Por Jan Cenek
Neste mês – dezembro de 2025 – completo 5 anos na coluna Ponto com nós, do Passa Palavra. Fiz um pequeno balanço (a esquerda gosta de balanços). Juntei todos os textos num único arquivo. Dei uma olhada geral. Com a ferramenta de localização fui identificando as palavras mais presentes. Como o balanço foi virando um texto com alguns comentários, resolvi compartilhar.
Foram 65 publicações no período de 5 anos. 2 textos de dois camaradas, sendo um deles publicado em duas partes (aqui, aqui e aqui). 1 panfleto/provocação do Grupo Cultural Cacorê, publicado originalmente em 2002 (aqui). Parêntesis para um comentário sobre este último texto. Por que publicar um panfleto envelhecido em mais de duas décadas? Quando comecei a militar havia uma brincadeira meio comum. Se acontecia uma polêmica, alguém dizia que preferia errar com Marx. Era um argumento de autoridade. A brincadeira tinha variações. Havia quem dissesse que preferia errar com Lenin, e até com Sartre, isso quando se discutia a polêmica Sartre x Camus. Neste último caso, minha sensação é que, no tempo presente, a balança tem pendido para o lado de Camus. Nunca disse que preferiria errar com Camus, mas na polêmica dele com Sartre, sou camusiano desde criancinha, ou, para ser mais preciso, desde que li O homem revoltado [1]. Mas por que publicar um panfleto que é um desconvite para o 1º de maio de 2002? Ainda mais considerando que haviam se passado 23 anos. Pelo esforço de memória, ou, pelo menos, para garantir um registro mínimo, porque passadas mais de duas décadas, quem sabe que existiu um coletivo de jovens proletários (Cacorê) que sonharam com outra sociedade e outro modo de produção? Mas o que o panfleto tem a ver com a tal brincadeira de errar com fulano ou sicrano? É que me parece estar em falta um certo errar pela esquerda. No tempo dos digital influencers “progressistas”, todos orientados pelos algoritmos, ou, por que não dizer, pelo senso comum, faz falta um coletivo proletário como Cacorê. Entre acertar com os algoritmos e errar pela esquerda, esta última alternativa é mais interessante em todos os sentidos. A esquerda algoritmizada vai produzir, se tanto, alguns animadores de programa de auditório, e olhe lá. Se não for nada disso, é pelo menos um panfleto engraçado, e esta é outra característica que está em falta na esquerda: a graça. O substantivo feminino graça – no sentido do cômico e do engraçado – pressupõe certo grau de confiança que autorize ao menos o deboche e o escárnio, que também estão em falta no tempo presente. Mas voltemos ao pequeno balanço da coluna. Foram 61 textos de minha autoria. São estes que juntei num mesmo arquivo para dar uma olhada geral, além de explorar com a ferramenta de busca.
Foram cerca de 88.000 palavras e 535.000 caracteres (com espaços). Creio que isso daria, mais ou menos, um livro de tamanho médio. Há cinco anos eu não imaginava que escreveria tanto. Não fosse o compromisso de publicar um texto a cada quatro semanas, certamente teria escrito muito menos. Vale pontuar que o compromisso de escrever regularmente ao mesmo tempo que movimenta, causa certa aflição. É desconfortável a sensação de que não vamos dar conta de uma tarefa. Ter materiais prontos, no “estoque”, alivia o desconforto. Nestes cinco anos os textos não faltaram, espero que não faltem. É essa expectativa por dar conta da tarefa que causa certa aflição. Mas faz parte. Olhando o arquivo com os textos agrupados, parecem anotações de leitura, se não todos, a maioria. Não poderia ser diferente, aos poucos foi me descobrindo um leitor que às vezes escreve, um leitor clandestino.
A curiosidade por juntar todos os textos num único arquivo era saber, sobretudo, quais as palavras que mais aparecem. Como eu desconfiava, entre os autores é Milan Kundera quem está mais presente. Seguido por Ferreira Gullar, Carlos Drummond de Andrade, Franz Kafka, Mario Vargas Llosa, Karl Marx, Machado de Assis, Albert Camus. Nesta ordem. O personagem literário que mais aparece é Bartleby, o escrevente de Herman Melville; seguido por Gregor Samsa, o caixeiro viajante que virou um inseto, na novela de Franz Kafka; e Emma Bovary, a grande adúltera de Gustave Flaubert. São personagens com os quais me identifico bastante. Um escrevente e um caixeiro viajante liquidados pelo trabalho, apesar da relação adoecimento x trabalho geralmente passar batida pela crítica, especialmente a literária. Uma leitora liquidada por ousar viver como nos livros. Uma palavra recorrente nos textos é kitsch, no sentido kunderiano, como negação da merda. Ferreira Gullar aparece na segunda posição entre os autores devido aos dois textos dedicados a ele, em julho e agosto de 2024. O poeta maranhense só comparece nos textos que lhe foram dedicados. Drummond, por outro lado, marca presença não apenas nos textos que lhe foram dedicados (Drummond, Neruda e a Batalha de Stalingrado; Carlos Drummond de Andrade: a poética do atrito e da anarquia). A inescapável presença dos autores que me encantam dá aos textos um certo caráter de anotações de leitura. Não chega a ser uma contribuição, mas confesso que me agrada citar escritores desapreciados no campo progressista, como Milan Kundera, Ferreira Gullar, Mario Vargas Llosa, Albert Camus. Escrever deve ser, em alguma medida, provocar e irritar. Se não, não tem graça. É por isso que me alegra a presença Emma Bovary. A grande adúltera foi liquidada pelo patriarcado e por um agiota, que são dois símbolos do capitalismo, mas não conta com a simpatia nem dos setores progressistas. Por quê? Minha hipótese é que a recusa da Madame Bovary [2] é demasiadamente radical: rebelou-se contra a maternidade (“como essa criança é feia” – murmurou ao lado da filha, que dormia); arruinou as finanças familiares; amou fora do casamento (“sem remorsos, sem inquietude, sem desassossego”); foi, sobretudo, ousada (“buscava saber o que significavam exatamente, na vida, as palavras felicidade, paixão, embriaguez, que tão belas lhe pareceram nos livros”). Emma foi exageradamente realista, buscou o impossível. Aproveitando a referência à França, ao maio de 1968 e a escrever para provocar; o texto sobre o manifesto das francesas contra o puritanismo me parece ter sido um que irritou minimamente. As francesas arretadas que assinaram aquele manifesto são legítimas herdeiras do maio de 1968. Ousaram nadar contra a corrente. São, em alguma medida, também herdeiras de Emma Bovary – a suposição fica por minha conta, as signatárias do manifesto não citam a personagem de Flaubert, mas não há maior tapa na cara do puristanismo do que a Madame Bovary.
Mirar os textos agrupados permite ver o que foi feito e o que ainda se pode tentar fazer. Legal ter registrado minimamente um poeta genial como Souzalopes num espaço como o Passa Palavra, especialmente porque foi possível publicar poemas do próprio junto com o texto. Passar pela coluna sobre Souzalopes me lembrou que há um outro poeta do grupo dos grandes e anônimos, que deixou seus trabalhos comigo com autorização para publicá-los. É uma tarefa ao qual pretendo me dedicar, escrever ao menos uma coluna sobre o poeta quase anônimo, além de divulgar alguns poemas dele. Gostei de registrar impressões sobre dois rios canalizados de São Paulo, o Água Preta e o Iquiririm. Como coloquei nos textos, me sinto um pouco como um rio canalizado. Pelos 61 escritos estão espalhados os autores que me fascinam, os principais são os que foram mencionados acima. Mas há um romancista e ensaísta a quem pretendo dedicar um texto, em breve. É o argentino Ernesto Sabato, que, para mim, é tão importante e tão grande quanto os demais mencionados neste balanço. Outro tema que gostaria de desenvolver minimamente é a amizade, especialmente as que construímos nas lutas que travamos. Não conheço ninguém que tenha cantado e praticado tão lindamente a amizade quanto Milton Nascimento, artista infinito que aparece uma única vez e de passagem nas 61 colunas. É muito menos do que eu gostaria que fosse. Milton cantou a amizade em Que bom amigo; Amigo, amiga; Canção da América; Sentinela e outras. O disco Clube da Esquina, de 1972, é um dos melhores da música brasileira e é, também, um exercício de amizade.
Interessante compartilhar contos, poemas e pequenos ensaios com regularidade. Publicar no Passa Palavra me fez acompanhar melhor este espaço de divulgação, apoio e reflexão sobre as lutas do tempo presente: pensadas e discutidas por baixo e pela esquerda, como ensinam os zapatistas. Por coincidência, estava revisando este texto quando foi publicado o balanço (Epitáfio?) do Passa Palavra. Como “leitor atento” do site, já vinha notando uma redução das análises do coletivo, uma diminuição das publicações e os comentários circulares. É natural que a desagregação do “campo autônomo”, afete o Passa Palavra, como pontuam os camaradas. Só que, como eles lembram, em que espaço vão se dar debates sobre “a burocratização dos movimentos sociais, a crítica ao identitarismo, o registro de pequenas lutas”? Espero que o Passa Palavra possa se revigorar, se transformar e seguir em frente. Por ter afinidade política com o projeto e como leitor que às vezes escreve, me alegra ter meus escritos publicados exatamente neste espaço. Aconteça o que acontecer. Não me incomoda a vinculação com um “site antipático”, pelo contrário. O balanço do Passa Palavra traz uma informação interessante sobre o reflexo do “carreirismo acadêmico”: “O aprofundamento de críticas variadas a este espaço tornou-o, para muitos, desabonador do currículo. Qual a vantagem tem um candidato a bolsas ou ao cargo de professor em se associar a um site tão antipático?” Lembrei do Professor Doutor que manda sugerindo num pequeno conto que publiquei como coluna (O tradutor). Sugiro não publicar em sites antipáticos rsrs. Quem sabe algum “candidato a bolsas ou ao cargo de professor” possa retomar um hábito do tempo dos fanzines: escrever com pseudônimo. Evitaria a queimação no ambiente acadêmico e dificultaria minimamente o trabalho da repressão. Manolo fez observação semelhante ao comentar o balanço/epitáfio do Passa Palavra: “A contradição entre vida acadêmica e vida militante, aliás, se resolve muito facilmente com uma das mais antigas ferramentas militantes: pseudônimos.” A questão que fica é saber se os candidatos a professores doutores têm disposição para atividades que não cabem no Lattes. Aproveito a deixa para chamar um veterano da Primavera de Praga para a conversa, Milan Kundera [3]: “Sonho com um mundo em que os escritores sejam obrigados por lei a guardar secreta sua identidade e usar pseudônimos. Três vantagens: limitação radical da grafomania; diminuição da agressividade na vida literária; desaparecimento da interpretação biográfica de uma obra.” No mesmo ensaio, Sessenta e três palavras, o gênio tcheco [4] define a grafomania (mania de escrever livros) como “a mais grotesca versão da vontade de poder”. Fico pensando o que Kundera diria sobre a mania – forçada por metas curriculares – de escrever artigos acadêmicos. Aliás, façamos um pequeno exercício hipotético-literário. Suponhamos que os acadêmicos não fossem forçados a escrever para bater metas. Suponhamos também que tivessem que usar pseudônimos, para não serem identificados, como no “sonho” de Kundera. Quantitativamente, a produção acadêmica despencaria, mas, por outro lado, os textos que fossem escritos seriam os que merecem ser lidos com atenção.
Aos poucos fui criando uma lista pessoal de divulgação das colunas, não um grupo, uma lista de amigos que “incomodo” regularmente com os meus escritos. O envio manual – um por um – permite trocas de ideias, não necessariamente sobre os textos. É revigorante e compensa com vantagem a tal aflição de não dar conta do trabalho. Exemplo. Ao compartilhar o texto de novembro de 2025, sobre Mario Vargas Llosa, recebi um retorno interessante de um camarada baiano. Na segunda metade dos anos 1970, o camarada percorria o sertão da Bahia. Trabalhava na carteira de crédito de um grande banco. Conhecia pessoas e caminhos. Foi quando encontrou um “aristocrata europeu” e sua “secretaria estonteante”. A dupla fazia pesquisa de campo. Queriam entrevistar pessoas que pudessem passar informações sobre Canudos. O “aristocrata europeu” falava e a “secretaria estonteante” traduzia. O camarada baiano passou para a dupla um contato que viabilizou a execução da pesquisa de campo. Ele lembra muito mais da “secretaria estonteante” do que do “aristocrata europeu”. Passados quase 50 anos, o camarada recebeu minha mensagem e brincou dizendo que até hoje pesa-lhe a consciência ter contribuído para viabilizar a pesquisa de campo do livro A guerra do fim do mundo, que Mario Vargas Llosa, o “aristocrata europeu”, publicou em 1981.
Por fim. A vida não é uma ordem, mas ainda vale a pena: pelos livros que lemos, pelas lutas que travamos e, sobretudo, pelas amizades que construímos. Valeu, camaradas!
Notas
[1] Albert Camus. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1996.
[2] Gustave Flaubert. Madame Bovary. Porto Alegre: L&PM, 2016.
[3] Milan Kundera. A arte do romance. São Paulo: Companhia da Letras, 2016. p. 143.
[4] Kundera, op. cit., p. 132.





