Por Sódio
Os comentários abaixo dão seguimento ao debate inaugurado pelo artigo Classe e conflitos: um debate entre camaradas, publicado pelo Passa Palavra. Neste debate sobre a classe trabalhadora e suas lutas, misturam-se outras duas questões: o “retorno à natureza” e a “centralidade do conflito”; pode haver alguma “embolação” com estes temas nos meus comentários, mas seu centro é aquele enunciado no título. Pedi ao coletivo que me escolhesse um pseudônimo para combinar com os demais.
1.
Os camaradas propuseram um debate sobre a natureza da classe trabalhadora por meio de uma crítica – ferina, mas necessária – a outros camaradas que propõem, entre outras coisas, “ir para a quebrada”, “retornar à natureza” ou que a classe trabalhadora só se forma enquanto tal por meio dos conflitos, que são tomados como elemento “central” para a formação da classe trabalhadora.
Do meu ponto de vista, a postura que se critica baseia-se em três pressupostos equivocados.
O primeiro pressuposto: não se considerar trabalhador, mesmo quando o é, mas alguma outra coisa (“intelectual”, “classe média” etc.). Quando não são, eles mesmos, essa “outra coisa”, os defensores da “ida à quebrada”, da “ida à natureza” ou da “centralidade do conflito”, tendo como base a identificação equívoca de um grupo social, consideram que este grupo equivocamente identificado não tem nenhum “papel” a desempenhar na luta anticapitalista, pois já são “privilegiados” que tiveram acesso a boa educação, família relativamente estável, e não passaram por maiores necessidades (mesmo quando tenham eventualmente vivido no limite da pobreza). Partindo daqui, só o que se pode fazer é “apoiar” as lutas de “verdadeiros trabalhadores”, qualquer que seja o critério desta “verdade”.
Essa questão dos “privilégios” leva a situações absurdas.
Um exemplo: um rapaz trabalhador, morador de um bairro popular, de família no limiar da pobreza, considera-se “privilegiado” por ser heterossexual, cisgênero e ter pele um pouco clara. O coitado dizia isso depois de ter tomado um esculacho brutal da polícia, de ter apanhado muito e quase ter sido preso, tentaram inclusive “plantar” drogas nele. Tudo isso se descobriu depois de a ação policial violenta ter sido acompanhada por algumas dezenas de vizinhos, que seguiram a viatura até a delegacia para salvar a vida do rapaz, como fazem com tantos outros. Casos assim multiplicam-se entre jovens sujeitos à ideologia dos “privilégios”, que é o novo vocabulário pelo qual as opressões e a exploração são abordados pela negativa.
A confusão tem uma explicação até simples.
Com a complexificação do capitalismo desde o advento das modernas sociedades por ações, o capitalismo não tem mais as “caras” de capitalistas individuais. Rotschilds, Fords, Vanderbilts, Siemens, Barings, Carnegies, Farquhars, Barclays, Morgans, Fuggers, Astors, Hearsts, aquelas figuras que antes se podia apontar como responsáveis pela exploração têm sido substituídas pela impessoalidade e extrema burocratização das corporações e grandes empresas. Claro, as listas de milionários da Forbes, e também os departamentos de relações públicas das empresas ainda modeladas em torno de certas famílias, acendem as imaginações dos “empreendedores”, mas torna-se cada vez mais difícil relacioná-las no imaginário popular com as empresas de onde extraem suas fortunas. Para os trabalhadores que consomem seus bens e serviços, a verdadeira “cara” dessas empresas é a de milhões de gerentes, capatazes, administradores e funcionários.
Em paralelo, há enorme dificuldade no meio anticapitalista de entender o capitalismo como um sistema de relações sociais necessárias, onde é extremamente limitado o campo das relações sociais que podem ser pautadas por escolhas éticas ou morais. Se é pelo caminho da indignação e da revolta contra injustiças que muitos de nós chegaram a este meio, este mesmo caminho deveria levar-nos além, a entender como se formam e operam a exploração e as opressões que nos indignam e revoltam, para melhor combater os adversários. Há, entretanto, muitos obstáculos neste caminho, que termina sendo percorrido por menos entre nós do que seria desejável. O resultado é a prevalência de concepções éticas ou filosóficas da luta anticapitalista que, conquanto necessárias, não são suficientes para construir algo além da própria revolta e indignação de que se partiu inicialmente. É neste mesmo nível basilar que opera a teoria dos “privilégios”: sob uma roupagem verbosa de “concretude” sociológica, essa teoria opera sobre tais concepções éticas e morais de anticapitalismo e converte-as num maniqueísmo ad personam.
As duas tendências coexistem e influenciam-se, com funestas consequências.
Como as maiores empresas no capitalismo não têm mais uma “cara”, um “corpo” de quem seria possível exigir uma conduta “ética” ou “moral”, é muito fácil olhar para os lados e encontrar essa “cara” nos capitalistas menores e mais próximos, donos de empresas com poucos funcionários e baixa lucratividade – em suma, nos capitalistas mais retardatários, naquelas empresas mais retardatárias. Nestas empresas, onde os donos ora supervisionam diretamente o trabalho, ora integram-se em alguma posição no processo de trabalho que lhes permita também exercer tal supervisão, não se verifica a concentração e acumulação de capital suficientes para desencadear a burocratização extrema daquelas empresas maiores, que concentram mais capital e, como resultado, não têm uma “cara”. Essas empresas costumam integrar-se muito marginalmente nos circuitos produtivos mais tecnologicamente desenvolvidos, relegando-se portanto a extrair mais-valia na forma absoluta por meio da combinação variada de diferentes métodos: extensão de jornada, intensificação coerciva do processo de trabalho, tecnologias baratas e ultrapassadas etc.
Ocorre que estes capitalistas desfrutam de um padrão de vida equivalente a um trabalhador qualificado. O dono de uma pequena serralheria num bairro popular, ou a dona do salão de beleza no mesmo bairro, têm renda líquida mensal situada numa faixa cujo limite inferior equivale à renda de uma bibliotecária, de um advogado celetista, de um mestre de obras ou de uma professora do ensino fundamental, e cujo limite superior equivale à renda de um engenheiro civil celetista, de um gerente de logística ou de um engenheiro devops. (Voltarei ao assunto do “padrão de consumo” e das “faixas de renda” mais à frente.)
Na medida em que estes capitalistas retardatários são a “cara” visível do capitalismo para amplos setores no meio anticapitalista, é deles, e de suas reclamações habituais para que se removam os entraves criados pelos capitalistas mais poderosos para que fiquem lá onde estão, que certos anticapitalistas estão a falar quando mencionam qualquer demanda ou reivindicação empresarial. É seu “padrão de consumo”, não muito diferente daquele de um trabalhador qualificado, que aos olhos de certos anticapitalistas nivela a ambos em seus “privilégios”, e portanto leva a tratar como uma estranha espécie de “capitalistas” aqueles trabalhadores mais qualificados.
Pior: aquela concepção “ética” e “moral” de anticapitalismo, ou ainda aquela outra estritamente baseada no combate a “privilégios”, leva certos anticapitalistas a esconjurar o dono do mercadinho, mas a ver-se perdidos quanto aos acionistas da Vale ou da Petrobras. Não há, quanto a estes últimos, qualquer eficácia em apontar-lhes falhas “éticas” ou “morais” em suas decisões, porque são milhares. Se esta é a situação quanto aos acionistas, pior ainda é a situação quanto aos chief officers das corporações, quanto aos gestores de topo, este corpo profissional relativamente anônimo que, não tendo qualquer apego ao cargo senão as remunerações que aí recebem, podem transitar silenciosamente de empresa em empresa. Frente às decisões “antiéticas” e “imorais”, basta-lhes receber discretamente as vultosas indenizações demissionais contratualmente pactuadas e seguir adiante rumo outras empresas para que comecem nova carreira sem grandes máculas; da parte dos que ficam, bastam alguns comunicados quanto a “cooperar com as investigações”, e a empresa segue com a exploração nossa de cada dia.
Aliás, essa concepção “ética” e “moral” de anticapitalismo, ou ainda aquela outra estritamente baseada no combate a “privilégios”, porque voltadas para os agentes mais retardatários do capitalismo, arrisca entrar sem maiores ressalvas pelas portas abertas para os mecanismos compartilhados de gestão característicos das empresas onde inovações tecnológicas, gestão “mais humana” e maiores possibilidades de novos investimentos caracterizam as formas mais avançadas de extração da mais-valia. Tal característica é ainda mais verdadeira quando essas empresas abrem possibilidades de mobilidade social ascendente a setores historicamente desprivilegiados da sociedade. Eis porque, voltando ao tema da personificação dos capitalistas, há tanta gritaria quanto a Luciano Hang e tanto silêncio quanto a Luíza Trajano.
Mas esse primeiro pressuposto, de tão complexas consequências, só existe por causa de um segundo que, embora menos aparente, precede-o. Conquanto os defensores da “ida à quebrada”, da “ida à natureza” ou da “centralidade do conflito” considerem como trabalhador qualquer assalariado com padrão de consumo compatível com as “classes” “C” e “D”, é precisamente por ver no “padrão de consumo” a linha divisória entre classes que situam “fora” da classe trabalhadora qualquer pessoa que não esteja no limiar da pobreza.
Note-se: “padrão de consumo”, não “estratificação de renda”, tampouco “classe social”. São três critérios distintos.
“Estratificação de renda” é critério estritamente censitário de segmentação de uma população, adotado como distintivo de classes sociais a partir da sociologia estadunidense de início do século XX. Servia ao mesmo propósito do “padrão de consumo”, porque atendia a um pressuposto comum: uma sociedade de indivíduos iguais em direitos, tornados “ricos” ou “pobres” por questões estritamente individuais de “força de vontade”, “resiliência”, “sacrifício”, “esforço”…
“Padrão de consumo” é o critério mais usado pelo senso comum para distinguir as classes sociais. Aqueles mais afeitos às redes sociais devem lembrar de uma polêmica relativamente recente surgida a partir de uma brincadeira de adolescentes, que definiam quem é “burguês” pelo fato de ter acesso a Netflix, iPhone, número de vezes em que sai para jantar fora num mês, entre outros pequenos prazeres pessoais, aliás fornecidos ou produzidos em massa. Bens e serviços posicionais extremamente sofisticados, alguns inclusive produzidos sob medida, sequer entraram na brincadeira. Pode-se perceber aí duas coisas: ou pequenos prazeres pessoais como pizzas e viagens de férias dentro do próprio país transformaram-se subitamente em bens posicionais, o que é falso, ou aqueles bens e serviços mais sofisticados – como panelas Le Creuset, sapatos John Lobb ou Edward Green, carros Maybach 57 ou Bentham Mulsanne, ou férias no Hotel Negresco, no Fairmont Le Montreux Palace, no Reverie Saigon, no PuLi, no Schlössle Hotel ou no Burj Al Arab – encontram-se tão fora do alcance das massas de trabalhadores que passam despercebidos, conhecidos apenas de um publico especializado. De qualquer modo, tal ocultamento contribui para reforçar a impressão de que “capitalistas” mesmo, “capitalistas” de verdade, são os pequenos capitalistas e seus pequenos prazeres – enquanto os verdadeiros capitalistas e seu consumo conspícuo seguem incólumes.
Do senso comum, o “padrão de consumo” foi convertido em critério “científico” por Milton Friedman – ele mesmo, o “pai” de todos os Chicago Boys – como parte integrante da hipótese da renda permanente (interessados poderão pesquisar sobre o assunto e descobrir do que se trata). Transformado o senso comum em algo matematicamente calculável, esse critério foi adotado pela Agência Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP) para segmentar público de marketing; são as “classes” A, B1, B2, C1, C2, D e E, tão referidas na mídia.
Vimos acima alguns problemas do uso do “padrão de consumo” como sinal distintivo único ou principal de certas classes sociais , que mais confunde do que explica, mas é possível encontrar ainda outros equívocos, aliás de péssima linhagem. Basta olhar a história dos processos revolucionários na Rússia, na China, em Cuba, na Coreia, no Vietnã e em vários países africanos para ver como a aparência de frugalidade foi elemento importante para que novas camadas dirigentes mascarassem seu poder frente às massas revolucionárias. Se a ostentação de bens posicionais pelos burgueses é uma das razões do ódio que lhes devotam os trabalhadores a cada novo dia de exploração, em especial porque é da sua exploração direta e intensa que vem tal ostentação, é curioso observar como nos processos revolucionários essa ostentação é fortemente reprimida pelas novas classes dirigentes quando a atividade revolucionária das massas de trabalhadores é mais pujante, e paulatinamente permitida quando tal atividade se reduz.
Estratificação de renda e padrão de consumo não determinam adequadamente as classes sociais. Quando muito, levando em conta as formações sociais hegemonizadas pelo capitalismo, o que há são somente diferenças de fortuna, que podem eventualmente refletir a estrutura das classes sociais, mas não se confunde com elas.
“Classe social” é outra coisa, com uma longa história que abrange desde definições jurídicas (como no império romano) até determinações sociológicas e econômicas. Foi nos meios revolucionários, primeiramente, que se percebeu como só há classes sociais no capitalismo por força das relações antagônicas de produção que o formam. Decorrem dessa constatação a definição das classes sociais com base na propriedade de meios de produção (Marx), ou na propriedade de meios de produção conjugada com o acesso à educação (Bakunin). Tão impactante foi essa descoberta que mesmo na sociologia acadêmica a propriedade de meios de produção foi incorporada como critério distintivo das classes sociais, mesmo quando “temperada” pelo prestígio social (como em Max Weber – que nada tem a ver com a estratificação por renda, como habitualmente se pensa).
A renda das classes sociais, assim como sua capacidade de consumir, encontra sua origem e justificativa no seu lugar no processo produtivo global, e portanto na luta de classes. Já o contrário é impossível. Um trabalhador que ganhe o suficiente para contratar serviços pessoais ou domésticos pode viver da ilusão que isso faz dele um capitalista – mas nunca o será. Qualquer trabalhador contratado para prestar habitualmente tais serviços, especialmente quando eles reproduzem formas sociais pré-capitalistas de trabalho, sentirá que esse patrão é um capitalista – no que também se enganará. (Voltarei a este assunto mais à frente.)
Apesar de a concepção moderna das classes sociais ter surgido nos meios revolucionários, ainda há enorme confusão nestes mesmos meios sobre quais determinações diferenciam uma classe social da outra, em especial quando a diferença de fortunas entra na mistura: ela oculta o lugar onde se produz a contradição entre classes, e dificulta estabelecer as pontes de solidariedade entre setores diferentes da classe trabalhadora. A situação fica ainda pior quando essa confusão opera junto com a ideologia dos “privilégios”, apesar de nem sempre essa confluência ocorrer.
O último pressuposto tem a ver com a formação de consciências pela prática de trabalho. O trabalho em profissões cujos locais de trabalho ou concentram poucos profissionais, ou concentram muitos profissionais com “renda” ou “padrões de consumo” diferentes, ou mesmo em profissões onde não há um local de trabalho físico a concentrar trabalhadores, este trabalho condiciona certos militantes que nele trabalham a ver no “território” (ou seja, na “quebrada”, na “comunidade”, no “quilombo” etc.) o único lugar onde construir laços de solidariedade que podem, eventualmente, assumir caráter militante.
Sim, de fato, é possível construir militâncias baseadas em territórios. Negá-lo seria perda de tempo. Mas ao dissociar-se das lutas contra a exploração, essa militância transforma-se em “bairrismo”, em “quebradismo”, em “periferismo”, ou como queiram chamar. Transforma-se em mais uma identidade, desta vez radicada na “pertença” a um dado território. As péssimas condições de vida nos bairros de trabalhadores não são mais tomadas como decorrência da materialização das relações de exploração no espaço, mas como ponto de partida. Não se mora em bairros com péssimas condições porque os capitalistas, por serem capitalistas, mobilizam todos os seus poderes para conquistar os melhores lugares, ou para construir lugares melhores, deixando aos trabalhadores todo o resto; mora-se lá porque é-se de lá, e pronto. De onde venho, essa “pertença” me impediu várias vezes de visitar amigos em bairros vizinhos, porque para gente do nosso bairro entrar nos bairros desses meus amigos era uma condenação ao espancamento, e em casos extremos à morte.
Mas é de se perguntar: não estariam assim os defensores da “ida à periferia”, da “ida à natureza” ou da “centralidade do conflito” evitando as lutas existentes em seus próprios locais de trabalho, em seus próprios bairros? Não seria a aspiração à participação em lutas em outros lugares uma “fuga” daquelas que se pode travar em seu próprio lugar? Não seria essa ansiedade por encontrar os lugares onde há “conflitos” um reconhecimento da própria impotência para construir as lutas que se pode travar ali mesmo onde se trabalha? É talvez essa busca frenética pelas categorias profissionais ou pelos lugares onde há mais “conflito” que tornaram infensos aos conflitos tanto certas categorias profissionais quanto certos lugares.
Esse descolamento entre exploração econômica e formação de territórios tem o mesmo efeito tanto para a “quebrada” quanto para a “natureza” – mas desse último caso falarei mais adiante.
2.
Estabelecidos os pressupostos do debate, comento a seguir num só fôlego as muitas intervenções que fazem uma oposição artificial entre dois momentos da luta de classes: os conflitos de todos os dias, que opõem os trabalhadores àqueles que exploram seu trabalho, e as lutas abertas, intensas, violentas. Meu argumento é de que não se pode “decretar” a “centralidade” de um ou de outro aspecto sem tirar do centro o que realmente deveria ser central: a experiência no trabalho coletivo, cooperativo, associado. De igual modo, é esta experiência quem evidencia o caráter estritamente ideológico da “volta à natureza”, porque sua complexidade, tal como sua plena inserção em formas capitalistas de produção, é ocultada sob palavras de ordem “revolucionárias” muito enganadoras.
“Trabalho”, se levarmos as coisas até as últimas consequências, se formos apagando as diferenças pouco a pouco até chegarmos ao que todos os trabalhadores realmente têm em comum em seus muitos trabalhos, é uma atividade produtiva, adequada a determinado fim e que adapta certos elementos da natureza às necessidades particulares da humanidade. Para onde quer que se olhe, se encontrará o mesmo: o intercâmbio material entre a humanidade e a natureza, ou seja, uma atividade produtiva; a adequação desse intercâmbio material a determinada finalidade, adaptando-lhe aquela porção da natureza envolvida nesse intercâmbio; e o atendimento de uma necessidade humana por meio desse intercâmbio adequado a um fim.
Nesse nível mais abstrato, é o trabalho quem permite colocar na mesma classe trabalhadores tão distintos quanto uma confeiteira, um eletricista, um entregador e um engenheiro químico. Mas o trabalho, sozinho, não é suficiente para entender a formação de uma classe social. Há outras determinações a observar, como a presença e a intensidade da cooperação nos processos de trabalho de cada setor. Essa determinação tem consequências políticas importantes, e precisa ser mais bem explicitada.
Tomem o exemplo de uma contadora recentemente desempregada que resolveu fazer bolos para vender. Se os bolos são bons e a propaganda é boa, cresce a procura, e ela, sozinha, não dá mais conta da produção. Tem de chamar alguém para trabalhar junto. Tomem agora o exemplo de uma costureira que passou a costurar máscaras nos primeiros meses da pandemia, para não ficar sem trabalho. Deu para suportar os primeiros meses, e como passou a atender pedidos pelo Whatsapp, ela resolveu oferecer também vestidos, saias e blusas sob medida, e os pedidos começaram a chegar. Novamente, fez-se necessário chamar alguém para ajudar: a vizinha da rua de trás, uma sobrinha, qualquer pessoa. Não importa, aqui, se esses que vieram ajudar na produção o fazem como um favor, como sócios ou como trabalhadores assalariados; importa é perceber a necessidade de aumentar o volume da produção por meio do aumento de pessoas engajadas no processo produtivo: trabalhar junto, trabalhar com alguém, trabalhar em cooperação, aumenta a produtividade. Não só isso: a depender de com quem se trabalha e como se trabalha, o trabalho rende mais.
Ocorre que esta é uma cooperação simples: muitas pessoas fazendo as mesmas tarefas.
Veja-se agora o exemplo de um eletricista autônomo. Claro, ele poderá consertar a instalação elétrica de uma casa, e poderá mesmo trabalhar com mais um ou dois aprendizes, mas essas pequenas equipes nunca conseguirão, sozinhas, produzir a energia elétrica ou distribuí-la para seus consumidores finais. Vale o mesmo para o encanador quanto à rede de abastecimento de água, a enfermeira quanto a certos cuidados mais complexos com a saúde, a professora quanto ao processo pedagógico integralmente considerado… Há certos trabalhos impossíveis de se desenvolver a contento sem algum nível de cooperação mais complexa entre trabalhadores com diversas especialidades.
Esta cooperação mais complexa, no capitalismo, pode-se dizer que funciona mediante dois pressupostos. Primeiro: nas empresas, não foi com recursos dos próprios trabalhadores que eles foram postos a trabalhar juntos, mas sim porque o capitalista, dispondo de recursos aptos a transformar em capital, comprou todas as instalações, as ferramentas, as matérias-primas e os estoques, e comprou também a força de trabalho dos trabalhadores pelo preço do seu salário. A descrição não é a mais exata, mas é mais ou menos isso. Ele é dono, e portanto, pelas leis de hoje, ele pode exigir que se faça isso ou aquilo, e ainda pode ficar com tudo o que os trabalhadores produzem. Daí vem o segundo pressuposto: como o capitalista é dono disso tudo, ele pode ou supervisionar o trabalho diretamente, ou contratar uma porrada de gente para fazer esse serviço. Toda aquela força produtiva, todo aquele poder, tudo o que resulta daquele trabalho em cooperação, ou seja, todos aqueles ganhos de produtividade, tudo isso é direcionado como um “plus” para o patrão por meio do trabalho da apropriação do trabalho coletivo.
Sem algum nível de cooperação no trabalho, é impossível manter uma sociedade complexa como a nossa. Mesmo nas menores cidades do interior, mesmo nas roças mais isoladas, existe algum nível de cooperação no trabalho. É aí que reside a força de todos os trabalhadores. A força dos trabalhadores no capitalismo, o que aterroriza os patrões, é o fato de que eles, os patrões, só existem enquanto tal por causa desse trabalho associado, desse trabalho em cooperação. Eles só são patrões enquanto, além de explorar o trabalho dessa coletividade de trabalhadores, supervisionarem tal exploração, ou contratarem quem o faça em seu nome. Se pararem com a exploração, viram qualquer outra coisa – menos patrões. Patrão de grande empresa, patrão de pequena empresa, patrão de microempresa, todos têm esse medo em comum. É de interesse dos patrões desenvolver todos os meios possíveis para quebrar, nos trabalhadores, a consciência a respeito desse trabalho em comum, e a respeito do poder dos trabalhadores quando trabalham em comum. Sem retomar na prática esse vínculo com essas práticas coletivas, com esse trabalho associado, não há mudança possível.
A meu ver, está aqui o ponto cego que põe no mesmo campo posturas tão diferentes quanto a “volta à natureza” e a “centralidade do conflito”.
A primeira mascara sob uma utopia agropastoril um trabalho extremamente complexo como o trabalho agrícola, idolatra a figura do camponês sem dar a menor noção da complexidade de mecanismos de mercado e de “políticas públicas” que envolve o trabalho nessas pequenas indústrias semicooperativadas construídas nas experiências mais “exitosas” da luta pela terra.
A segunda aposta em momentos episódicos das lutas de trabalhadores, especialmente nas “revoltas contra o Estado” que enxergam a cada revolta parcelar, sem dar a devida atenção seja às lutas que envolvem o cotidiano da exploração no trabalho associado, seja às formas que os trabalhadores encontram para produzir valor para si próprios.
Tratarei mais extensamente desses dois assuntos na semana que vem.
As esculturas que ilustram o artigo são de León Ferrari (1920 – 2013).
“Essa esquerda sem chão, sem cor da terra, desenraízada de uma base na comunidade, teve sua chance e está falhando miseravelmente.”
Do Livro Por terra e territórios
Sem dúvida a publicação agrega e faz avançar o debate.
Inclusive por demonstrar o erro de se tomar “renda e padrão de consumo” como caracterizadores de classe.
Este foi o embuste a embasar a suposta emergência de uma “nova classe média” durante os governos Lulistas (2003/2016).
Outros pontos importantes são assinalar a impessoalidade do Capitalismo contemporâneo, assim como a falta de profundidade ao se considerar como empresários-companheiros José de Alencar e Eike Batista, antes, e agora Luiza Trajano.
Por outro lado, nunca é demais repetir: reflexão sem ação é pura elocubração, e ação sem reflexão desatino trágico.
Além disto: 《 É a forma das relações estabelecidas numa dada luta que determina a sua capacidade para romper, ou não, com os sistemas de organização capitalistas》.
Qual um exemplo de fatos concreto, aqui e agora, que caracteriza na prática este debate sobre “classes e conflitos sociais”?
Uma resposta possível: o “Campo de Refugiados 1o. de Maio”, ocupação de terra da Petrobrás onde seria instalado o polo petroquímico de Itaguaí (RJ).
A reflexão sobre ele faz avançar a ação em curso, que por sua vez exige novas reflexões.
Nele se encontram algumas principais questões, entre estas:
• a “classe para si” só toma forma na luta.
• a centralidade da terra no conflito.
• a revolta em si não basta, precisa redundar em salto organizativo.
• a potência da classe trabalhadora advém de seu trabalho coletivo.
• a luta pela saúde, contra o genocídio, através de atuação prática e imediata, apontando para uma luta anti-Capitalismo.
Caro Metal Alcalino de número atômico 11,
Os pressupostos que você utiliza são caricaturas e distorções de posições que pela minha leitura apareceram nesse debate. Vejamos:
“Mas é de se perguntar: não estariam assim os defensores da “ida à periferia”, da “ida à natureza” ou da “centralidade do conflito” evitando as lutas existentes em seus próprios locais de trabalho, em seus próprios bairros? Não seria a aspiração à participação em lutas em outros lugares uma “fuga” daquelas que se pode travar em seu próprio lugar? Não seria essa ansiedade por encontrar os lugares onde há “conflitos” um reconhecimento da própria impotência para construir as lutas que se pode travar ali mesmo onde se trabalha?”
Eu não vi ninguém defendendo “ida à natureza” por exemplo. Não sei se “centralidade do conflito” ou “ida à periferia” também apareceram. Vi posições que não podem ser simplificadas dessa forma. O arkx Brasil que tem comentado nos textos, nunca falou de ‘volta à natureza’ por exemplo. Ele fala em retomar o meio de produção chamado terra. Menos ainda vi alguém idealizando ou romantizando vida camponesa ou quilombola…
Na última pergunta que destaquei no seu texto, e que você responde, a resposta nao me parece surpreendente. Éclaro, as pessoas tendem a buscar categorias que estão apresentando um potencial de luta. Ou que tenham grande poder de barganha e possam assim colocar em xeque a cadeia de produção. Nada mais natural que a militância fareje onde há rebeldia, ou se fixe em categorias que acham centrais à economia capitalista. Ora, por isso historicamente a militância revolucionária procuram antecipar onde irromperá uma insurreição, procuram farejar a rebeldia, ou se fixam na metódica militância entre operários industriais. Sempre foi assim, não há novidade. E não se trata de achar que os trabalhadores que nao são pobres ou miseráveis são “privilegiados”. Não vi ninguém usar esse argumento no debate. Embora ache fundamental a crítica à teoria dos “privilégios” que infectou a esquerda de ideologia burguesa, não é disso que se trata neste debate. Ora, se trata de constatar que a parte da classe trabalhadora remediada parece bastante apática e difícil de se mobilizar e revoltar, ainda mais em tempos recessivos, em que as pessoas temem perder o que tem pois veem o mundo desabar em volta.
Sobre a sua reposta, é claro que há impotência em construir lutas nos nossos locais de trabalho. Mas quem disse que os debatedores também não se dedicam a isso? Talvez pela constatação do recuo em que essas categorias estão e do quão pouco frutifica a militância é que buscam outros grupos sociais ou táticas. Por exemplo, o serviço público é um mar de apatia, um grupo social em diminuição de onde está muito difícil perceber potencial antagônico e auto-organização.
Agora, vale lembrar os zapatistas… luta territorial e pela tomada dos meios de produção ao mesmo tempo. São camponeses, uma situação muito diferente da nossa. Onde está Chiapas na nossa geografia?
“Nada mais natural que a militância fareje onde há rebeldia, ou se fixe em categorias que acham centrais à economia capitalista. Ora, por isso historicamente a militância revolucionária procuram antecipar onde irromperá uma insurreição, procuram farejar a rebeldia”
Repara-se aqui uma constatação de que as lutas subterrâneas em condições adversas não são esperadas por certos setores da esquerda. É muito confortável à esquerda impregnar-se em categorias que não são as suas porque 1) pode repetir as mesmas fórmulas sem medo de errar; 2) as consequências de uma luta irresponsável não decairá sobre esses militantes, também trabalhadores (ou ainda lemos a cartilha leninista de que os conflitos políticos vem de fora das lutas econômicas?). Não se trata aqui de dizer que cada um cuide do seu quadrado, ou que não devam sentir as dores de trabalhadores em outros locais de trabalho, mas de constatar a orientação política destes apaixonados pela estética da rebeldia.
No mais, posso dizer sem medo de errar que o momento mais marcante da minha militância foi quando consegui, em ambiente escolar, sem apoio algum de docentes da escola em que trabalhei, conspirar com colegas de trabalho e realizar uma paralisação que nunca aconteceu antes dentro da categoria. Marcante não porque atingiu relevância nacional, ou porque foi insurrecionalista, mas porque trabalhadores sem histórico de organização sindical, e sem relevância política alguma puderam aperceber-se do seu poder — botar os gestores contra a parede. Tivemos de enfrentar as consequências óbvias de quem se organiza por fora das estruturas de assimilação das lutas (sindicatos). Tivemos de tomar as dores daqueles que sofreram assédio moral após a paralisação, tivemos de investigar as represálias quando elas ocorriam nas escolas, longe dos olhos da sociedade civil e de outros profissionais. Enfim, a questão é que os defensores da centralidade conflito, quero estar errado, mas me parecem ignorar a intervenção nesses processos que sucedem ou antecedem dos “conflitos”.
Cobre,
Não se trata necessariamente de estética de rebeldia.
Apenas apontei um fato histórico, que não foi contradito. Historicamente militantes ou farejam onde está a rebeldia ou escolhem uma categoria que consideram estratégica.
Ora, a militância em categorias que se considera estratégica em geral é subterrânea. Então nao sei qual a questão.
E mais, isso nao significa que nao se milite tbem no próprio local de trabalho. Difícil um militante ser indiferente ao que ocorre no próprio trabalho.
Essa discussão toda parece conversas de surdos ou problematizaçoes procurando pelo em ovo.
Eis o pelo do ovo:
“a dessocialização predominante nas relações de trabalho revela-se insuportável aos olhos de muitos, produzindo o desejo de conservar vínculos de solidariedade, por menores que sejam, externos à conflituosidade própria das relações de exploração, na medida em que estas últimas aparecem em toda a sua destrutividade, patente no fato de que as pessoas, afinal, continuam circulando e se contaminando porque precisam trabalhar.” “A solidariedade real só pode existir como um lampejo no interior do conflito aberto.” (https://passapalavra.info/2021/03/136271/)
Acho que a retórica da centralidade do conflito nega os processos de organização próprios dos períodos onde não há conflito aberto. Nesta lógica, onde não há solidariedade real fora dos holofotes, é impossível atuar de forma subversiva, conspirativa, formando vínculos e construindo lentamente, em lugares de trabalho ou territórios que não estejam em conflito aberto. Diria inclusive que, para esta retórica, o único que se pode encontrar aí é uma espécie de falsa solidariedade. Algo a ser evitado…
Acho que aqui também aparece outra verdade sobre esta posição: é mais real a solidariedade entre dois desconhecidos que na rua se cruzam fugindo dos gases da polícia, do que a que existe entre companheiras de trabalho que inventam estratégias secretas para evitar o assédio sexual cotidiano de um chefe. É muito mais fácil idealizar um desconhecido do que as pessoas apáticas com quem somos obrigados a conviver.
E agora, a galinha:
Antimônio, boa pergunta. Para além das boas intenções, onde é que anda Chiapas no mapa da esquerda? Confesso que no meu mapa ultimamente só vejo referências a este lugar em ambientes cirandeiros. Inclusive, a última discussão mais ou menos sérias sobre eles estava relacionada ao fato de terem feito um giro em direção à política eleitoral indigenista. Tem outra coisa também. Não estou muito certo desta caracterização, ou melhor, não diria que são “camponeses”. Mas não é um detalhe o fato de que o ELZN começou com um punhado de pessoas que se embrenharam na selva com armas e lá ficaram por aproximadamente 10 anos, mantendo contato com as populações locais e organizando seus pontos de apoio, antes de sair a público. Falar de horizontalismo, luta territorial e tudo o mais, sem mencionar esse detalhe é romantizar, nada mais nada menos.
Me comunico mais em LIBRAS. Surdos conversam sim! Conversamos muito bem sim senhor seu Antinômio (nem botar a cara bota). Estou gostando da discussão, não das ofensas.
Os pressupostos que você utiliza são caricaturas e distorções de posições que pela minha leitura apareceram nesse debate. Mas não é um detalhe o fato de que o ELZN começou com um punhado de pessoas que se embrenharam na selva com armas e lá ficaram por aproximadamente 10 anos, mantendo contato com as populações locais e organizando seus pontos de apoio, antes de sair a público. Entre eles, um professor de filosofia da Cidade do México que recusou se organizar com os colegas qualificados da mais valia relativa (É muito mais fácil idealizar um desconhecido do que as pessoas apáticas com quem somos obrigados a conviver) e apostou numa “ida à natureza”, ao território periférico indígena tradicional chiapaneco, tudo isso para construir um levante guerrilheiro ( aposta em momentos episódicos das lutas de trabalhadores, especialmente nas “revoltas contra o Estado”) que ganharia os holofotes com a centralidade do conflito. Historicamente militantes ou farejam onde está a rebeldia ou escolhem uma categoria que consideram estratégica. Falar de horizontalismo, luta territorial e tudo o mais, sem mencionar esse detalhe é romantizar, nada mais nada menos. Enquanto surdos de fato conversam sim, há quem use aparelho fonador para travar conversas de surdos.
-> “Transforma-se em mais uma identidade, desta vez radicada na “pertença” a um dado território.”
O desafio paradoxal que as comunidades enfrentam é:
• ela deve se enraizar numa territorialidade local, constituir uma singularidade sem recair num identitarismo
• ao mesmo tempo precisa estabelecer articulações com outras comunidades, ou seja, elevar-se da ancoragem que a constitui, sem contudo disputar hegemonia.
Se um dos dois objetivos não for atingido:
• ou a comunidade se fecha no seu território e lentamente se isola em estagnação,
• ou se torna numa vanguarda errante, desenraizada, estrangeira aos territórios pelos quais se move, não inspirand mais do que desconfiança à sua passagem.
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Uma questão. Se por um lado é verdade que o consumo não denota classe social de forma direta, não é verdade que a classe social acaba por engendrar padrões de consumo? Um alto padrão de consumo, mesmo que formalmente se viva de salário, não demonstra uma apropriação individual do produto da produção coletiva? Digo isso ao ver alguns debates sobre as empresas chinesas, como a Huawei, onde alguns marxistas argumentam que os altos salários dos gestores (e não apenas de CEOs), comparados aos dos trabalhadores, não configuram um processo de exploração, uma vez que eles são assalariados e, portanto, também trabalhadores. Os gestores também são explorados?
Paulo Henrique,
Com frequência patrões e trabalhadores partilham os mesmos padrões de consumo, o mesmo modo de vida e a mesma cultura. É o que sucede nas pequenas oficinas e em geral nas pequenas empresas, muitas vezes entre os camionistas e os taxistas. Por isso constituem uma das bases sociais do fascismo clássico. E certos elementos das camadas inferiores da classe dos gestores partilham também sistematicamente a mesma cultura dos trabalhadores, senão os contramestres e todo esse tipo de gestores não seriam eficazes na autoridade que detêm.
Ser explorado ou explorador não decore da distribuição dos rendimentos nem dos padrões de consumo. Decorre do lugar que se ocupa relativamente ao tempo de trabalho. Todos aqueles que não detêm nenhuma autoridade sobre o seu próprio tempo de trabalho nem sobre o tempo de trabalho alheio são explorados. E são exploradores todos aqueles que controlam o tempo de trabalho alheio e o seu próprio tempo de trabalho — quer porque o façam individualmente (burgueses) quer porque pertençam a um organismo que o faz colectivamente (gestores).
A mais-valia entende-se exclusivamente em termos de tempo de trabalho. E a mais-valia relativa é o motor do capitalismo porque incorpora cada vez menos tempo de trabalho num produto, quer se trate de um bem material ou um serviço quer se trate da própria força de trabalho. A mais-valia relativa é o motor do capitalismo, que se exprime tecnologicamente no aumento da produtividade.
A confusão corrente entre relações de exploração (o lugar ocupado nas relações sociais de exploração, ou seja, no âmbito do tempo de trabalho) e forma jurídica de remuneração (a ficção jurídica do assalariamento) é promovida por aquela esquerda cujo objectivo é o estabelecimento de um capitalismo de Estado, o que em termos sociais implica a mobilização dos trabalhadores em apoio a um programa político de gestores. Por isso essa esquerda se desvia da análise das relações sociais estabelecidas no processo de trabalho para se concentrar nas questões da distribuição de rendimentos e das formas culturais.
A esquerda hegemónica não é mais do que a esquerda defensora do capitalismo de Estado, e o debate que desde há mais de uma semana prossegue no Passa Palavra mostra os estragos que essa esquerda provoca mesmo entre alguns que se julgam longe dela.
João Bernardo.
Embora este não seja quiçá o local nem o meio adequado, esta é uma rara oportunidade para desfazer em directo algumas das falácias que você usa para formular as suas sentenças. Ainda bem que as subscreve com o seu nome e não com o do seu alter-ego Estrôncio. E é também uma oportunidade para desmistificar algumas das falácias do auto designado “marxismo heterodoxo”, de que você é o expoente máximo.
Nos seus comentários ao artigo anterior desta série, aí encapotado sob a designação de Estrôncio, você afirmou coisas extraordinárias, algumas deixadas por responder por mim por mero lapso. Retomo-as, porque neste seu comentário de agora você também as retoma e, inclusive, repete insinuações e acusações de todo infundadas, que me abstenho de qualificar.
1. A “confusão de desigualdade com exploração”.
Anteriormente, você tinha argumentado que a diferença de rendimentos dos trabalhadores assalariados se deveria a que “um dos aspectos do mercado de trabalho é a concorrência dos trabalhadores entre eles”. A concorrência entre trabalhadores, que é um facto, não produz aumento dos salários, como a concorrência entre capitalistas, outro facto, não produz aumento dos preços das suas mercadorias. A escassez produz aumento dos preços das mercadorias, inclusive do trabalho, mas a abundância e a concorrência produzem o efeito inverso. Daí que a sabedoria empírica de uns e outros, trabalhadores e capitalistas, os tenha mobilizado para a anularem como lhes fosse possível, e aos trabalhadores pela criação de associações de defesa dos seus interesses económicos, os sindicatos. E se a escassez relativa dos trabalhadores mais qualificados das empresas mais produtivas, face à dos trabalhadores das empresas menos produtivas, os afecta menos do que a estes, isso também não é significativo em relação às grandes diferenças entre os seus salários. Aquela sua sentença é falsa e não passa de uma falácia.
É também outro facto que “os trabalhadores ocupam posições diferentes no mercado de trabalho”. Essas suas ”posições diferentes”, porém, não derivam da concorrência, derivam sim da diferente utilidade dos seus trabalhos. E, como se sabe, ou você deveria saber, os produtos sempre foram trocados pela sua utilidade, e as mercadorias não fogem à regra. A utilidade, porém, não é grandeza de natureza objectiva, daí que não seja possível a sua medição, nem é constituinte do valor do custo de produção, do trabalho ou das restantes mercadorias, pelo que não é relevante para a determinação do seu custo de produção. A utilidade produz utilidade, não produz custo de produção; e a maior utilidade do trabalho contribui para o aumento da produtividade dos processos produtivos, isto é, para a redução do trabalho empregado e para a redução do valor do custo de produção unitário das mercadorias.
O que está aqui implicado, embora você não o invoque nestes seus comentários, mas o faça em abundância nos seus livros, na esteira do Marx, é que o trabalho de maior utilidade, o trabalho complexo e o trabalho qualificado, “criaria” mais valor do que o trabalho de menor utilidade, o trabalho simples e o trabalho indiferenciado. É um dos reflexos do velho mito marxista, que você também adopta, de que a mercadoria vendida pelo trabalhador seria a força de trabalho (a capacidade humana para produzir trabalho ou energia humana, que faz dele um produtor) e não o trabalho, e o trabalho, considerado a utilidade da força de trabalho e não o seu produto, não teria valor, mas seria o criador do valor. E outro dos reflexos, que além do mais contraria a teoria do valo-trabalho, é a falácia do Marx, que você também adopta, de que a chamada “mais-valia” (a parte do valor do trabalho apropriada pelo capitalista) seria “criada” pela utilidade (o trabalho) da mercadoria que o capitalista compraria (a força de trabalho), que assim seria de sua inteira propriedade e ele de nada se apropriaria (porque ninguém se apropria do que é de sua propriedade), legitimando a exploração!
Não vou alongar-me sobre esta questão, que abordei com mais detalhe noutros textos meus e também em “Acerca do marxismo “heterodoxo” de João Bernardo (I)”, que os interessados poderão consultar no meu blog (https://aparenciasdoreal.blogspot.com/2020/11/acerca-do-marxismo-heterodoxo-de-joao.html).
A diferente utilidade do trabalho é devida, entre outros factores, às diferenças de capacidades e de habilidades intelectuais e físicas dos trabalhadores (que por isso são contratados por selecção, e são sujeitos a períodos experimentais), reflectidas também nas suas maiores qualificações. Ora, essas diferenças, comuns às pessoas, não explicam, por exemplo, porquê trabalhadores com níveis similares de capacidades e habilidades e de qualificações das empresas menos produtivas auferem salários inferiores aos dos trabalhadores das empresas mais produtivas. A razão principal para essa ocorrência é a de que as empresas mais produtivas podem (e querem, por razões várias) pagar salários mais elevados a esses trabalhadores (e à generalidade dos seus trabalhadores), o que não sacrifica muito as suas maiores taxas de lucro, e as outras não o poderem fazer, porque mesmo pouco, isso teria reflexo na redução das suas já menores taxas de lucro.
2. Quem é mais explorado?
Se os trabalhadores das empresas mais produtivas trabalham por períodos menores e auferem salários maiores do que os das empresas menos produtivas, serão aqueles menos explorados do que estes? Esta é a questão que aqui está em causa e importa, e não a de “ser explorado ou explorador”, que você utilizou como distractor para confundir os incautos. Discute-se níveis de exploração, saber quem é mais explorado, e não quem é explorado e quem é explorador, mas você tergiversa e traz bugalhos para a discussão de alhos. O uso de distractores e de insinuações é uma velha artimanha discursiva, que dispersa a atenção e visa denegrir o interlocutor, conotando-o com o adversário, aquela “esquerda cujo objectivo é o estabelecimento de um capitalismo de Estado”. É típico dos cínicos de seitas de fanáticos, mormente esquerdistas.
O correcto seria você apresentar argumentos em defesa da sua ideia, absurda, de que os trabalhadores das empresas mais produtivas são mais explorados do que os trabalhadores das empresas menos produtivas, e criticar os argumentos do interlocutor. Não dar qualquer explicação e insinuar que quem defende a concepção inversa é a “esquerda hegemónica”, que “não é mais do que a esquerda defensora do capitalismo de Estado”, ou afirmar que “esta é uma noção muito divulgada, que toma as aparências por realidades”, além de falso, é revelador da sua probidade intelectual. Assim, você poupa o trabalho de contra argumentar ou encobre as suas dificuldades para fazê-lo. O caricato das suas insinuações é que essa esquerda a que você se refere, em consonância com o Marx defende a sua concepção absurda e não a inversa! E o interlocutor, que você tem o cuidado de não nomear, é assumidamente um crítico teórico dessa e de muitas outras concepções do Marx, do marxismo, seja ortodoxo, seja heterodoxo, e do comunismo ou “capitalismo de Estado”. Ora, veja lá a sua argúcia para classificar o seu alvo.
3. “Ser explorado ou explorador”.
“Todos aqueles que não detêm nenhuma autoridade sobre o seu próprio tempo de trabalho nem sobre o tempo de trabalho alheio são explorados”. É engraçado como você usa a sua tradicional verborreia para afirmar como sentença original uma coisa tão simples e banal: o trabalho assalariado é prestado como trabalho subordinado, sob o comando do comprador.
E é curioso que você, sabendo isto, em resposta ao comentador Nióbio tenha recorrido a mais uma das suas falácias afirmando que “o modelo pré-capitalista do escravismo doméstico prevalece nas relações de criadagem”. O interlocutor invocava a relação de exploração a que estão sujeitos os trabalhadores assalariados que prestam trabalho na produção de serviços domésticos consumidos pelo comprador do trabalho; você contrapôs-lhe que isso era coisa pré-capitalista, como se na sociedade burguesa apenas existissem as relações de exploração do capitalismo industrial, ou como se o caso típico no serviço doméstico fosse já a compra do serviço como mercadoria e não ainda a compra como mercadoria do trabalho que o produz, ou como se em tal relação de exploração, pré-capitalista ou capitalista, não existissem explorado e explorador ou isso não tivesse qualquer importância. O seu expediente argumentativo, ou a sua dialéctica, é supimpa!
Pergunto-lhe então: a que tipo de relação social estão sujeitos os trabalhadores assalariados das empresas capitalistas (grandes ou pequenas, mais produtivas ou menos produtivas) que produzem serviços administrativos? À “ficção jurídica do assalariamento”?
4. Trabalhadores sujeitos à mais-valia relativa.
Anteriormente, tais trabalhadores foram apresentados por outros comentadores como “trabalhadores da mais-valia relativa”, como se eles, e não os capitalistas, fossem os produtores da chamada mais-valia relativa. Você prefere designá-los por “trabalhadores sujeitos à mais-valia relativa”. Julgava eu que numa dada formação social eram os trabalhadores assalariados em geral que estavam sujeitos à chamada mais-valia relativa, isto é, ao aumento do valor apropriado através da redução relativa dos salários provocada pela redução dos preços das mercadorias inferior à redução dos valores dos custos da sua produção, e que isso beneficiava os capitalistas em geral. Fico a saber agora que os “trabalhadores sujeitos à mais-valia relativa” são os das empresas mais produtivas. Através de que fenómeno, isso não nos é explicado.
Fosse outra a situação e teria “pano para mangas” para desmistificar o seu marxismo pseudo heterodoxo e muitas outras baboseiras que você embrulha na sua abundante verborreia enquanto pretenso crítico da economia-política. Vale que ele, pelo seu nulo impacto nos trabalhadores assalariados, não traz grande mal ao mundo.
JMC,
correndo o risco de deixar o debate ainda mais complicado, vou lhe fazer duas perguntas, para tentar entender um pouco tuas posições.
1) Com relação à mais valia-relativa. Claro, é um processo que afeta tanto o “capitalista coletivo” bem como o “proletário coletivo”, pois o abaratamento das mercadorias tem um impacto global. Agora bem, o debate que aqui foi apresentado dizia respeito a uma constatação: existem setores dentro da classe trabalhadora que parecem coexitir de forma separada, sem que suas lutas se unifiquem. Você está em desacordo com isso?
2) Sobre a exploração capitalista. É famosa aquela passagem onde Marx afirma que ser um trabalhador produtivo, em comparação a um improdutivo, não é nenhuma vantagem, senão um fardo as vezes maior. Não seria possível entender, na mesma linha, que em condições tais do capitalismo contemporâneo, ser mais explorado pelos mecanismos da mais-valia possa representar melhores condições de vida para os proletários, em comparação com aqueles que estão por fora, ou nos limites mais externos, destes mecanismos?
JMC afirma que as empresas mais produtivas pagam melhores salários aos seus funcionários pelo fato de terem taxas de lucros maiores e as menos produtivas pagam salários menores porque essas empresas tem taxa de lucros menores. Como assim as empresas menores tem uma taxa de lucro menor e o seu contrário? Isso é uma grande inovação na economia política, JMC faz uma grande descoberta que deixaria Adam Smith de cabelos em pé, pois o economista escocês descobriu o contrário. O que Marx fez foi comprovar com muita competência essa máxima de Smith, de que: ” Um grande capital, ainda que os lucros sejam menores, cresce geralmente mais rapidamente do que um capital pequeno cujo lucro seja grande”. Não é o grande capital que por por razões várias pagam os melhores salários aos trabalhadores? Por causa das suas taxas de lucro maiores? É isso mesmo?j
Aí vem a cereja do bolo que JMC nos revelada no final, e eu confesso não ter entendido nada. JMC trás algo extremamente novo para a formação dos militantes que almejam a revolução: não é o trabalhador mais qualificado ou experiente, que em seu processo de trabalho mais produtivo com auxílio tecnológico intensificando as suas horas trabalhadas que produz a mais valia relativa apropriada pelo capitalista, por JMC ficamos sabendo que quem produz a mais valia relativa é o capitalista. E depois ele fala que trabalhadores assalariados no geral estão sujeito a mais valia relativa numa dada formação social, que acredito eu a atual formação social capitalista. E a mais valia absoluta não existe mais?
Como desatar esse nó?
Hélio.
1. Sobre a unidade da classe trabalhadora.
Não conheço a situação concreta da classe trabalhadora do Brasil. Mas se você o diz, quem sou eu para discordar do que você afirma ser uma constatação. Conheço, em traços gerais, a situação dos trabalhadores assalariados em Portugal, que é um país muito mais pequeno e muito menos diversificado do que o Brasil. E aqui a situação não me parece que seja muito diferente, porque o lema do movimento sindical, dito de classe, controlado pelo PCP, parece ser “de vitória em vitória até à derrota final”. A propósito disto, a leitura do meu texto “O ‘sindicalismo de classe’, a CGTP e o PCP” (https://aparenciasdoreal.blogspot.com/2020/08/) poderá ser de algum proveito.
A situação que constata não é nova. A classe trabalhadora é muito diversa, nos campos cultural, económico, ideológico e politico; não admira por isso que em muitas situações grandes massas de trabalhadores, trabalhando juntos ou residindo numa mesma região, caminhem separados nas lutas, nem entrem juntos nas mesmas lutas ou até se separem quanto à disposição para entrar em luta, sejam as lutas de carácter meramente económico, sejam lutas ideológicas e políticas. E os contextos económicos, ideológicos e políticos em que os trabalhadores existem hoje, de verdadeira regressão social nalguns aspectos, são-lhes bastante desfavoráveis. O Brasil é um desses países em que o contexto parece ser bastante complicado para os trabalhadores.
Não conheço o movimento sindical do Brasil. Tenho ligeiras informações sobre o modo como actua e também de que haverá grande corrupção, agindo os sindicatos, nalguns casos, como meras agências de recrutamento para as empresas. E pelo que ia lendo sobre o sistema político e partidário brasileiro, a situação a este nível parece-me ser também muito singular. Sem disposição e interesse em organizarem ou reorganizarem um movimento sindical de massas, independente das empresas e das igrejas e autónomo dos partidos políticos, os trabalhadores não terão grandes possibilidades de desencadearem lutas reivindicativas nem para as conduzirem com êxito. Sem instituições suas, que se fortaleçam pelas lutas que travam, exitosas ou não, os trabalhadores não chegarão a bom porto.
A concepção veiculada pelo marxismo pseudo heterodoxo de que os trabalhadores se devem organizar à margem dos sindicatos não passa duma infantilidade. A todo o tempo os trabalhadores poderão ultrapassar os sindicatos quando as situações se manifestarem propícias para desencadearem ou para desenvolverem e estenderem lutas em que as relações de forças lhes sejam favoráveis e os sindicatos não os acompanhem ou mesmo as sabotem. Lutas à margem dos sindicatos sempre aconteceram e acontecerão, mas unidade dos trabalhadores construída sem sindicatos ou contra eles é uma miragem. Quem assim fala foi operário, sindicalista (depois, por contingências do regime político fascista existente em Portugal, não pôde ser dirigente e tornou-se burocrata sindical ligado à contratação colectiva) e ainda se recorda um mínimo da sua prática e do conhecimento que adquiriu sobre estes assuntos.
E sem um partido político que defenda os seus interesses e apoie politicamente as suas lutas os trabalhadores também não terão grandes possibilidades de êxito nas suas lutas de carácter político. Não para os conduzir à vitória em qualquer revolução socialista ou comunista, que isso da revolução comunista proletária é outra invenção do idealismo marxista à revelia de toda a história. Nunca em tantos séculos de história a principal classe social explorada do modo de produção dominante constituiu a classe social que sucedeu à sua classe exploradora. Nem os escravos, nem os servos, as classes exploradas respectivamente no modo de produção esclavagista e no modo de produção senhorial ou tributário, sucederam às suas classes exploradoras na direcção da sociedade. Sobre isto, se lhe interessar, poderá consultar e obter um texto meu, de síntese, também já antigo, “O marxismo e a revolução social” (https://aparenciasdoreal.blogspot.com/2007/09/o-marxismo-e-revoluo-social.html).
Mas note bem: quem assim fala esteve na militância política partidária (primeiro no PCP, depois no PCP(R), este último um pequeno partido político de orientação maoista/versão albanesa), embora durante o curto período de quase seis anos (um dos quais como “revolucionário profissional” e dirigente partidário), com dois ou três de interregno, abandonou-a, desiludido, já passaram quarenta e três anos, e deixou de acreditar na utopia comunista e na profecia messiânica marxista há quarenta anos. Voltou a debruçar-se, como passatempo, sobre a obra do Marx há perto de vinte e cinco anos, desta feita para ajustar contas consigo próprio, não com o marxismo nem com os marxistas, mas para tentar compreender porque teria sido cativado por uma utopia tão bela, escorada numa ideologia aparentemente coerente em que acreditou convictamente, a qual ainda hoje é apresentada e divulgada pelos marxistas como sendo a verdade revelada, num embuste político e intelectual que não encontra grande paralelo com outros. Um velho, portanto, para mais desregrado, agora no ocaso da vida, que no entretanto andou a governá-la e a criar a filharada, e que também se entreteve a tentar compreender alguns aspectos da realidade social, sem qualquer pretensão de sobre eles produzir conhecimento certo ou a veleidade de o ter produzido. Se o pouco que produziu for útil para outros quanto o foi para si próprio, é prémio bastante.
2. Sobre a exploração capitalista.
Os conceitos de Marx “trabalho produtivo” e “trabalho improdutivo” poderiam estar adequados para as suas concepções de mercadoria (que se restringia aos objectos produzidos e não aos objectos vendidos, quando a venda é o que verdadeiramente transforma os produtos em mercadorias) e de produção do seu valor (conceito que ele não chegou a definir, deixando-o no limbo da ambiguidade), que seria criado pelo trabalho presente ou vivo. Mas ele utilizava-os principalmente para designar o trabalho produtor de mais-valia (como se o trabalho pudesse criar mais valor do que aquele que ele próprio tem e que pelo seu consumo transmite aos objectos de trabalho) e o trabalho não produtor de mais-valia. Mesmo assim, prestavam-se a equívocos, deixando problemas por resolver ou resolvendo-os mal (nomeadamente quanto ao trabalho empregado na esfera da circulação, na troca, que é quando os produtos realmente se consumam ou são realizados como mercadorias).
Aqueles conceitos, porém, parece-me serem errados. Isto descobre-se quando se submete o modelo conceptual marxista a crítica cuidada (o que não é fácil, porque muitos conceitos, que uma vez e outra nos parecem óbvios, afinal são errados). Todo o trabalho é trabalho produtivo; aliás, o trabalho é produzido enquanto produz a transformação de coisas e de objectos em novos objectos ou em serviços. Deste modo, aqueles conceitos não têm sentido e são inúteis. O trabalho pode ser útil ou inútil e ser lucrativo ou não lucrativo. O trabalho é comprado por ser útil ao seu comprador, e se comprado para a produção de mercadorias é trabalho lucrativo, por possibilitar a obtenção de lucro ao comprador. Já o trabalho produtor de serviços consumidos pelo comprador do trabalho, por exemplo, é não lucrativo, não possibilita a obtenção de lucro ao comprador, porque o serviço foi por si consumido e não foi vendido, não foi transformado em mercadoria. Mas trabalho do mesmo tipo, comprado por quem não é o consumidor do serviço, é trabalho lucrativo, por possibilitar lucro ao comprador do trabalho e vendedor do serviço em que ele será consumido. Trabalho lucrativo e trabalho não lucrativo, portanto, parece-me serem os conceitos correctos.
Em ambos os casos, o trabalho assalariado, quando pago com salário de nível corrente, é objecto de apropriação de parte do seu valor, porque uma quantidade de trabalho ou trabalho vendido por um determinado período (portanto, com um determinado valor) é pago com um valor menor, correspondente ao valor das mercadorias compradas com o salário. Nesta situação o trabalhador é alvo de exploração, de apropriação de parte do valor do seu trabalho pelo comprador. Este é tema abordado com mais detalhe também no meu texto “O trabalho, o valor e a “mais-valia” no modo de produção capitalista. Crítica das concepções de Marx”, o primeiro que me aventurei a publicar no meu blog e que se estiver interessado poderá consultar e obtê-lo lá (https://aparenciasdoreal.blogspot.com/2006/10/o-trabalho-o-valor-e-mais-valia-no_19.html).
Não tenho presente qualquer desabafo de Marx no sentido que você invoca nem descortino o que poderá significar. E também não sei se entendi bem a sua questão final. Poderei dar-lhe a minha opinião sobre se o trabalho assalariado constituiu qualquer desenvolvimento social e se traduziu numa melhoria nas condições de vida dos trabalhadores assalariados em relação às dos trabalhadores camponeses sujeitos à servidão pelas variadas formas do tributo ou às dos operários oficinais sujeitos ao regulamento corporativo. Em retrospectiva, passadas centenas de anos, pode-se dizer que sim. Mas os períodos de transição entre modos de produção, assim como os de crises económicas e os de expansão e de desenvolvimento do capitalismo até entrar na sua fase de maturidade, foram muito penosos para os trabalhadores assalariados, mormente os operários fabris.
Trabalho duro, durante longos períodos diários e semanais, salários baixos, pobreza para os trabalhadores empregados e miséria para os desempregados, produtos da exploração a que estavam sujeitos para permitir a acumulação do capital foram o fardo com que arcaram os construtores da nova sociedade burguesa. Mesmo para eles, a condição de assalariado empregado permanente era preferível à condição de trabalhador assalariado ocasional ou à de “biscateiro” (não sei qual o termo equivalente usado no Brasil para designar quem se dedica a trabalhar no que vai aparecendo, quando aparece). Mas, é claro, para sobreviver, cada um desenrasca-se (vira-se) como puder. Comparando com aqueles tempos, em que a democracia política era rudimentar e os direitos políticos dos trabalhadores eram pouco mais do que inexistentes, nos últimos oitenta ou noventa anos as suas condições de vida conheceram uma melhoria substancial, mesmo não esquecendo os tempos sempre difíceis trazidos pelas crises económicas periódicas. Transpondo para a actualidade, como não poderá ser melhor a condição de trabalhador assalariado permanente do que a de precário ou de “biscateiro”?
Actualmente, parece estarmos nos primórdios de um período de mudança nas relações de produção, não sei bem para o quê. As transformações que estão ocorrendo na contratualização do trabalho — a generalização da intermediação na venda do trabalho por empresas ditas de trabalho temporário, da informalidade do contrato e da precarização do emprego, da terceirização dos processos produtivos — e nas formas da sua prestação (umas inovadoras, outras regressivas) — o trabalho à peça, o trabalho no domicílio (chamado tele trabalho), o trabalho intermitente (com períodos de pausa com o trabalhador à disposição do capitalista) — a crescente substituição da venda do trabalho produtor de serviços pela venda do serviço por parte dos trabalhadores que o produzem de forma independente (ainda que subordinados ao intermediário na venda), assim como a facilidade com que os despedimentos colectivos massivos são usados como forma de ajustamento do emprego às flutuações do escoamento da produção, são exemplos do que está acontecendo e de cujos efeitos apenas tomaremos plena consciência com o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento. E a apatia e o conformismo com que os trabalhadores assalariados reagem a estas mudanças são preocupantes.
O retorno a mundos idílicos que nunca existiram, a não ser nas cabeças dos lunáticos que os propagandeiam, a apologia da frugalidade como antídoto para uma imaginada escassez futura, as pregações ecológicas baseadas em receios desmesurados com eventuais alterações climáticas, supostamente de origem antropogénica, que nos estarão conduzindo para o apocalipse, a difusão da crendice e da irracionalidade como alternativas à ciência e à tecnologia e ao seu desenvolvimento, a proliferação de seitas de cariz religioso e o crescimento de igrejas que incutem a fé em divinos salvadores que proporcionariam uma vida esplendorosa no além, e que com isso captam fundos avultados que lhes permitem envolverem-se nos mais variados chorudos negócios terrenos, constituem massivas intervenções ideológicas que funcionam como distractores de questões bem mais importantes, como a da crescente desigualdade da distribuição do produto social pelas diversas classes sociais, desfavorável para os trabalhadores, a da vigilância permanente e do controlo ideológico e político dos cidadão pelo poder político, a do crescimento demográfico incontrolado e a das guerras em curso e das de maior dimensão e capacidade de destruição que poderão ocorrer, porque a guerra é outra forma da política e esta a expressão da ideologia.
Obrigado pelas suas questões.
Laurêncio
Se você lesse o que escrevi não teria dado o nó (cognitivo) em que se enredou. Treslendo, você deu o nó que não sabe como desatar. Se ler, e não tresler, de preferência com atenção, verá que não dará nó nenhum. Recomendo-lhe que tenha um pouco mais de atenção e que use lentes que não deformem ou não ponham no meu escrito o que lá não está. Depois, se tiver dúvidas ou divergências, tentarei esclarecer umas ou debater outras.
Caros,
Muito boa a discussão que tem acontecido, não apenas na sessão de comentários deste artigo, como também do anterior (https://passapalavra.info/2021/04/137866/). Gostaria, portanto, de tirar uma dúvida com os camaradas que fazem parte do coletivo Passa Palavra, nomeadamente o Selênio, Cádmio, Estrôncio, Argônio, dentre outros que por ventura façam parte do coletivo.
Tendo em vista o que tem sido defendido pelos membros do coletivo Passa Palavra, minha interpretação é a de que aquilo que uma parte da literatura acadêmica defende como sendo “classe média” seria, portanto, uma denominação que junta membros de classes opostas num mesmo corpo social. Parte da classe média, portanto, seria na verdade composta por trabalhadores mais produtivos, e em geral com maior especialização, com maiores salários, e que portanto têm maior possibilidade de ter melhores condições de vida em comparação com os trabalhadores que moram nas favelas do Brasil, por exemplo.
E segundo minha interpretação da visão exposta pelos membros do Passa Palavra, outra parte da classe média seria, na verdade, uma pequena burguesia no sentido literal da palavra: donos individuais de pequenas unidades econômicas. Por exemplo, donos de pequenos estabelecimentos e lojas (dessas que abundam nos centros de cidades brasileiras) que possuem poucos trabalhadores a seu dispor, com um alcance geográfico que não ultrapassa (ou quase não ultrapassa) os limites de seu próprio município/cidade, e que, por esse motivo, geram menos capital em comparação com unidades econômicas maiores. E se geram menos capital, logo, essa pequena burguesia não possui as mesmas condições de vida daquela burguesia que controla grandes empresas. Essa pequena burguesia, assim, teria condições materiais de vida parecidas com as daqueles trabalhadores mais produtivos que citei anteriormente, e nesse sentido o termo “classe média” seria, na verdade, uma amálgama de setores distintos de duas classes sociais que, relativamente à posição que ocupam no processo produtivo (os que controlam o tempo de trabalho alheio versus os que têm seu tempo de trabalho controlado por aqueles), seriam não apenas distintas, mas opostas. Assim, o termo “classe média” mais confundiria do que explicaria a realidade social.
Bem, esta foi minha interpretação acerca das opiniões expostas por membros do coletivo Passa Palavra. Estou correto nessa interpretação? Que pensam?
Sigamos debatendo, um abraço e boa semana a todos.
Aos bons entendedores,
Dou a palavra a JMC e reescrevo o que disse no comentário passado.
”A diferente utilidade do trabalho é devida, entre outros factores, às diferenças de capacidades e de habilidades intelectuais e físicas dos trabalhadores (que por isso são contratados por selecção, e são sujeitos a períodos experimentais), reflectidas também nas suas maiores qualificações. Ora, essas diferenças, comuns às pessoas, não explicam, por exemplo, porquê trabalhadores com níveis similares de capacidades e habilidades e de qualificações das empresas menos produtivas auferem salários inferiores aos dos trabalhadores das empresas mais produtivas. A razão principal para essa ocorrência é a de que as empresas mais produtivas podem (e querem, por razões várias) pagar salários mais elevados a esses trabalhadores (e à generalidade dos seus trabalhadores), o que não sacrifica muito as suas maiores taxas de lucro, e as outras não o poderem fazer, porque mesmo pouco, isso teria reflexo na redução das suas já menores taxas de lucro.” (JMC)
Por essa afirmação de JMC escrevi isso:
”JMC afirma que as empresas mais produtivas pagam melhores salários aos seus funcionários pelo fato de terem taxas de lucros maiores e as menos produtivas pagam salários menores porque essas empresas tem taxa de lucros menores. Como assim as empresas menores tem uma taxa de lucro menor e o seu contrário? Isso é uma grande inovação na economia política, JMC faz uma grande descoberta que deixaria Adam Smith de cabelos em pé, pois o economista escocês descobriu o contrário. O que Marx fez foi comprovar com muita competência essa máxima de Smith, de que: ” Um grande capital, ainda que os lucros sejam menores, cresce geralmente mais rapidamente do que um capital pequeno cujo lucro seja grande”. Não é o grande capital que por por razões várias pagam os melhores salários aos trabalhadores? Por causa das suas taxas de lucro maiores? É isso mesmo?”
Prosseguindo com JMC:
”Trabalhadores sujeitos à mais-valia relativa.
Anteriormente, tais trabalhadores foram apresentados por outros comentadores como “trabalhadores da mais-valia relativa”, como se eles, e não os capitalistas, fossem os produtores da chamada mais-valia relativa” (JMC)
Por essa inovação conceitual que confesso o não entendimento, escrevi isso:
”JMC trás algo extremamente novo para a formação dos militantes que almejam a revolução: não é o trabalhador mais qualificado ou experiente, que em seu processo de trabalho mais produtivo com auxílio tecnológico intensificando as suas horas trabalhadas que produz a mais valia relativa apropriada pelo capitalista, por JMC ficamos sabendo que quem produz a mais valia relativa é o capitalista”
Continua JMC:
”Julgava eu que numa dada formação social eram os trabalhadores assalariados em geral que estavam sujeitos à chamada mais-valia relativa, isto é, ao aumento do valor apropriado através da redução relativa dos salários provocada pela redução dos preços das mercadorias inferior à redução dos valores dos custos da sua produção, e que isso beneficiava os capitalistas em geral. ”(JMC)
Já não existe mais diferenciação entre mais valia absoluta e mais valia relativa.
E com surpresa ele nos diz:”Fico a saber agora que os “trabalhadores sujeitos à mais-valia relativa” são os das empresas mais produtivas. Através de que fenómeno, isso não nos é explicado.”(JMC)
Será que esse salário maior dos trabalhadores de empresas mais produtivas não se explica pelo o maior grau de produtividade desse mesmos trabalhadores e concomitantemente pela sua maior apropriação de mais valia, mais massa de lucro pelos capitalistas? Para JMC o que define o alto salário do trabalhador das empresas mais produtivas é a vontade do grande capitalista.
E depois disso JMC acusa-me de ser um mal leitor de sua escrita e que o nó cognitivo está em minha cabeça e não na argumentação do próprio. Vai entender.
Caro Antonio de Odilon Brito,
A nosso ver, trata-se justamente disso. O termo classe média mais confunde do que ajuda a explicar a realidade social, pelo menos quando estamos analisando a estrutura social. Na classe média, poderíamos incluir tanto uma parcela da burguesia, quanto uma parcela do proletariado, quanto uma parcela dos gestores e, portanto, o conceito de classe média acaba sendo cheio de armadilhas. Se a classe média é definida pelo seu padrão de consumo ou por sua renda, por exemplo, trabalhadores sujeitos predominantemente à extração de mais-valia relativa acabam sendo confundidos com pequenos patrões e sub-gestores. E com isso as relações de exploração, que são aquilo que separa um sub-gestor de um pequeno patrão e um trabalhador qualificado, acabam sendo colocadas de lado e deixam de constituir o núcleo das análises que fazemos da realidade social e, o mais importante, a união entre
trabalhadores com padrões de consumo e renda distintos, a união da classe trabalhadora, acaba sendo obstada.
Cordialmente,
Coletivo Passa Palavra
Laurêncio.
Se o seu comentário anterior tivesse sido o que você agora botou reescrevendo o que nele dissera, eu poderia ter aproveitado a oportunidade e ter-lhe-ia respondido logo. De qualquer modo, não retiro, nem reescrevo, o que lhe disse no meu comentário anterior, pela simples razão de que não nomeei “grandes empresas” ou “pequenas empresas” em que você, com a sua tresleitura, transformou as “empresas mais produtivas” e as “empresas menos produtivas” que nomeei. E reforço: é necessária muita atenção para se ler o que está escrito. E é também necessário cuidado com a forma como se raciocina. Doutro modo corre-se o risco de fazer múltiplas confusões.
Neste seu comentário você traz à colação uma questão lateral (o crescimento mais ou menos rápido dos capitais, “Um grande capital, ainda que os lucros sejam menores, cresce geralmente mais rapidamente do que um capital pequeno cujo lucro seja grande”, que não foi referida), que por me parecer pouco relevante não abordarei em pormenor. Fico-me por uma achega que julgo poderá contribuir para você resolver por si próprio a perplexidade que lhe causa: uma elevada taxa de lucro de um pequeno capital corresponde a uma pequena massa de lucro e uma menor taxa de lucro de um grande capital corresponde a uma maior massa de lucro do que aquela, e não é com elevadas taxas de lucro, mas com elevadas massas de lucro, que se adquirem meios de produção de preço elevado que permitem expandir a produção. Como você terá oportunidade ver por si próprio, pensando, as suas ironias acerca das menores ou maiores taxas de lucro do grande capital esboroar-se-ão.
A questão central que agora coloca explicitamente refere-se a uma afirmação minha num comentário anterior “como se eles (os trabalhadores sujeitos à chamada “mais-valia” relativa), e não os capitalistas, fossem os produtores da chamada mais-valia relativa”. Esta é uma questão crucial da economia política e do modelo conceptual do Marx acerca da génese do lucro do capital (que eu abordei com o detalhe suficiente em diversos dos meus textos, para alguns dos quais remeti os eventuais interessados). E é crucial porque respeita a quem produz o quê e de cuja clarificação poderá resultar uma melhor compreensão do papel desempenhado por cada um dos intervenientes no processo produtivo, os trabalhadores assalariados e os capitalistas (ou os seus representantes).
Que produz o trabalhador? Resposta simples e clara: o trabalhador produz trabalho; que tem valor (o valor do custo da sua produção, a quantidade de energia humana, de força de trabalho, que o trabalhador consome para produzi-lo). E surge a primeira discrepância com o Marx, para quem o trabalhador produz trabalho que não tem valor, mas que “cria” valor, e mais valor do que o que teria a mercadoria que venderia ao capitalista, a força de trabalho. Foi por um outro absurdo do Marx, a força de trabalho fornecer mais valor do que um seu (suposto) valor que começou a minha apreensão dos erros do Marx; mas para explicar esses erros começo por este de o trabalho não ter valor. Para resolver esta primeira discrepância, vejamos o que eu digo: o trabalho é a mercadoria vendida pelo trabalhador, e tem valor, não “cria” valor, e o valor que transmite aos objectos de trabalho em cuja transformação é consumido é esse seu próprio valor. E com isto coloca-se como questão prévia determinar qual a mercadoria que o trabalhador vende ao capitalista: trabalho ou força de trabalho ou energia humana?
Eu designo a força de trabalho por “mercadoria mágica”, por permitir ao Marx resolver de uma penada o problema crucial da economia-política sem beliscar o sacrossanto princípio da “troca equitativa” em que ela se baseava, mantendo-se na teoria do valor-trabalho. E é mágica porque lhe foram conferidos poderes mágicos. Vejamos então se a magia deve ser aqui introduzida ou se a força de trabalho poderá ser sequer mercadoria e ser a mercadoria vendida. Ela é produzida pelo corpo humano vivo, faz parte do ser que é o trabalhador e não se pode desprender dele para ser fornecida a outrem; é consumida pelo trabalhador na produção do trabalho, é portanto o que faz dele um produtor, e por mais este facto também não pode ser fornecida a outrem. Estes dois factos reforçam a impossibilidade da força de trabalho ser fornecida, e dessa impossibilidade resulta, mais outro facto, que é o que o trabalhador fornece ao capitalista não é a sua força de trabalho, que consome produzindo trabalho, mas o trabalho que produz com ela. Se o trabalhador fornece ao capitalista o trabalho que produz com a sua força de trabalho que consome, é o trabalho, e não a força de trabalho, a mercadoria que lhe vende. Não seria lícito vender uma mercadoria (a força de trabalho) e entregar outra (o trabalho), mas seria impossível entregar como mercadoria um produto que o próprio trabalhador consome (a força de trabalho).
Quando deslindei esta questão, num relampejo, dei por mim boquiaberto. Quantas vezes aceitara eu sem pestanejar e repetira a concepção marxista de que a força de trabalho era a mercadoria vendida pelo trabalhador ao capitalista, como se de um facto banal se tratasse! Depois passei a gracejar com a invenção do Marx. Não mais esquecerei quando disse a dois dos meus filhos, um deles já homem feito, em jeito de brincadeira, que depois do almoço poderia fornecer-lhes umas seis horas de força de trabalho e que a venderia barato, mas que não aceitava reclamações nem que tendo eu vendido força de trabalho me exigissem que lhes entregasse trabalho; bastaria dizerem-me como a poderiam receber. Risada geral. Espero que você ao ler isto também se admire, ao menos espero que lhe dê que pensar, pois sei que o choque pode ser grande. Isto resulta também de outros paradoxos (como o da força de trabalho ter o “dom” de fornecer mais valor do que o seu próprio valor) e tem outras implicações, que não abordarei aqui, remetendo-o, se estiver interessado, para os meus textos anteriormente referidos “O trabalho, o valor e a “mais-valia” no modo de produção capitalista. Crítica das concepções de Marx” ou mesmo para o “Acerca do marxismo “heterodoxo” de João Bernardo (I)”.
Voltando à sua questão. O que é a “chamada mais-valia”? O Marx definia-a como sendo o mais valor “criado” pelo trabalho no processo produtivo em relação ao (suposto) valor da força de trabalho. Como disse atrás, o trabalho tem valor, o valor do seu custo de produção ou a quantidade de energia humana ou força de trabalho que o trabalhador consome para produzi-lo. E no processo produtivo entra com o seu valor, o valor com que sai do processo da sua produção, e com a sua utilidade. Neste processo, o trabalho não cria valor, nem transmite aos objectos de trabalho em cuja transformação é consumido mais valor do que aquele que tem. Do processo produtivo não sai mais valor do que aquele que nele entrou: o somatório do valor do trabalho presente com o valor do trabalho passado contido nos meios de produção consumidos. Então de onde poderá resultar o lucro? Para resolver esta outra questão temos de ver se haverá outra possibilidade de o capitalista se apropriar de algo que possa transformar em lucro do seu capital. Acabamos de ver que na produção não é criado nada de que ele se possa apropriar. Para isso, saímos da produção e voltamos à circulação das mercadorias, à troca do trabalho presente ou vivo.
O capitalista compra ao trabalhador o trabalho com um determinado valor (consideremos, para efeitos práticos, que o trabalho será prestado com o esforço e o ritmo habituais). Neste caso, o valor do trabalho diferencia-se pelo tempo da sua prestação: em cinco horas será produzido um valor e em dez horas o dobro do valor. O tempo da prestação ou da produção do trabalho, portanto, é suficiente para designar o seu valor. Este valor será revendido pelo capitalista ao trabalhador como trabalho passado ou morto através das mercadorias produzidas com o trabalho consumido na sua produção (desprezamos também o valor dos meios de produção consumidos, porque o seu valor também está representado nas mercadorias produzidas). Se o capitalista trocasse a produção com o trabalhador (admitimos também que a produção se destina directa ou indirectamente ao consumo dos trabalhadores) pelo seu valor, a troca seria uma troca equitativa. Por exemplo, o trabalhador venderia dez horas de trabalho e receberia em troca dez horas de trabalho. O princípio da troca equitativa foi adoptado por Marx, que disse que as mercadorias eram trocadas na proporção dos seus valores. A realidade, porém, é muito diferente.
E como poderemos constatá-lo? Porque o capitalista ao transformar os valores do custo da produção em preços (porque é o padrão com que trabalha, visto que embora conheça o valor do trabalho presente ou vivo desconhece o valos dos meios de produção, e de ambos conhece o preço de compra, e para o caso é indiferente) acrescenta aos preços das forças produtivas consumidas (trabalho + meios de produção) uma parcela correspondente ao lucro, e o preço de venda será: trabalho + meios de produção + lucro. O preço de venda (o seu valor de troca) das mercadorias produzidas com recurso a capital está acrescido do lucro. Com esta operação, ao vender a produção aos trabalhadores por preço contendo lucro o capitalista mais não faz do que depreciar a mercadoria que o trabalhador vende. Tendo sido as dez horas de trabalho pagas com o salário, agora o salário compra meios de subsistência de valor inferior a dez horas de trabalho. O trabalho foi depreciado pela apreciação das mercadorias com ele produzidas. Chama-se a isto uma troca desigual, e não uma troca equitativa.
Do exposto resulta que o capitalista se apropria de uma parte do valor do trabalho que o trabalhador lhe vendeu. E esta parte do valor de que se apropriou foi transformada por ele (o capitalista) em lucro do seu capital, ao vendê-la através das mercadorias produzidas. Podemos agora dizer que o trabalhador produz trabalho e que o capitalista se apropria de uma parte do valor do trabalho (correspondente ao lucro) e transforma-o em lucro do seu capital, isto é, produz o lucro do seu capital. Não há aqui qualquer magia nem paradoxos nem violações das leis da lógica. É um modelo coerente e consistente, ao contrário do modelo do Marx, que tem mais buracos do que o queijo suíço. A chamada “mais-valia”, como eu a designo, afinal é um menos valor recebido pelo trabalhador ao vender a sua mercadoria. Isto explica a produção do lucro; falta explicar como ele pode ser aumentado pelo aumento da parte apropriada do valor do trabalho, por um lado, através da alteração das condições da produção do trabalho face às condições com que que foi comprado (condições gerais de esforço e de ritmo com que é produzido), a chamada “mais-valia” absoluta marxista, e, por outro, pela depreciação relativa do salário (pela redução do preço unitário das mercadorias inferior à redução do seu valor do custo unitário, proporcionado pelo aumento da produtividade), a chamada “mais-valia” relativa marxista.
Este comentário já vai longo e excedeu até o tempo de trabalho que me é permitido, porque as minhas possibilidades são agora outras e o meu ritmo também já não é o que era. Deveu-se, por um lado, a uma deformação profissional derivada do facto de ter sido professor durante vinte e nove anos, e, por outro, ao facto de ter pretendido explicar estes fenómenos de forma um pouco mais detalhada, porque sei o choque que provocará em muitos marxistas (àqueles que o lerem, não certamente aos que o treslerem). Numa próxima oportunidade, se o post ainda estiver acessível, espero poder continuar com a explicação. É claro, os interessados poderão consultar os meus diversos textos dedicados a estes assuntos.
JMC,
Agradeço a resposta e a tentativa de esboçar as suas ideias.
A respeito da polêmica que crias entre empresas pequenas e grandes e empresa mais produtivas e menos produtivas assume contornos falsos, as quedas de taxa de lucro tende a se dar com o aumento da produção e não o seu contrário, as empresas mais produtivas são as que possuem menores taxas de lucros. Essa sua passagem: ”uma elevada taxa de lucro de um pequeno capital corresponde a uma pequena massa de lucro e uma menor taxa de lucro de um grande capital corresponde a uma maior massa de lucro do que aquela, e não é com elevadas taxas de lucro, mas com elevadas massas de lucro’. Substitua grande capital por empresas mais produtivas e pequeno capital por empresas menos produtivas e se chegará no mesmo resultado. Isso não passa de falsa polêmica.
Fico a saber por JMC que o lucro, de que vive o capitalista, é acrescido ao produto feito pelo trabalhador no ato do consumo pela sagacidade e sabedoria do patrão e não pelo trabalho não pago do trabalhador no processo produtivo.
Mas como JMC já alertou pode ser uma tresleitura. Eu chamaria de interpretação.
Fico por aqui e um grande abraço!
“[…] todo assalariado tem de se organizar na área de trabalho dele. Não vou dizer a um metalúrgico o que ele deve fazer; se sou professor, minha área de luta é meu lugar de trabalho, então é nessa área que eu preciso participar. Você me diz: se espera benesses do Estado, o que fazer com elas? Manda para o inferno, pois se tem-se uma sociedade, uma classe ou uma pessoa que não se disponha a lutar pelos seus direitos, ela não merece esses direitos. Esse é o problema central. Da mesma maneira como expliquei, cada um de nós tem de viver sua vida pessoal, você tem vida por procuração? Não existe isso. Cada um de nós tem a sua existência, não pode viver por procuração, não se pode também lugar por procuração. Certo?” (TRAGTENBERG, Maurício. Autonomia operária. São Paulo: UNESP, 2011, p. 17)
ERRATUM
Maurício Tragtenberg: “…não se pode também lugar por procuração. Certo?”
ERRADO! Sai ‘lugar’ e entra ‘lutar’.