Por Isadora de Andrade Guerreiro
No início da pandemia de COVID-19 (abril de 2020) eu escrevi um texto aqui no Passa Palavra falando sobre a utilidade que o discurso da “falta” nos territórios tinha para agentes oportunistas. Ligados ao discurso eficiente do empreendedorismo, sua busca por espaços que precisam de “soluções” apresentava um futuro profícuo com o alastramento da pandemia entre nós – particularmente nas camadas populares. O aprofundamento da tragédia aparecia como uma abertura de oportunidade de negócios – algo que atualmente mostrou sua face mais bárbara no escândalo da Prevent Sênior. A crise sanitária abriu uma época de experimentações em diversos campos, sem que isso seja um bom sinal: apoiadas na gestão da explosão das urgências, elas não estavam mais preocupadas com equilibrar os pratos, mas sim em implantar uma nova fase de extração sem mediações. Além do mais, tal cenário aparece também como uma oportunidade para a “solução Lula”: não como enfrentamento, mas como forma de dar encaminhamento mais “social” aos novos negócios.
Os novos negócios pós-covid – justificados pelo aprofundamento da gestão das urgências – parecem estar apoiados em “inovações” para aumento de produtividade e alcance de camadas populares (como trabalhadoras, consumidoras ou investidoras): precarização, financeirização e uso de tecnologia. Neste combo, o dito “solucionismo” vai para além do campo tecnológico: ao contornar a política e qualquer possibilidade de universalidade, ele desarma os conflitos por meio de focalização, individualização, controle e consenso – promessa de sucesso com extinção de autonomia, principalmente a coletiva. O neolulismo vendido como “pós-apocalíptico” não deve fugir desses pressupostos, ou seja, será a fase zumbi do próprio apocalipse. Sobre a multiplicação de mortos-vivos pela pandemia, escrevi aqui e aqui – uma próxima fase talvez seja escrever sobre a gestão futura de tamanho exército.
Já comecei a falar sobre as novas faces do empreendedorismo “solucionista” quando abordei a nova onda do Impacto Social. Cabe retomar algumas questões colocadas naquele texto, que tiveram desenvolvimento e mostram-se as pontas de lança da “inovação” nas lutas do próximo período. Além do modelo de financiamento MST-S.A. – que altera o lugar da coletivização da produção na era das finanças –, cabe olhar também para o lugar que as redes de solidariedade, o cuidado coletivo e a autodisciplina podem adquirir dentro do “solucionismo”. Há que se preocupar com os deslizamentos perversos entre autogestão e empreendedorismo. Segundo Verônica Gago [1]:
“O que à primeira vista parece uma contradição, torna-se uma forma sofisticada, nova e complexa de enovelar, ao mesmo tempo íntima e institucional, uma série de tecnologias, procedimentos e afetos que promovem a livre iniciativa, o autoempreendedorismo, a autogestão e, também, a responsabilidade por si mesmo. (…) Nessa perspectiva, o neoliberalismo não pode ser compreendido se não for levado em conta como ele captou, despertou e interpretou os modos de vida, as artes de fazer, as táticas de resistência e os modos de vida populares que o combateram, transformaram, aproveitaram e o sofreram” (Tradução livre).
Desta maneira, as novas formas de luta – como a dos entregadores – têm o grande desafio atual de lidar com as contradições das práticas populares entre a solidariedade de classe, a coletivização por necessidade e a empresarialidade entre as urgências e a ampliação dos negócios – entre o legal e o ilegal, lícito e ilícito, formal ou informal, reivindicativo ou propositivo, de perfil alto ou baixo. Essas contradições e deslizamentos fazem parte das práticas urbanas das classes populares e, sem incorporar uma séria reflexão sobre elas nas lutas, dificilmente sairemos do lugar. Nestes termos, o neo-passado-mais-que-perfeito do neolulismo precisa ser analisado tendo esses elementos em vista, pois seu futuro-do-pretérito certamente não fugirá de gerir tais pressupostos:
“Posto nesses termos, parece difícil se convencer de que o fim do neoliberalismo depende da declaração de governos que dizem ter deixado essas políticas para trás. Não porque seja simplesmente necessário desconfiar do que declaram, mas porque o neoliberalismo é uma forma ancorada nos territórios, fortalecida nas subjetividades populares, expansiva e proliferante em termos organizacionais nas economias informais.” (Idem)
O grande deslizamento atual está bem exemplificado na rede G10 Favelas, cujo presidente, CEO do G10 Bank, Gilson Rodrigues, morador de Paraisópolis (São Paulo), iniciou a pandemia como liderança do modelo de solidariedade e organização comunitária na ação contra o coronavírus na segunda maior favela da cidade (cerca de 100mil habitantes). Com descentralização de gestão, vários “presidentes de rua” foram “cadastrados”, a associação alugou três ambulâncias, organizou atendimento (e tele-atendimento) e acolhimento (com socorristas e centro próprio) das pessoas da comunidade, distribuição de cestas básicas, kits de higiene pessoal e marmitas, combate às fake news, centralização de doações, apoio na geração de empregos (costureiras de máscaras, mutirão de emprego e “Adote uma Diarista”), apoio a imigrantes e refugiados, apoio ao comércio local (com cartão de crédito próprio), entre outras ações. O G10 Favelas é uma grande rede de mais de 180 territórios em todo o Brasil. Seu crescimento, no entanto, parece estar ligado a propósitos mais amplos:
“A exemplo dos grandes blocos econômicos, o G-10 tem encontros regulares e termos de cooperação para que exista uma colheita de dados, acompanhamento das ações propostas e que seja mensurado o real impacto social e crescimento gerado pelo Bloco e seus parceiros. A ideia do G-10 é inspirar o Brasil inteiro a olhar para a favela, tornando as Comunidades grandes Polos de Negócios, atrativo para Investimentos, de forma a ‘transformar a exclusão em Startups e Empreendimentos de Impacto Social’ de sucesso. Um ponto importante para os organizadores da iniciativa é deixar claro que o objetivo não é arrecadar doações ou patrocínio, mas investimentos que gerem tanto retorno ao investidor quanto o desenvolvimento econômico das comunidades.” (no seu SITE)
Na mesma linha, a CUFA (Central Única das Favelas) fundou a Favela Holding, que conglomera 23 companhias como a FavelaLog, operadora de telefonia Alô Social (Tim), agência de marketing InFavela, o instituto de pesquisa DataFavela e a plataforma de influencers Digital Favela. A Holding tem contratos com a Ambev, Natura, Facebook e Uber. Segundo seu CEO Celso Athayde:
“Não há outra maneira de fazer a revolução neste país se não for por meio de uma postura agressiva daqueles que sofrem as consequências das diferenças sociais. Ou se divide com a favela toda a riqueza produzida por ela ou vamos continuar dividindo as consequências da miséria que a elite produziu até aqui.”
Outra iniciativa que tem ganhado destaque no combate ao coronavírus nas favelas é a Gerando Falcões, que se descreve como um “ecossistema de desenvolvimento social que nasceu na favela”. Atua em mais de 700 territórios no Brasil com formação de líderes sociais (Falcons University), aceleração de negócios (Unidades Aceleradas e Rede Fellows), rede de solidariedade contra o coronavírus (#CoronanoParedao, Fome Não), banco comunitário (Bolsa Digital), trocas comunitárias por meio de Impacto Social (Bazar G.F.) e, por fim, um engenhoso projeto chamado de Favela 3D (Digna, Digital e Desenvolvida), que já tem parceria com o Governo do Estado de São Paulo. Nele, a transformação da favela viria de uma “abordagem inovadora e revolucionária”, que envolve moradia e urbanismo, saúde, geração de renda, cultura, esporte e lazer, cidadania e “cultura da paz”, educação, autonomia da mulher e atenção à primeira infância, tudo em nome da “decolagem familiar”. Em resumo, um Estado paralelo e privatizado focalizado na célula familiar.
Na última semana, foi divulgada a parceria do G10 Favelas com a produtora de filmes Brasil Paralelo, conhecida por seu conteúdo conservador, revisionista e negacionista. A parceria envolve 500 bolsas para acesso ao BP Select, cujo slogan é “Aperte o play sem medo” (!), que “só tem filmes que realmente valem a pena ser assistidos”, além de acesso ao Plano Escola da Família, “com conteúdos voltados para educação familiar”. As bolsas são pagas por assinantes do Plano Mecenas – voltado ao Impacto Social. Segundo Gilson Rodrigues, “a parceria é mais um exemplo de solução encontrada com apoio da iniciativa privada, assim como outras durante a pandemia, sem interferência do poder público”. E completa:
“Essa briga de negacionismo, direita, esquerda, não nos interessa. Nos interessa acabar com a fome. Nos interessa formar pessoas da favela capazes de discutir tudo o que aconteceu na história do Brasil e do mundo. A gente quer, como grande massa de favela, formar a nossa opinião de forma livre. A gente quer acesso a todo tipo de conteúdo para poder construir a nossa própria história. (…) O Brasil está muito polarizado. Muita gente pensando em 2022 e esquecendo da realidade. A realidade é a fome. Ontem caiu um monte de barracos em Paraisópolis. Nunca vi [Jair] Bolsonaro na minha vida. Faz tempo que não vejo o Lula. Enquanto essa situação de Covid acontece aqui os políticos estão fechando os olhos”.
Cabe aos militantes atualmente refletirem sobre tudo isso. Para além do lado certo ou errado da história – que não passa de um julgamento moral – o “se virar” popular é permanente e histórico na nossa periferia. O que está acontecendo é uma captura produtiva da viração, direcionando-a politicamente para seu aspecto mais perverso. Talvez alguém me corrija: “mas isso não é autogestão, é heteronomia pura”! Pode até ser, mas o fundamental aqui não é apontar o dedo, mas refletir sobre as formas de apropriação do léxico da solidariedade e da autogestão, que esvaziam seus conteúdos emancipadores e os redirecionam em nome da “liberdade de mercado” – ou da possibilidade de sobrevivência.
Esta forma de autonomia mercantilizada também se aproxima da lógica das práticas das milícias. Ela se difere apenas no grau de extorsão pela violência, mas não no negócio em si – que também não está preocupado com a formalidade das relações, apenas com o fluxo de recursos gerados. Se tais negócios sociais alcançam certo grau de monopólio dentro de uma comunidade, o grau de submissão dos moradores pode se aproximar sim das práticas milicianas.
A alternativa construída historicamente pela esquerda progressista – a ação estatal via direitos – aparece, neste cenário, como mais uma (entre várias) das possibilidades de contornamento das urgências, acionada por agentes específicos – movimentos sociais, por exemplo – dentro da lógica do “solucionismo”. De outras formas, o Estado aparece apenas como instrumento de repressão e despossessão. O arcabouço dos “direitos”, no entanto, existe, mas é modulado segundo a linguagem de um mercado que não está exatamente preocupado com a institucionalização e universalização dos seus serviços, mas com nichos de mercado monopolizáveis. O léxico que o progressismo utiliza, portanto, não faz muito sentido, a não ser como uma das várias saídas temporárias e precárias da situação, em competição com tantas outras talvez muito mais “eficientes”.
Trata-se de perguntar, novamente, como dar o salto político em direção à autonomia coletiva, para além da gestão das urgências do empreendedorismo, cuja lógica parece estar disputando hegemonia e traz maus presságios. Como dar sentido à autogestão sem incorrer em deslizamento semântico, numa conjuntura que vai, cada vez mais, se apropriar deste campo de atuação?
Notas
[1] Gago, V. (2015). La razón neoliberal: economías barrocas y pragmática popular. Tinta Limón y Traficantes de Sueños. (Versão em português: A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular. Editora Elefante, 2018).
G10 Favelas e Favela Holding não são apenas uma tentativa vã de resolver pela via do mercado, problemas estruturais criados pelo próprio mercado.
Consistem prioritariamente numa bem sucedida estruturação de novos negócios lucrativos, fazendo dos laços de solidariedade e da organização autônoma objetos de investimento.
Dito de outro modo: ativos financeiros. Em resumo: mercadorias.
《O objetivo não é arrecadar doações ou patrocínio, mas investimentos que gerem tanto retorno ao investidor quanto o desenvolvimento econômico das comunidades.》
O que 17 meses de pandemia nos ensinam a respeito disto? Depende.
Para os CEO do trabalho comunitário orientado a mercado, foi polpudo o bônus de performance.
Para os investidores, a maior rentabilidade se deu na forma da apropriação das lutas.
Para a comunidade, algumas demandas emergenciais foram atendidas, enquanto a situação estrutural permanece invocada.
Para nosotros a questão segue sendo: como viabilizar o auto-financiamento das lutas e dos movimentos.
A situação estrutural permanece “invocada” porque continua intocada.
Só deixo mais essa pedra aqui:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/gabriel-kanner/2021/10/parceria-entre-brasil-paralelo-e-g10-favelas-une-propositos-e-desperta-esperanca.shtml