Esta nova democracia capitalista continua ou não a estruturar-se a partir da manipulação dos temores e anseios mais primários que, no fundo, ainda não conseguimos largar? Claramente que sim. Por Aldina Duarte

Eu não percebia porque é que havendo tantas árvores de fruto naquela quinta [fazenda] imensa não havia em casa dos meus avós maternos, no Penedo, nem na casa da minha mãe, em Lisboa, uma peça de fruta. Quintas onde homens, mulheres, jovens e crianças da minha família trabalhavam desde os seis anos, pomares em que ninguém podia apanhar e comer uma peça de fruta nem que estivesse caída no chão, porque era considerado um roubo fazê-lo, portanto, um motivo para os mais velhos serem punidos, descontando-lhes no seu mísero salário a quantia moralmente devida, ou ameaçados de despedimento, e, quase sempre, obrigados a abandonar as suas crianças “desobedientes” sozinhas em casa, ao deus-dará, durante a longa jornada de doze a catorze horas de trabalho diário.

Aos seis anos, na casa da patroa H, de quem não sei o nome próprio até hoje, apenas sei que fazia parte da família dos não sei quantos, lugar onde eu gozava de uma liberdade excepcional por ser a única companhia da senhora velhota. Ali conheci o primo Abílio, que era recebido à porta por uma das criadas todas vestidas de preto e avental branco debruado com um folho de renda condizente com a igualmente branca bandolete [fita para prender e enfeitar o cabelo]; ela tirava-lhe o casaco [paletô], recebia o chapéu e retirava-se com uma leve flexão da perna direita e olhos postos no chão, semelhante ao movimento da vénia de um crente quando entra na igreja envergonhado da sua condição de pobre humano pecador. Ele sentava-se sempre no mesmo cadeirão de orelhas [poltrona com suportes laterais para encostar a cabeça], na sala da entrada onde as visitas aguardavam a chegada dos donos da casa, em todas as sextas-feiras ele lá estava à mesma hora, ao lado desse cadeirão havia um outro igual, entre eles um pedestal junto à parede com um galgo de loiça [cachorro de porcelana] que era o meu terror, pois passei anos a ouvir: “se partes o galgo nunca mais sais da cozinha”. Uma das vezes fiquei parada a olhá-lo fixamente, acabava de descobrir como era parecido com o galgo a seu lado e disse-lhe. O primo Abílio perdeu a sua postura altiva e começou a gritar com voz de corneta pela criada, que acorreu muito aflita, levando-me pelo braço à bruta, pedindo mil desculpas ao longo do corredor, já nem o primo a via ou ouvia, até à cozinha, onde vi pela primeira e última vez aquele olhar inesquecível da minha mãe, tristemente duro, levou-me para a varanda dos tanques de lavar a roupa e não me lembro ao certo do que me disse, só recordo aquele olhar tão triste e tão duro que me fez sentir culpada durante anos e anos.

Prometi-lhe não fazer nem dizer mais nada aos patrões sem lhe perguntar primeiro se podia. À noite, em casa, a minha mãe explicou-me que eu tinha que ser crescida para poder estar ao pé dela nas casas onde trabalhava, que era melhor para mim do que com quem quer que fosse que ela me pudesse deixar, eu selei afectivamente um compromisso com a minha mãe, como quem faz um pacto de sangue para a eternidade. Passei a gostar muito mais de estar com as criadas do que estar com a senhora velhota, a quem já me tinha afeiçoado, porque era ela a minha grande amiga de infância, com quem eu mais gostava de brincar, já não confiava tanto no Diogo porque ele, apesar de criança, podia mandar na minha mãe, como um dia ouvia a sua avó dizer-lhe na cozinha à frente de todos os seus empregados. Eu já não queria confiar neles para não fazer ou dizer qualquer coisa que pudesse levar ao despedimento da minha mãe, o que tornaria a nossa vida ainda mais infernal, se já era difícil um emprego, com uma filha pequena ao lado, pior ainda.

Hoje sei as razões da quantidade excessiva, para um lado, e da ausência das peças de fruta, para o outro, dos olhos das criadas postos no chão, das vénias, da dívida e do pecado, do olhar triste e duro das mães, do silêncio que garante o pão. Sei que uma parte da humanidade acredita que não merecemos as mesmas oportunidades ao nascer, porque o equilíbrio duma sociedade assenta na definição de uma classe dominante que comande e controle as sucessivas classes inferiores para garantir a sua visão de um mundo desigual como garantia do poder individual e familiar, conservando assim os seus bens, as suas ideias, as suas crenças, os seus hábitos e gostos exclusivos, e a sua superioridade natural. Sei que também há o liberalismo que renega qualquer tipo de discriminação, dizendo que a vitória e o poder social e financeiro está ao alcance de todos e que vence o mais capaz, logo, estamos perante o sistema mais justo, aquele que premeia individualmente quem é mais dotado à nascença, construindo desta forma uma sociedade de fortes e fracos, premeia-se com a graça divina e com todas as oportunidades que só o dinheiro dá o nascimento numa família afortunada e com o poderoso estatuto social o herói pobre que enriquece seja lá como for, entenda-se por vencedor o que consegue riqueza, fama e poder individual, borrifando-se no próximo [não estando nem aí para o próximo] e desprezando os mais fracos, os pobres e os dependentes de um emprego para sobreviver (a maioria!), mas tudo isto é um resultado explicável pela ordem natural e divina que dota mais ou menos um indivíduo em relação às outras pessoas para o triunfo pessoal na sociedade em que nasce e cresce. Depois, há a extrema-direita que defende basicamente o mesmo que o fascismo e o nazismo.

O outro lado da humanidade a que eu pertenço acredita que a sociedade deve dar as mesmas oportunidades a todos ao nascer, porque se o Homem tem uma natureza genética que interfere no seu crescimento, o colectivo composto pelos seus semelhantes e as experiências sociais é que são justamente mais determinantes para desempenhar a sua função no mundo, enquanto lugar próprio para o desenvolvimento e evolução da Humanidade. Sabe-se que o homem é um ser individual e social, e qualquer empreendimento deve servir a evolução individual a bem de toda humanidade. Eu acredito ideologicamente no aprimoramento pragmático da vida humana, como pessoas que pensamos, sentimos, escolhemos, sonhamos e construímos. O dinheiro é um instrumento entre outros que fazem parte da organização da vida em sociedade, no mundo em que eu acredito como sendo o mais justo e concordante com o melhor que há na natureza humana: igualdade, solidariedade e liberdade.

A minha pergunta é, acabado o fascismo em Portugal, esta nova democracia capitalista continua ou não a estruturar-se a partir da manipulação dos temores e anseios mais primários que, no fundo, ainda não conseguimos largar? Claramente que sim.

Acreditamos ou não que é a subserviência e o silêncio bem comportado que nos garante o emprego, para pagar a conta do supermercado e a renda da casa. Acreditamos.

Sentimo-nos culpados quando dizemos ou fazemos alguma coisa que estraga a ordem vigente com consequências negativas para nós e/ou para outros? Sentimos.

Pensamos que mais vale aguentar até ao fim da linha, que um Alguém poderoso ou Deus há-de fazer alguma coisa, e se não acontecer é porque mais ninguém podia ter feito nada? Pensamos.

Preferimos garantir a nossa vida sem querer saber da infelicidade e injustiça alheia, como sempre vimos fazer os que têm mais dinheiro e que mandam em nós?

Leia os outros episódios de Negros Tempos: 1ª Parte, 3ª Parte e 4ª Parte.

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