Por Passa Palavra
Face aos resultados das últimas eleições para o Parlamento Europeu boa parte da esquerda portuguesa virou baterias para o agrupamento espanhol Podemos. Criado a partir das manifestações e acampadas de Indignados, o Podemos tem sido apresentado como a nova coqueluche da esquerda europeia.
*
Rezam as Metamorfoses de Ovídio que o orgulho de Narciso teria levado Némesis a condená-lo a uma eterna admiração do seu rosto espelhado na margem límpida de um rio.
Se as metáforas clássicas têm algum valor, ele reside no quão bem elas podem ajudar-nos a descrever determinados comportamentos. No caso da esquerda existente no continente europeu, vislumbra-se um vasto sector político minoritário e que vive há décadas atolado de vitórias morais. Perante os seus erros e tragédias no século XX, e em vez de reflectir sobre os procedimentos e sobre os programas que falharam reiteradamente, a esquerda parece preferir o conforto das verdades feitas e das imagens de si mesma.
*
Mas já que se fala de metáforas, vejamos o que Íñigo Errejón, dirigente do Podemos, disse numa longa entrevista ao jornal “i”. Quando interpelado a propósito da «ultrapassagem do conflito entre “esquerda” e “direita” para um conflito entre os de “cima” e os de “baixo”», Errejón anula a ligação entre ambas as premissas: «muitos de nós vimos de sectores políticos e intelectuais de esquerda. Mas direita e esquerda são uma metáfora. Ser-se de esquerda traduz-se fundamentalmente em gente que se agrupou à volta das causas do aumento da democracia e da redistribuição da riqueza». Se Errejón descreve o que é a esquerda em termos históricos, logo de seguida lembra que «essa, creio que não é a diferenciação que é neste momento fundamental em Espanha. Pelo contrário, é a diferenciação em torno da qual o Partido Socialista e o Partido Popular gostariam que se voltasse a organizar a competição política no país».
Se a política é jogada aqui no plano das metáforas, torna-se então possível considerar as diferenciações sociais e de classe como secundárias. Para Errejón «há muita gente que, sem se considerar de esquerda, considera-se cidadão que tem sido roubado, acha que a soberania popular e os representantes já não respeitam aquilo que prometeram nas eleições e vê a liquidação dos direitos sociais. Estas pessoas são a maioria da população, com a qual é necessário construir uma mudança».
Se se for mais ao fundo da questão, percebe-se como esta avaliação política de Errejón comunica com outros sectores políticos da extrema-direita. Num artigo publicado a 7 de Novembro de 1932 no Diário de Notícias, o futuro director do Secretariado da Propaganda Nacional, António Ferro, clamava da seguinte maneira: «acabemos, portanto, com essa lenga-lenga da direita e da esquerda. […] Não há direita nem esquerda. Há Roma e há Moscovo. Todos os caminhos vão lá dar. E até pode haver um — quem sabe? — que encontre, ao mesmo tempo e no mesmo lugar, estas duas cambiantes». Desligar o que Errejón chama de conflito entre os de cima e os de baixo de uma formulação política consistente, e entrar pelo caminho da relativização das categorias políticas, traduz um procedimento análogo ao protagonizado setenta anos antes por António Ferro. Como se poderá comprovar pela leitura subsequente da entrevista do dirigente do Podemos, transforma-se a formulação já de si demasiado ampla de luta entre os de baixo e os de cima numa luta entre as nações de baixo e as nações de cima. Em suma, a raiz da crise económica estaria na existência de «uma casta política» ao serviço das oligarquias financeiras internacionais que, em conjunto, estariam a depredar as economias nacionais. E assim se transforma o antagonismo estrutural entre os produtores e os apropriadores de mais-valia num efeito de coesão política interna entre explorados e exploradores de um país contra os explorados e exploradores sediados nos países centrais da União Europeia.
«Estamos conscientes de que a União Europeia é um erro. A integração europeia tem sido apenas um processo ao serviço do capital financeiro e contra a soberania dos povos».
Este propósito político de substituir a luta entre trabalhadores e capitalistas pela luta do povo nacional contra a ingerência externa da União Europeia (e seus agentes internos nos governos) corresponde precisamente ao princípio motriz de todos os nacionalismos. Ora, se os processos socioeconómicos são substituídos por processos geoestratégicos torna-se natural que Errejón chegue ao ponto de defender que a alternativa à integração europeia em marcha (leia aqui, aqui e aqui) seria um «processo em que haja uma transformação que garanta a soberania dos povos e construa um caminho diferente de cooperação entre os povos da Europa». Em suma, trata-se da Europa das nações, que tanto anima a intervenção da extrema-direita ( leia aqui). Na mesma perspectiva focada na crítica da finança — e nunca do capitalismo — internacional, a avaliação que este dirigente do Podemos faz do processo de integração europeia é a de que este «tem sido apenas um processo ao serviço do capital financeiro e contra a soberania dos povos». Desse modo, quando a Frente Nacional francesa se insurge contra a actual «Europa sem povos» e pretende que a União Europeia estaria «contra os povos» (leia aqui), onde começam e onde acabam os paralelismos programáticos entre estas formações políticas? Se o desenho da arquitectura da Europa é similar e se o primado do Estado nacional se sobrepõe a qualquer projecto de supranacionalização, não constituirão estes dados fortes indícios de uma partilha programática entre ambos?
Mas se há quem pense que a extrema-direita apenas se direccionou muito recentemente para a defesa de uma Europa das nações, talvez devesse ler o seguinte trecho: «O progresso da Humanidade exige o progresso de cada Nação de per si, para que, sem hostilidade de umas para as outras, antes ajudando-se reciprocamente, todas possam utilmente concorrer, por um racional intercâmbio, material e espiritual, para o Bem Comum». E assim a esquerda inovadora que do PCP aos apoiantes do Podemos defende uma Europa das nações, não faz mais do que repetir algo que já tinha sido enunciado em 1935 nas páginas 13 e 14 da Cartilha da União Nacional. Princípios fundamentais, conceitos económico-sociais, deveres do filiado. A esquerda nacionalista defende que tem sido a extrema-direita a copiar temas da esquerda. Na realidade, como se pode ver pelas fontes documentais, tudo o que se relaciona com o vector nacional dessa esquerda remonta à extrema-direita.
Instado a pronunciar-se sobre as diferenças relativamente à extrema-direita, o dirigente do Podemos alarga a noção de que esquerda e direita seriam metáforas à assumpção de que, para além da questão da imigração, existem «traços comuns» entre a sua organização e a extrema-direita. Aliás, Errejón deixa explícito que o facto de o Podemos levantar as bandeiras contra a finança global e a classe política estaria a impedir «o surgimento de uma extrema-direita organizada e poderosa em Espanha». Mas, ao contrário do que uma leitura desatenta ou uma ignorância histórica podem levar a pensar, não foi a extrema-direita que teve o exclusivo de recuperação de temas à esquerda. Ao contrário do que Errejón e o entrevistador pensam, os temas em torno da classe política corrupta e do capital financeiro e apátrida surgiram na extrema-direita, como se pode ver aqui.
O facto de Íñigo Errejón e o Podemos não coincidirem programaticamente com a extrema-direita no que diz respeito à imigração não apaga o facto de assumidamente partilharem importantes teses políticas: 1) desqualificação do capitalismo enquanto um conjunto complexo de relações sociais assentes na extracção de valor económico a partir da exploração de elementos sem controlo sobre o processo social de produção, e sua limitação a um mero sistema internacional especulativo de rapina; 2) primado do Estado nacional e consideração de uma nova Europa de nações soberanas, o que naturalmente implica o reforço das fronteiras nacionais.
Este segundo ponto acerca do primado do Estado nacional na actual conjuntura histórica merece uma breve nota. Independentemente das variantes e contra todas as probabilidades hoje existentes, se uma Europa das nações viesse a realizar-se, o reforço das fronteiras seria uma inevitabilidade. Basta pensar que o robustecimento dos Estados nacionais implicaria necessariamente um reforço da sua autoridade sobre as pessoas do seu território administrativo e sobre as respectivas fronteiras nacionais. O que por sua vez implicaria obstáculos à livre circulação de pessoas. Se a isto se adicionar que a) uma derrocada da União Económica e Monetária resultaria numa colossal fuga de capitais e na consequente implosão do sistema bancário dos países em piores condições económicas e b) não existem lutas autónomas e massivas dos trabalhadores, a corrida aos proteccionismos nacionais necessariamente teria repercussões no controlo fronteiriço de uma força de trabalho desesperada pela nova situação que se iria gerar. Se ao nível programático a esquerda nacionalista quer distinguir-se da extrema-direita, ao nível prático as suas teses teriam consequências muito semelhantes, inclusive no pretenso ponto diferenciador da imigração.
O pior de tudo é a atitude cândida e cognitivamente displicente com que estas palavras são recebidas à esquerda. Certamente que os que elogiam pomposamente o Podemos terão reflectido longa e seriamente sobre as implicações do desprezo pelas questões de classe… Aliás, a preocupação estratégica parece ser tanta que, em Portugal, autonomistas, stalinistas, trotsquistas e movimentistas de todo o tipo se juntaram (ou empilharam) na realização de um evento comum sobre o Podemos (veja aqui). Fica-se sem saber se o que anima tal coexistência é o factor novidade, pois ao lado de tanto foguetório panfletário sobre movimentos sociais, democracia participativa e redes sociais, o que sobressai da entrevista de Íñigo Errejón são precisamente o estatismo e o nacionalismo. Pela amostra da entrevista não admiraria que, em caso de concretização, o projecto do Podemos resultasse na mobilização de massas de trabalhadores jovens precários e desempregados num projecto de fortalecimento nacional dos Estados. Se alguém classificasse este processo de nacionalismo de base proletária não andaria muito longe da verdade. Se lhe chamasse prenunciador de uma revolta dentro da ordem também não.
*
Narciso mira-se na água. Considera-se esbelto, sem falhas, imaculado. Tal como a esquerda de hoje que se extasia com o seu auto-retrato mas que, no final de contas, vive presa ao fetiche de si mesma. Narciso: raiz mitológica da reflexão sobre a ideologia ou a consciência milenar do equívoco dos que não vêem mais do que a superficialidade de si mesmos? O certo é que no final da história narrada por Ovídio, Narciso acabaria por se suicidar quando compreendeu que não poderia concretizar o amor pela imagem de si mesmo.
O que espanta também é outro aprendizado que não se faz da história, e ela parece que é fadada a se repetir eternamente. Formar um partido para disputar o poder do Estado a partir de movimentos sociais leva a que? Esse partido deve se adequar às regras e normas do Estado, criando logo hierarquizações, processos de burocratização… tudo isso para se um dia chegarem no tal “poder” serem bons gestores do capitalismo, reprimirem os movimentos sociais, as lutas dos trabalhadores etc. Aliás como o PT faz hoje em dia no Brasil.
Infelizmente os zapatistas estão fazendo falta como influência a uma geração mais recente, pelo que parece. Além do que, muito bem colocam, pelo menos desde a Sexta Declaração da Selva Lacandona: abaixo e à esquerda.
Bom, nesse caso, sinto-me obrigado a repetir aqui um comentário que postei a um outro artigo desse site mas que cabe perfeitamente aqui:
Capilé começa a mostrar a que veio:
“Enquanto no Brasil tem uma parte de movimentos pós junho que criminalizam todo e qualquer dialogo com partidos, na espanha a juventude das ruas elegeu 5 representantes para o Parlamento Europeu. Eu acho muito foda, parabéns pros caras! Colocando a cara a tapa e construindo novas institucionalidades!”
Duas operações linguísticas: 1) posicionamento político crítico a partidos políticos e via parlamentar é, discretamente, transformado em “criminalização” – o que ao mesmo tempo demoniza os críticos e vitimiza aqueles que “dialogam” com partidos; 2) a opção pela via institucional é antecipada pelo adjetivo “novas”. Assim, substancialmente pratica-se o de sempre, mas no plano “narrativo” tudo aparece maquiado pela agregação abundante de adjetivos.
É isso aí: Capilé parece preparar o terreno para em futuro próximo aparecer como Pós-Candidato à Nova-Presidência.
Leo e Taiguara,
Estou de acordo com os vossos comentários, evidentemente, mas devem lembrar-se de que a situação da luta de classes em Portugal é muito mais atrasada do que no Brasil. Em Portugal não existem movimentos sociais nem nada que se assemelhe e neste momento os protestos de rua são completamente controlados pelo Partido Comunista, uma força política estatista e nacionalista.
A questão urgente para a esquerda portuguesa deve ser apenas esta: qual o quadro que permite lutar com mais êxito contra o capitalismo? O de uma crescente federalização europeia, tendo como núcleo a zona euro, ou o de um reforço do nacionalismo, agravado por um abandono do euro?
Neste contexto, a esquerda portuguesa, que até às recentes eleições para o Parlamento Europeu fazia do Syriza grego a sua coqueluche, desinteressou-se dele quando o viu reafirmar o europeísmo e passou a propagandear o Podemos espanhol, no qual encontra um espelho que aumenta a sua própria imagem. Daí a importância desta entrevista com Íñigo Errejón. A noção de que estaria ultrapassada a clivagem entre esquerda e direita, de que seria conveniente mobilizar uma nação em cólera, de que seria necessário interromper o rumo para uma federação política europeia e destruir a unidade monetária para construir uma Europa das nações — tudo isto, como tem sido repetidamente mostrado no Passa Palavra, foram e são os temas do fascismo. Sempre que o nacionalismo penetra na luta dos trabalhadores, o fascismo não anda longe. É este, na actual situação portuguesa, o sinal de alarme motivado pela entrevista de Errejón e pelo interesse despertado pelo Podemos. E o facto de aqueles temas se difundirem na esquerda, em vez de ser uma garantia contra o fascismo, pelo contrário, facilita-lhe a penetração. Convém recordar a este respeito o excelente estudo de Zeev Sternhell que o Passa Palavra publicou (a 1ª parte aqui, as outras estão linkadas) e, já agora, o que eu próprio escrevi sobre esse mesmo período (a 1ª parte aqui, as restantes estão linkadas). Se o actual contexto político europeu é perigoso, em Portugal, com a sedução exercida pelo nacionalismo sobre a esquerda, a situação da reduzidíssima esquerda anticapitalista é mais precária ainda.
Talvez uma interessante metáfora para as esquerdas seja aquela em que a psicanálise usa um relógio para hipnotizar e colocar sob seu controle o paciente. É justamente isto que esquerdas institucionalizadas, mas também parte das não institucionalizadas, fazem ao compartimentarem as discussões e ações sobre a totalidade da estrutura social baseada num sistema de produção e intercâmbio altamente planejados e controlados, do que decorre a própria fetichização das esquerdas.
Se a prática já demonstrou por diversas vezes que dentro das estruturas capitalistas não adiantam mudanças na tríade capital-trabalho-estado e que só uma nova e outra estrutura pode alterar esta realidade, a insistência de certos discursos e comportamentos das esquerdas se explicam, ao menos em parte, que tudo não passa de um jogo formal para legitimar o status quo da sociedade atual, ou seja, uma mera representação de lutas, que como numa peça teatral, tanto o enredo quanto seu final são previamente conhecidos.
No Brasil, a título de exemplificação, o grande partido trotskista bem sabe que nunca vai alcançar o poder, mas ao participar da estruturas existentes, cumpre seu papel de legitimar a democracia que aí está, por isso sua organização interna se baseia na eternização de uma “tradicional” classe dirigente, a “avant gard”, e de uma alta rotatividade nas bases do partido, até porque, ante a contradição do discurso com a prática, se faz necessário uma alta rotatividade nas bases, tanto para se criar um esquecimento da realidade interna como para diluir laços entre membros que poderiam vir a contestar o histórico poder instalado. Assim, com as ascenções e quedas dos “modismos” considerados de esquerda, as velhas burocracias vão se sustentando dentro de suas estruturas… Não sei se é o caso, mas talvez seja isso que ocorre com o PCP.
E quanto a sair da crise? As organizações da esquerda (sobretudo as, digamos, oficiais) devem esperar que a crise se resolve por si mesma (com as políticas de austeridade)?
O barão sai do pântano puxando seus próprios cabelos?
O Financial Times publicou este artigo sobre a nova esquerda européia, defendendo, basicamente, o programa de reestruturação da divida e maior investimento público.
O que os colegas pensam a respeito?
http://www.ft.com/intl/cms/s/0/48e6fa76-70bd-11e4-8113-00144feabdc0.html#axzz3KGwZnRdC