões em cadeia. Ora, o Sindicato dos enfermeiros é de direita e a Ordem é igualmente de direita. Estas instituições organizaram crowfundings de apoio às greves, que em dois ou três dias recolheram várias centenas de milhares de euros, e ninguém duvida que as empresas de hospitais privados se tivessem contado entre os maiores contribuidores nessas recolhas de fundos.
As greves, como tudo em geral, têm vulnerabilidades possíveis de explorar. Já agora, peço-lhe que leia o artigo Do sindicalismo de negócios ao negócio sindical. Esse mesmo advogado, o dr. Pardal Henriques, apresentou-se como candidato de um partido da direita populista nas eleições legislativas de Outubro deste ano, sem nenhum êxito. Mas estará alguém por detrás dele? E, se estiver, quem será?
Prezado João Bernardo,
Antes de mais nada, agradeço imensamente seus esclarecimentos, e aproveito para pedir-lhe um outro.
Em relação à terceira componente do fascismo, os movimentos de rua, não poderíamos prescindi-los ou deslocá-los para um outro ambiente, como, por exemplo, o interior das igrejas, evangélicas ou não, posto que são, não apenas colossais obras arquitetônicas (Templo de Salomão da Igreja Universal do Reino de Deus ou a Basílica de Nossa Senhora de Aparecida são apenas alguns exemplos dentre vários possíveis), mas também espaços que podem reunir, e com habitualidade o fazem, milhares de “fiéis” (com a participação, inclusive, de membros dos três poderes… o que reforçaria o aspecto de integração da religião ao político) ao mesmo tempo?
(Aliás, interessante lembrar, conceitos como “transnacionalização do capital” e Estado amplo e Estado restrito. A Igreja Universal do Reino de Deus, além de se tornar uma transnacional presente em vários países, conseguiu até, embora não seja a “Igreja Internacional da Graça de Deus”, gerar um conflito de proporções internacionais… (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50270551)
Em relação ao “messianismo”, embora eu tenha intentado mencionar Lula e o PT, falhou-me a lembrança e não o fiz, mas as qualidades “messiânicas” estão presentes em ambos: “Levamos a luz para quem vivia na escuridão e água para quem sofria com a seca” (https://lula.com.br/carta-de-lula-levamos-a-luz-para-quem-vivia-na-escuridao-e-agua-para-quem-sofria-com-a-seca/)… “Onde houver trevas que eu leve a luz” (oração de São Francisco de Assis), “E disse Deus: Haja luz; e houve luz” (Gênesis 1:3)… E se “a oposição mais aguerrida, a do Partido Comunista, evocava contra os fascistas os próprios temas nacionalistas, por vezes mesmo anti-semitas, que caracterizavam os fascistas”, em essência (e não na exata literalidade dos termos ou práticas) me parece bem similar os discursos e as práticas da esquerda e da direita no Brasil…
Obrigado pela atenção!
Ferreira
Caro Ferreira,
Estou de acordo com o que observa sobre as milícias evangélicas e outras Igrejas carismáticas, e a este respeito indico o que escrevi nas págs. 1353-1354 da 3ª versão de Labirintos do Fascismo, a propósito das formas que o fascismo clássico assume na actualidade. Aliás, o problema está longe de se restringir ao Brasil, o que o torna ainda mais grave.
Mas não me parece que o fascismo possa prescindir de movimentos de ruas. Enquanto o fascismo se reduzir a pequenos grupos de alucinados não representará uma ameaça nem valerá a pena perder muito tempo com ele. É como movimento popular e de massas que o fascismo cresce e se converte num perigo, e para isso as ruas são-lhe imprescindíveis. É cada vez mais frequente ouvir, nos meios de extrema-esquerda, que a luta nas empresas já não importa e que agora devemos conquistar a rua. É um erro trágico, porque reproduz o modelo do fascismo. Os anticapitalistas pretendem transformar as relações sociais de trabalho e por isso é neste campo que devem incidir os nossos esforços, enquanto os fascistas querem manter inalteradas as relações de trabalho e por isso lhe são indispensáveis as mobilizações de rua, onde todos parecem irmanados, qualquer que seja a classe social a que pertençam. As milícias e as movimentações de rua servem para confundir as classes numa massa.
E, já agora, a libertação de Lula, mesmo que seja apenas provisória, aparecerá à base fascista radical como uma perda de prestígio do presidente Bolsonaro. Parece-me que aquela libertação servirá para aumentar as pressões dos radicais sobre o presidente e, se Bolsonaro não acompanhar essas pressões, parece-me possível que as milícias — religiosas e outras — e movimentos de rua no estilo do MBL comecem eles próprios a tomar a iniciativa. Outra questão é saber se a esquerda está preparada para isso.
Caro João Bernardo,
Infelizmente me parece claro que a esquerda está pouco ou nada preparada para isso. O que tenho visto é uma adesão à idolatria de Lula. Os críticos a essa idolatria tem sido em geral pessoas que querem algo mais ao centro ou a direita do PT, tem formulado críticas ruins, mas o que me preocupa é a resposta tem sido dada com uma desqualificação identitária de quem critica, são taxados de: brancos, que nunca passaram fome e nunca precisaram da proteção do Estado como as minorias, por isso não entendem a grandeza de Lula.
Entretanto, o que mais me chama a atenção é outra parte de seu comentário: “Os anticapitalistas pretendem transformar as relações sociais de trabalho e por isso é neste campo que devem incidir os nossos esforços”. Isso me parece claro, é a partir da produção que os trabalhadores fazem do mundo que iremos transformá-lo, contudo se durante a ascensão do PT esse local de trabalho era algo claramente delimitado, hoje em dia isso superou e muito os limites antes estabelecidos, ao mesmo tempo que fragmentou os trabalhadores, no sentido em que mal tem contatos uns com os outros. Entendo que construir a resposta das mobilizações anticapitalistas passará por construir esses espaços de sociabilidade entre os trabalhadores, mas confesso que pouco sei sobre como seria isso possível.
Aquilo a que se chama esquerda, afirma: “Para o Brasil, Lula é Mandela. Para nós, Lula é Perón” (https://www.conversaafiada.com.br/politica/liberdade-de-lula-e-tema-central-na-reuniao-dos-progressistas-em-buenos-aires). Então… Fodeu! (“Nelson Mandela: algumas reflexões” e “O fascismo de Perón” entre outros artigos do PP)
Falou-se tanto de fascismo no Brasil.
Mas o processo na Bolívia é a ‘marcha sobre La Paz’. Um golpe que teve sua base dada pela violência das milícias nas ruas, dos tais Comitês Cívicos. O eixo endógeno do fascismo.
Os militares deram seu aval, o eixo exógeno.
Muita atenção pois nenhum país da América latina está próximo de um regime fascista quanto a Bolívia neste momento, me parece.
Leo Vinicius, será que a classe dominante na Bolívia resolveu se suicidar? porque a Bolívia ao contrário da Venezuela, estava com boas taxas de crescimento e agora com a queda do governo Morales (que entregou Battisti, não esqueçamos) o que será desta estabilização política e econômica? terão o modelo chileno como exemplo agora que ele está em completo desgaste?
A pergunta do Marinho reforça questionamentos que já fizemos no PP: o que explica a opção pela derrubada de governos autointitulados progressistas e que representavam o melhor dos mundos para os capitalistas, com a promoção da harmonia e da paz social por meio da união entre trabalho e capital?
Há quem fale em contrarrevolução preventiva.
Já cheguei a aventar a hipótese de que esses governos eram anacrônicos (baseados em princípios fordistas, keynesianos e promotores de ensaios de estado de bem estar social) numa etapa de profunda reestruturação das relações de trabalho: precarização extrema, trabalho intermitente, desmonte de legislações trabalhistas, fragmentação da classe trabalhadora…
Quem ganha com a instabilidade decorrente da queda desses governos “progressistas”?
Legume,
Não devemos exagerar, porque em grande medida as relações sociais de trabalho continuam a decorrer em espaços físicos bem delimitados. Mas também é certo que a tendência à uberização do trabalho se difunde e, como é este o aspecto inovador, é nele que as atenções devem convergir.
A electrónica permite aos capitalistas beneficiarem de economias de escala crescentes mantendo os trabalhadores dispersos, sem correrem o risco de os concentrar. A internet é uma condição geral de produção, e é neste espaço virtual que os trabalhadores têm de aprender a estabelecer relações de luta. Os inconvenientes da dispersão física têm de ser supridos pela concentração virtual.
Ora, o grande problema é que os computadores, incluindo os celulares, ao mesmo tempo que são um instrumento de trabalho são igualmente um instrumento de fiscalização e vigilância. É a primeira vez que isto sucede na história da humanidade, por isso não espanta que os trabalhadores só agora comecem a dar os primeiros passos na utilização segura dessas novas técnicas de inter-relacionamento. Mas não há outra alternativa, porque é esse o espaço que cada vez mais substitui o espaço físico das empresas. É aí que devem incidir os nossos esforços na luta para a transformação das relações sociais de trabalho.
Porém, a enorme facilidade de contactos proporcionada pela internet faz as pessoas esquecerem-se da enorme facilidade de fiscalização e vigilância que esses contactos proporcionam. A tarefa prioritária deve ser a de aprender formas seguras, ou o mais possível seguras, de usar a internet nas lutas sociais. E, se o Passa Palavra puder servir de amostragem, não estou optimista. Inaugurou-se uma coluna mensal dedicada aos Cuidados Digitais, que conta com poucas leituras e quase nenhuns comentários. Que inconsciência!
Vegetal Vegetariano,
O seu comentário ganha nova pertinência com os acontecimentos recentes na Bolívia.
Leo, Marinho e Vinícius de Rezende,
Vocês levantam uma questão que eu ponho a mim próprio todos os dias e para a qual não encontro resposta satisfatória. Se os governos, segundo o dogma corrente, obedecem aos interesses das classes dominantes, por que motivo foi derrubado no Brasil um governo que prosseguia a indispensável modernização do capitalismo? Por que motivo foi derrubado na Bolívia um regime que procurava modernizar as estruturas sociais de um capitalismo tão arcaico? Por que motivo foi eleito nos Estados Unidos um presidente que tem como principal preocupação destruir as relações multilaterais, sem as quais o capitalismo moderno é impossível? Por que motivo no Reino Unido sucessivos governos tornaram iminente o Brexit, que trará prejuízos para a economia britânica e deixa pairar sombras ameaçadoras sobre a Irlanda? Quando não temos respostas é preferível pensarmos só nas perguntas, tentando formulá-las da maneira o mais exacta possível.
Mas a Bolívia traz outros problemas, que não devemos esquecer. De todos os casos que estudei, e foram muitos, é na Bolívia que atingiram maiores proporções os cruzamentos entre direita e esquerda e aquilo a que em sentido lato denomino nacional-bolchevismo (neste caso, uma variante indígena do nacional-bolchevismo). Mas para deslindar este processo seria necessário recuar até um episódio crucial na história do país, a Guerra do Chaco. Nunca prossegui esse estudo, mas quem quiser entender o fascismo latino-americano deve concentrar-se em duas variantes: a Argentina de Perón e a Bolívia desde a Guerra do Chaco.
É que todos os acontecimentos actuais transportam com eles, ou escondidos neles, uma carga histórica.
Canibalismo “no sense” ou “a revolta no interior da coesão”?
Se no “Brasil de Getúlio Vargas e com a Argentina de Perón, recorreram ao fascismo para criar um sistema de economia organizada, que lhes permitisse proceder a um arranque industrial sustentável” (João Bernardo Labirintos do Fascismo, p. 228, 3ª edição), ao menos em parte não poderíamos deslocar do espaço das nações para a “soberania” das corporações transnacionais, onde a revolta no interior da coesão se manifestaria em razão da “posição marginal ou subordinada na economia mundial”(Op.cit) de certos grupos transnacionais, entendendo marginalidade e subordinação em relação ao desenvolvimento e exploração desigual das forças produtivas, sendo os conflitos nacionais efeito e não causa destas revoltas? A própria greve dos caminhoneiros não seria o reflexo destas desigualdades?
Max Veganibalista
João, o celular é um aparelho de espionagem. E apesar de mentirem à população dizendo que é garantida a privacidade, as grandes empresas e os Estados conseguem acessar os celulares de qualquer pessoa. As policias possuem programas caros que conseguem entrar em qualquer celular. E grandes empresas também possuem.
As pessoas se protegem do vizinho, do pequeno comerciante. Das policias e das empresas, é impossivel. Eles possuem e usam meios que não divulgam.
João Bernardo, respeito e considero imensamente toda sua obra, mas creio que se superestima o potencial das novas tecnologias em favor da organização e das lutas dos trabalhadores, não só porque todos os hardwares e softwares verdadeiramente importantes e centrais são monopólios das grandes transnacionais, como mencionou Oculto em seu comentário, mas porque o trânsito e a circulação de informações, além das próprias fontes de energia necessárias ao funcionamento de toda esta cadeia tecnológica, serem também monopólio das grandes transnacionais.
Do meu ponto de vista, se há algum enfrentamento a estas realidades, inclusive do ponto de vista da organização e luta da classe trabalhadora, a partir de todas estas tecnologias, elas ocorrem de maneira estrategicamente controlada e contida, sendo inclusive necessárias para justificar muitas das políticas e práticas opressivas sobre a sociedade em geral, afinal, qual seria a necessidade de Deus se não houvesse o Diabo?
Oculto e Diabolic,
No Victoria and Albert, em Londres, um enorme museu dedicado a artes aplicadas e ao design, existem duas ou três salas só com fechaduras. É uma enorme colecção, desde as fechaduras mais primitivas, datando do neolítico, até às mais complexas fechaduras digitais da actualidade. É que o cérebro humano capaz de inventar fechaduras é o mesmo cérebro humano capaz de descobrir o meio de as violar.
Recentemente trabalhei como motorista de aplicativos, principalmente para Uber. Nossa principal forma de comunicação entre nós é pelas redes sociais, a mais usada é o whatsapp. Nos grupos (e cada motorista normalmente está em vários) recebemos informações do trânsito, das blitz policiais, de bons lugares para alimentação/descanso e de manutenção do carro, além das piadas de sempre. No entanto, pelo menos aqui na cidade, é quando nos encontramos mesmo que conseguimos debater alguma coisa e conversar de verdade, seja nos lanches da madrugada ou nos churrascos com a família. O whatsapp fica mais como um monte de avisos e comentários dispersos. Não sei se esse tipo de encontro é replicável em cidades maiores ou em escalas estaduais, nacionais e quem sabe internacionais. Já nosso contato com o patrão aplicativo se dá pelo mesmo, só quando tem algum problema mais sério que precisamos buscar os pontos de atendimento físico.
Em 21/05/2019 at 12:32, Beto lembrava que “Passado um ano da “Greve dos Caminhoneiros” (… “Greve”…? … E dos Caminhoneiros…?), vão se evidenciando quais as reais dimensões do referido movimento”… Passados mais três anos de silêncio dos passapalavrianos, eis que os holofotes começam a se voltar novamente sobre os caminhoneiros… Como diria João Bernado, “Em matéria de ideologia o silêncio é uma parte do discurso — para a visão crítica é mesmo a componente fundamental — por isso quanto mais exactamente se definir o lugar do silêncio, tanto mais gritante ele será e mais o abafarão numa pletora de palavras” (Labirintos do Fasciscmo). Então, pergunto, qual o lugar deste silêncio passapalvriano?