Talvez não tenhamos que pregar no deserto e haja quem nos ouçaPor Passa Palavra

Leia a 1ª parte deste artigo.

Na 2ª parte do artigo «Behemoth mata Leviatã e morre» escrevemos que «a unificação política entre trabalhadores e capitalistas produtivos realiza todos os critérios de um nacionalismo». É este o cerne do problema, concentrar as críticas nuns poucos capitalistas e absolver os restantes, quanto mais não seja por omissão, considerando especuladores os primeiros e os outros produtivos. Não nos cansamos de repetir que esta divisão em capital produtivo e capital especulativo se gerou na primeira década do século XX e foi desde então um dos elementos constitutivos do fascismo. Com efeito, atribuir as responsabilidades de uma crise a um pequeno número de capitalistas, no geral ligados às instituições financeiras, e admitir que os restantes somam os seus esforços aos dos trabalhadores para em conjunto promomeverem a economia é a própria definição do nacionalismo. Limitemo-nos aqui a ver como o nacionalismo opera no caso português e quais as responsabilidades que têm cabido à esquerda.

Graffiti 30O mais interessante não é o que se diz mas o que se esquece. Em 2 de Dezembro de 2012, na 2ª parte do artigo «Sinal vermelho ou farol?», recordámos que «contrariamente ao que sucedeu na Grécia, onde no final de 2009 um pouco mais de metade da dívida externa era da responsabilidade do governo, em Portugal o governo era então responsável apenas por cerca de 1/4 da dívida externa, cabendo 55% às companhias financeiras». E concluímos: «Não foi um problema de crédito governamental, mas de crédito aos particulares e às empresas, que quebrou a economia portuguesa, e a concentração dos ataques no governo serve para fazer esquecer este facto crucial. Sob este ponto de vista, a aliança entre os trabalhadores e os pequenos e médios patrões, que o Passa Palavra tem denunciado como o mais iminente perigo de fascização da política portuguesa, não é um risco a prazo e num horizonte futuro, é algo existente desde já, quando se ataca só o governo para poupar a esmagadora maioria dos patrões». Se o problema era grave há um ano, não deixou de ser grave desde então.

A actual crise sofrida em Portugal não se deve somente a factores externos. Os capitalistas portugueses não são cordeiros inocentes sacrificados no altar da maldade alemã. A crise que Portugal atravessa deve-se acima de tudo à forma como os empresários portugueses reagiram àqueles factores externos.

A questão da produtividade

Os nacionalistas de esquerda defensores do abandono do euro gostam de invocar os exemplos da Argentina e da Islândia. A respeito da Argentina têm estado ultimamente mais discretos, já que a evolução recente daquele país não os deixa à-vontade. Quanto à Islândia, um dia destes haveremos de analisar em que medida ela pode servir de termo de comparação. O que achamos curioso é o esquecimento a que os nacionalistas de esquerda votam o caso irlandês, apesar de conter lições importantes.

Quem imagina que a perda de competitividade da economia portuguesa se deveu à adesão à zona euro devia reflectir que «nas mesmas condições monetárias, a produtividade irlandesa passou de uma produção horária de 36,6 euros em 1999 (exactamente a mesma que a alemã para o mesmo ano), para uma produção horária média em torno dos 51,7 euros, em 2011», escreveu João Valente Aguiar em 29 de Março de 2013, no artigo «O que é nacional é bom? Para quem?». E continuou: «A evolução da produtividade alemã, apesar de também muito positiva, estava em 2011 nos 42,3 euros. Ora, em Portugal a produtividade aumentou cerca de 11% no mesmo período e, pior ainda, manteve índices muito reduzidos: em 2011 era, em média, de 16,5 euros por hora. Portanto, a produtividade média da economia portuguesa ronda os 30% da irlandesa e os 40% da alemã. Isto significa que a produtividade na Alemanha — tida pelos nacionalistas como a única economia a ganhar com o euro e como a nação opressora por excelência da zona euro — aumentou 16,5%, ao passo que a produtividade irlandesa passou a ser mais elevada do ponto de vista absoluto. Ao mesmo tempo, a produtividade irlandesa no quadro do euro aumentou cerca de 41%».

Chegamos assim à questão essencial, que é a baixa produtividade da economia portuguesa, a tecnologia precária empregue na maior parte dos casos e o arcaísmo empresarial. Chamámos a atenção para estes aspectos em 23 de Outubro de 2012, no artigo «“Europa não, Portugal nunca” — um esclarecimento». «O que está fundamentalmente em causa na actual crise», escrevemos nesse artigo, «é a classe capitalista portuguesa globalmente considerada, desde os pequenos patrões obsoletos aos grandes empresários que concentraram os investimentos nos centros comerciais. Não é uma crise suscitada por banqueiros malevolentes. É uma crise agravada por capitalistas incompetentes».

O crescimento da produtividade é um factor indispensável para que o capitalismo obtenha aquilo que em termos marxistas se denomina mais-valia relativa, ou seja, um aumento da exploração resultante do aumento da intensidade e da complexidade do processo de trabalho e não simplesmente da redução dos salários nominais. É pelo facto de a produtividade ser muito maior na Suécia do que no Haiti que os capitalistas preferem investir no primeiro desses países e não no último, porque mediante a mais-valia relativa o trabalhador sueco é muitíssimo mais explorado do que o haitiano. A importância desta questão levou o Passa Palavra a retomá-la em sucessivos artigos.

Graffiti 22 a«Os dados disponíveis permitem verificar que a produtividade portuguesa em 2000 era 39,94% da alemã e em 2011 era 39,01%», observou João Valente Aguiar em 6 de Dezembro de 2012, na 1ª parte do artigo «A minhoca e a maçã. A esquerda nacionalista e o euro». «Portanto, dito de uma maneira muito simples, mesmo já a economia alemã estando a produzir no ano de 2000, em média, 37,3 euros por hora (algo de que nem em 2011 Portugal chega a metade), esta conseguiu incrementar mais 5 euros por hora na última década. Portanto, a um nível já elevado de produtividade, a economia alemã foi capaz de continuar a fazer crescer em termos absolutos a capacidade de extrair maior quantidade de bens e de serviços por cada hora de trabalho. Inversamente, Portugal, que só produzia 14,9 euros por cada hora de trabalho em 2000, chegou a 2011 com 16,5 euros por hora. Se, percentualmente, o diferencial de aumento da produtividade nem seria muito distinto (10,74% contra os 13,40% na Alemanha), na realidade a economia portuguesa, em 11 anos, incorporou por cada hora de trabalho apenas mais 1,6 euros. Ou seja, a taxa de crescimento unitário da produtividade foi de cerca de um terço da registada na Alemanha. Por conseguinte, e em jeito de resumo, Portugal tem uma produtividade cerca de 39% da alemã e teve, em onze anos, um aumento nos ganhos de produtividade do trabalho na ordem de um terço do registado na Alemanha».

A produtividade e os salários

A questão da produtividade assume toda a sua importância quando é posta em comparação com os salários, porque só neste plano pode ser avaliado em que grau a economia de um país progride na mais-valia relativa. Ora, em 6 de Maio de 2012, na 3ª parte de um artigo dedicado à «Crise na zona euro», João Bernardo chamou a atenção para o facto de que «em 1995 a taxa de crescimento dos salários foi 1,2 vezes superior à taxa de crescimento da produtividade, e 2,5 vezes em 1996; mas os valores equivalentes foram 16,5 em 2005 e 13,0 em 2006». Analisando os mesmos dados na 2ª parte de «Sinal vermelho ou farol?», de 2 de Dezembro de 2012, escrevemos: «Nos doze anos considerados [de 1995 a 2006], a taxa de aumento dos salários diminuiu 61%, mas a taxa de aumento da produtividade baixou mais ainda: 97%. Assim, o importante na comparação destas duas séries é o facto de a diferença se ter agravado. Em 1995 a taxa de crescimento dos salários nominais foi 1,16 vezes superior à taxa de crescimento da produtividade e 2,5 vezes em 1996, mas os valores equivalentes foram 16,5 em 2005 e 13,0 em 2006».

O facto de o Passa Palavra repisar a questão não significa que nos tivessem escutado. Um provérbio diz que se pode levar o burro ao rio mas não se pode obrigá-lo a beber água. Em 14 de Outubro de 2012, no artigo «A saída do euro e o fascismo», insistimos nos números. «A taxa de crescimento da produtividade foi 5,8% em 1995 e 3,6% em 1996, mas passados dez anos foi 0,2% em 2005 e em 2006. Para agravar esta situação, a taxa de crescimento dos salários nominais, que fora 6,7% em 1995 e 9,0% em 1996, foi 3,3% em 2005 e 2,6% em 2006. As contas são simples. Enquanto em 1995 a taxa de crescimento da produtividade equivalia a 87% da taxa de crescimento dos salários, e a 40% em 1996, esses valores caíram para 6% em 2005 e 8% em 2006». E o Passa Palavra concluiu: «Ora, a produtividade de uma economia depende dos patrões e, acessoriamente, das infra-estruturas educacionais e científicas. É aos empresários, a todos eles e não só ao sector bancário, que se deve a situação catastrófica da economia portuguesa».

Graffiti 20Quando a propaganda política nos repete hoje em todos os tons que «vivíamos acima das nossas possibilidades», o que isto na realidade significa é que os empresários portugueses eram incapazes de nos dar as possibilidades para vivermos. Os salários dos trabalhadores portugueses não são nem eram nem nunca foram elevados. «Se tomarmos como termo de comparação o salário médio bruto por hora, em 2010», indicou João Bernardo em 6 de Maio de 2012, na 3ª parte do artigo «Crise na zona euro», «os trabalhadores portugueses recebiam exactamente metade da média da zona euro ou pouco mais de 1/3 do salário médio praticado no país com as remunerações mais elevadas da zona». O problema não vem dos salários, mas da baixa produtividade e da tradicional incapacidade dos empresários portugueses para alterarem a situação.

Os empresários portugueses não são vítimas da crise, mas agentes da crise. Por isso, as tentativas de diluir a responsabilidade dos capitalistas portugueses numa apologia do todo nacional corresponde a reforçar a dependência dos trabalhadores relativamente a um empresariado arcaico e incompetente.

Um empresariado ignaro

A baixa produtividade e o geral atraso tecnológico da economia portuguesa podem ser mais facilmente comprendidos se tivermos em conta um factor que João Bernardo destacou em 6 de Maio de 2012, na 3ª parte do artigo «Crise na zona euro». «Em 2004 os institutos nacionais de estatística dos dois países ibéricos procederam a um inquérito, revelando que, enquanto na União Europeia, em média, 29% dos empresários tinham licenciatura universitária, em Portugal a cifra correspondente era 11%; e enquanto na União Europeia 24% dos empregados tinham licenciatura universitária, em Portugal eles eram 13%». Outro estudo, mencionado pelo Passa Palavra em 2 de Dezembro de 2012, na 2ª parte do artigo «Sinal vermelho ou farol?», indicou que «enquanto em média na União Europeia, em 2009, eram praticamente idênticas as percentagens de patrões e de empregados com licenciatura universitária — 27,6% dos primeiros e 28,6% dos últimos — em Portugal o desfasamento era muito considerável, pois só 10,8% dos patrões tinham curso universitário, para 18,1% de empregados licenciados». A diferença parece ter-se agravado, porque João Bernardo escreveu no artigo há pouco referido: «Segundo o Instituto Nacional de Estatística, em 2010, 9% dos patrões possuíam curso universitário, contra 19% dos empregados. Além da discrepância entre o nível de instrução da população activa portuguesa e a média europeia, regista-se o facto anómalo de os empresários portugueses terem um grau de instrução inferior ao dos seus empregados, tendendo a diferença a aumentar».

SJoão Bernardo observou que «estas percentagens esclarecem muita coisa acerca da travagem dos mecanismos da produtividade em Portugal», mas parece-nos que, além disso, elas explicam em boa medida a boçalidade grotesca da vida política portuguesa.

O significado económico do nacionalismo

Aqueles números deixam antever que o atraso tecnológico seja especialmente acentuado nas pequenas e médias empresas, onde mais dificilmente os proprietários podem recorrer a administradores competentes que lhe supram a formação deficiente. Com efeito, na 2ª parte de «Behemoth mata Leviatã e morre», e citando o economista Eugénio Rosa, apontámos que em Portugal, em 2006, a produtividade do trabalho nas 500 maiores empresas, medida em valor acrescentado bruto por trabalhador, correspondia a mais do dobro do que se verificava a nível nacional. Baseando-nos noutros dados, também indicámos que em 2008 «em termos médios, as empresas a operar em Portugal acima de 250 trabalhadores detêm uma produtividade superior a mais do dobro das pequenas e médias empresas capitalistas». O desfasamento acentuou-se, porque num estudo de 2012 Eugénio Rosa considerou que a produtividade média nas 500 maiores empresas estabelecidas no país é 3,5 vezes superior às outras. Não se trata de uma fatalidade, porque há vários países em que as pequenas e médias empresas são altamente produtivas e concorrenciais em nichos de mercado específicos.

Numa situação de baixa produtividade as pequenas e médias empresas portuguesas são o paraíso, aliás, o inferno, da mais-valia absoluta. Tal como escrevemos em 20 de Novembro de 2012, na 2ª parte de «Behemoth mata Leviatã e morre», «em média, as grandes empresas praticavam em 2008 salários 47,6% superiores à média das PME». Ora, em Portugal são as grandes empresas que mais estreitamente estão relacionadas com o mercado externo e com o sector financeiro, o que significa que são elas as mais internacionalizadas e as que, portanto, defendem a permenência na zona euro. Pelo contrário, os pequenos e médios patrões, com a tacanhez que os caracteriza, são quem assume posições nacionalistas. A atrelagem política dos trabalhadores ao patronato nacionalista tem como corolário a apologia das empresas que pagam os salários mais baixos.

Neste quadro, não é de estranhar que os defensores do decrescimento económico, geralmente associados aos ecologistas que defendem a redução dos níveis de consumo, sejam igualmente entusiastas do regresso ao escudo. Uma queda dos salários ainda mais catastrófica do que a imposta hoje pela troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) — é este, em Portugal, o significado económico do nacionalismo.

«Uma liderança forte»

Os defensores do abandono do euro pretendem que a adopção de um escudo depreciado bastaria para aumentar a competitividade da economia portuguesa. O Passa Palavra tem recordado em vários artigos que, se uma moeda depreciada pode tornar as exportações mais baratas, torna as importações mais caras, o que significa que o abandono do euro dificultaria a aquisição ao estrangeiro de meios de produção modernos, tanto materiais como serviços, com resultados catastróficos sobre a produtividade. Nestas condições, como o Passa Palavra tem insistido, a competitividade da economia portuguesa no mercado externo poderia resultar apenas da baixa dos salários. Mas como noutros países há trabalhadores cuja remuneração, convertida em dólares, é inferior à praticada em Portugal e que, apesar disto, têm qualificações idênticas ou até superiores, nem assim estaria garantida a competitividade das exportações portuguesas, o que pressionaria os capitalistas a reduzirem ainda mais os salários. Continuando com a dicotomia entre a Suécia e o Haiti, é a haitização da economia portuguesa que nos é proposta.

Graffiti 26E quando um nacionalista de esquerda, Jorge Bateira, afirma que, no caso de abandono do euro, «não é forçoso que o caos tenha de acontecer» e que «é preciso uma liderança forte para que não houvesse nenhuma turbulência», pensamos que essa da «liderança forte» já a ouvimos nalgum lado.

«Geralmente o fascismo constitui-se a partir de uma aliança dos trabalhadores com os capitalistas “produtivos” contra a finança, para regenerar a nação», escreveu João Valente Aguiar em 19 de Dezembro de 2012, no artigo «A ciclovia do nacionalismo: resposta a João Rodrigues». Só que neste caso os capitalistas produtivos são os que apresentam as mais baixas taxas de produtividade. É nesta perspectiva que deve ser analisado o nacionalismo português e é nesta perspectiva que o Passa Palavra o tem analisado, não como uma mera teoria incorrecta, mas como uma prática catastrófica.

A questão á mais grave ainda do que a proposta de abandono do euro, já que a evolução da situação económica e financeira torna a desagregação da moeda única como uma hipótese cada vez menos plausível e, por conseguinte, aqueles que propõem o regresso ao escudo estão cada vez mais distantes dos factos. Ao contrário do que alguma teoria económica de alcova quer fazer crer, a documentação pública demonstra que os gestores têm convergido na necessidade de prosseguir a integração europeia, servindo a união bancária de ponto de partida dessa nova etapa, tal como indicámos em 24 de Novembro de 2013 na 2ª parte do artigo «A estratégia dos gestores».

Daqui se extraem duas lições, que infelizmente passam despercebidas à generalidade da esquerda. Por um lado, a integração europeia responde aos problemas trazidos pela transnacionalização do capital. Contrariamente ao que sucedia nas economias pré-capitalistas, no capitalismo os ciclos de crescimento, recessão e crise sucedem-se numa espiral ascendente, de modo que a recuperação de uma crise cíclica pressupõe a ampliação das oportunidades de expansão do sistema económico. Na 1ª parte do artigo «Crise na zona euro», de 22 de Abril de 2012, João Bernardo mostrou com alguma minúcia que «a formação da zona euro resultou de uma série de respostas a problemas práticos», preocupando-se os gestores em arranjar soluções de momento para situações que se haviam tornado insustentáveis. É esta a segunda lição que tem passado despercebida. Os capitalistas não se preocupam com grandes programas e objectivos utópicos, mas em vez disso buscam a partilha de consensos numa base pragmática. Como observou João Bernardo no referido artigo, «de agora em diante o que estará em causa serão muito menos as soberanias nacionais — que em boa medida se diluíram e obrigatoriamente se diluirão mais ainda — do que a ficção nacionalista. Isto altera bastante os termos do processo e, paradoxalmente, dará um novo relevo à instância ideológica nos próximos tempos. Quanto menos o nacionalismo corresponder a uma base prática, tanto mais procurará afirmar-se no plano ideológico». Se isto era exacto há dois anos, mais ainda o é agora, operando-se um crescente desfasamento entre os processos sociais e a mundivisão ideológica de grande parte da esquerda, ocupada em lançar uma bandeira de luta que está na contramão do processo real. Este desfasamento é agravado pelo facto de não estarem a ocorrer amplas lutas autónomas da classe trabalhadora, o que aumentará muito o impacto do nacionalismo nos próximos anos.

Graffiti 29 aNuma série de artigos o Passa Palavra empenhou-se na crítica económica às propostas de abandono do euro e continuaremos a fazê-lo. Mas agora parece-nos sobretudo importante chamar a atenção para o problema do nacionalismo, que vem desde muito antes da intervenção da troika e promete continuar mesmo depois de morto e enterrado o derradeiro dos defensores do escudo. O problema é que na esmagadora maioria dos casos as pessoas não procuram formulações no plano teórico para abrir novas perspectivas mas para confirmar os precoceitos já existentes. São precisas grandes rupturas, aquela sensação de todo um mundo a fugir debaixo dos pés, para que os preconceitos sejam abandonados e as mentes se abram à novidade. Ainda não é nessa situação que estamos.

Resta-nos pregar no deserto? Talvez não. Sempre haverá quem ouça.

Este artigo está ilustrado com inscrições anónimas nas paredes de Lisboa.

9 COMENTÁRIOS

  1. No fundo, no fundo (mas bem no fundo mesmo, porque portugueses – com raríssimas exceções – não somos dados a encarar de frente os próprios fantasmas – e superá-los), se calhar, estamos à espera d’El Rei Sebastião:

    “Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
    Define com perfil e ser
    Este fulgor baço da terra
    Que é Portugal a entristecer —
    Brilho sem luz e sem arder,
    Como o que o fogo-fátuo encerra.

    Ninguém sabe que coisa quer.
    Ninguém conhece que alma tem,
    Nem o que é mal nem o que é bem.
    (Que ânsia distante perto chora?)
    Tudo é incerto e derradeiro.
    Tudo é disperso, nada é inteiro.
    Ó Portugal, hoje és nevoeiro…

    É a Hora!

    Valete, Frates.

    (Descrição de um poeta português famoso – mas não isento de simpatias fascistas, ao que tudo indica – das brumas de onde surgirá – enfim! – o salvador Sebastião a resgatar as glórias lusitanas)

    Desculpem se desvio do tema, mas cada vez que falam da tacanhez dos portugueses, não consigo deixar de os imaginar nas brumas à procura d’El Rei…)

  2. E no entanto houve outro português, a figura mais completa do século XX naquele país, e com simpatias ainda mais acentuadamente fascistas — embora não salazaristas — do que Pessoa, que teve a audácia de terminar o seu Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, lido em 1917, com a exclamação: «O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades».

  3. acho que um exemplo interessante de pequena empresa “de esquerda” que aposta no viés “ideológico” da mais-valia absoluta em solo brasileiro é a revista Caros Amigos, coisa que foi notoriamente revelado na greve de seus trabalhadores no ano passado.
    (estou tentando botar os links das postagens do PP a respeito aqui mas o site não anda funcionando bem aqui para mim)

  4. Lucas,
    Os links sobre o tema são estes:
    «Patrões de esquerda, patrões de direita»
    http://passapalavra.info/2013/03/74029
    «As vantagens de ser de esquerda»
    http://passapalavra.info/2013/03/74082
    «Coerência»
    http://passapalavra.info/2013/03/74227
    «Greve na Caros Amigos: quando a engrenagem sai do eixo»
    http://passapalavra.info/2013/03/74136
    «O anzol (48)»
    http://passapalavra.info/2013/03/74215
    «Caros Amigos?»
    http://passapalavra.info/2013/03/74751
    «Caros Amigos chantageia demitidos»
    http://passapalavra.info/2013/03/74858

  5. Penso que o grande defeito das análise do Passa Palavra sobre esse assunto é não observar o quanto o fascismo hoje é mais europeísta que nacionalista. Isso observa-se 1) pela articulação internacional entre os partidos; 2) pelo caráter europeísta do fascismo ucraniano; 3) pela participação de emigrantes portugueses nas listas da Front National; etc. etc. etc.

  6. Quem como eu lê o Passa Palavra regularmente e vê as asneiradas e as ignorâncias completas sobre o que foi o fascismo e a sua expressão internacional, talvez valha a pena recuperar um comentário do João Bernardo (http://passapalavra.info/2014/01/90438#comments) sobre um assunto relativamente análogo ao que é referido por José Ferreira:

    «Segui na internet algumas discussões acerca deste artigo, e num caso houve quem admitisse a existência de um «patriotismo internacionalista» e afirmasse que o «nacionalismo de esquerda» «tende a não ser exclusivista», enquanto o «nacionalismo de direita» «tende a ser exclusivista». Aqui lembrei-me de várias coisas, por exemplo do confronto militar entre a República Popular da China e a República Socialista do Vietname em Fevereiro e Março de 1979, dois nacionalismos de esquerda que, segundo aquela regra optimista, deveriam tender a não ser exclusivistas. Lembrei-me também de que, por iniciativa da Itália e na ausência do partido nacional-socialista alemão, se realizou em Dezembro de 1934 a conferência de Montreux, na Suíça, reunindo representantes dos movimentos fascistas de quinze países europeus, o que constitui um caso em que o nacionalismo de direita não se mostrou exclusivista. Aliás, a respeito da ausência dos nacionais-socialistas germânicos de Montreux convém saber que Hitler, sobretudo na sua roda de íntimos, se pronunciou várias vezes contra o nacionalismo, precisamente por considerá-lo demasiado exclusivista. Contra a divisão numa multiplicidade de nações Hitler e Himmler defendiam a união em grandes grupos raciais. Assim, dos 900 mil homens que até ao final da guerra haviam passado pelos Waffen SS, menos de metade eram alemães originários do Reich. Como fica, perante estes factos, a pretensa divisão entre o carácter exclusivista atribuído ao nacionalismo de direita e o carácter não exclusivista atribuído ao nacionalismo de esquerda? Esquerda e direita não servem para diferençar os nacionalismos; o nacionalismo é que serve para ligar a direita e a esquerda numa teia perversa.
    É que a operação fundamental do nacionalismo não se dirige ao lado de fora das fronteiras, mas ao lado de dentro. O primeiro objectivo do nacionalismo é atrelar a classe trabalhadora de um país aos capitalistas desse país — mesmo que as suas empresas estejam inseridas nas redes internacionais do capital. O nacionalismo não se destina a preservar tradições e culturas, porque isso se faz dentro das unidades nacionais, tanto federadas como centralizadas. O objectivo do nacionalismo é, pura e simplemente, o reforço do poder de Estado. O nacionalismo é a via para o capitalismo de Estado. É para isto, e só para isto, que serve a junção do nacional ao social.
    Ora, o eixo da crítica feita ao Guião Político por este artigo — e li com atenção ambos os documentos — parece-me ser o da inanidade das soluções económicas defendidas numa perspectiva nacionalista. O absurdo económico da saída de Portugal do euro, da adopção de uma moeda desvalorizada e do recurso à inflação explicam-se ao sabermos que o seu objectivo político é o reforço do capitalismo de Estado, assente numa extensão da mais-valia absoluta».

    Por outro lado, o senhor José Ferreira ganhava alguma coisa em ler os textos do Sternhell e do João Bernardo que têm sido oportunamente publicados por este espaço. Pode ser que aprenda alguma coisa sobre o que constitui o fascismo no seu âmago: uma colecção de nacionalismos, uma colecção de nações independentes, uma Europa das nações. Precisamente a mesma coisa que a esquerda que o senhor José Ferreira defende.

  7. O comentário acima, de minha autoria, é de 25 de Março. Três dias depois, num texto dedicado à relação entre oportunismo/reformismo e fascismo, o senhor José Ferreira diz o seguinte: «a partir do momento em que o europeísmo se mostra comum ao “oportunismo” e ao fascismo», sendo que parte desta transcrição remete para um texto sobre a análise do Passa Palavra ao fenómeno fascista, nomeadamente o caso da Frente Nacional. Não serei eu a analisar as abordagens do Passa Palavra ao assunto, apesar de me rever em grande parte das mesmas. Aqui importa ver o que o senhor José Ferreira considera como europeísmo.
    Segundo este autor, que responde indirecta e muito superficialmente ao que lhe foi colocado no comentário anterior, o fascismo hoje teria tanto de nacionalista como de europeísta. Se assim fosse, então também o leninismo seria sempre internacionalista, já que também contempla a libertação nacional de “todos os povos oprimidos”… Ora, e aqui volto ao final do meu comentário anterior. Juntar povos e nações numa qualquer Europa das nações não é mais do que agregar nacionalismos, e não criar um internacionalismo. Admira-me que alguém ligado ao PCP nem sequer contemple a obra de um historiador sobre o assunto. Em “O nosso século é fascista”, Manuel Loff defende uma inserção fascista do Estado Novo e do franquismo no fenómeno fascista mais global precisamente a partir da defesa transversal de uma Nova Ordem europeia, constituída precisamente a partir da construção de um Europa de nações dirigidas por regimes fascistas. Em suma, nos anos 30 era comum a todos os líderes fascistas a defesa da construção de uma Europa fascista, mas a partir do princípio que disse no final do comentário anterior: «uma colecção de nacionalismos, uma colecção de nações independentes, uma Europa das nações». Sobre este traço constitutivo do fascismo, o senhor José Ferreira nada diz.

    Para terminar. O internacionalismo não é uma colecção de nações libertadas, mas sustenta-se num princípio que defende a unificação de processos nacionais de luta e, em última instância, a dissolução das fronteiras. Sobre isto a esquerda estatista nada diz. Pudera, se a manutenção de uma classe trabalhadora fragmentada pelas fronteiras nacionais é condição sine qua non para o seu sucesso político. Não é esta esquerda que defende que cada povo deve tratar dos seus assuntos e que o compromisso de cada Partidão é, sempre em primeira instância, para com o seu país? Deste patriotismo até ao nacionalismo fica difícil de ver qualquer tipo de barreira intransponível. Depois esta gente espanta-se com o deslizamento de trabalhadores da esquerda para formações de extrema-direita. Ainda por cima quando essa tem sido sempre a regra.

  8. Adorei este texto. Nunca tinha visto alguem que se diz de esquerda a defender banqueiros, federalistas e a união bancária (a nao ser, claro, a malta do PS). Se os outros são nacionalistas de esquerda então voces sao capitalistas de esquerda. Eu nem sei o que vos leva a atacar o capitalismo, dado que, vendo bem as coisas, o capitalismo está a proporcionar-vos o contexto ideal para realizarem os vossos sonhos. Espera lá… deve ser por isso que so atacam anti-capitalistas…

    Adiante… o texto até foi interessante mas, como seria de esperar, todos os facto que sao contra o vosso argumento foram “esquecidos”. Ainda escorregaram quando referiram os centros comerciais, cujo problema é importarem demasiado e constrangirem a produçao nacional, mas esqueceram-se de referir coisas como a UE pagar para nao produzirmos e por restriçoes a quantidade que podemos produzir de certos produtos, ou que, enquanto estivermos no euro, teremos que contraír sempre dívida para nos financiarmos, enquantos os alemaes adquirem euros a taxas de juro negativas. Enfim, os bonzinhos da UE ate tem feito tudo para que o nosso pais avance, o problema tem sido mesmo os «nacionalistas de esquerda».

    O federalismo e a união bancária significam, na practica, sermos governados, não pela Alemanha, mas por um conjunto de interesses que nada tem a ver com os nossos, fazendo com que todos os povos fiquem impedidos de mudar o q quer q seja por si próprios e dificultando qualquer tipo de movimento anti-sistema, dado que a organizaçao percisaria de ser a um nível europeu em vez de meramente estatal, e poderíamos ser empurrados para conflitos com os quais nada temos a ver, meramente na moda dos EUA, em que todos os estados funcionam como um potencial económico e militar unificado, sem que nenhum deles tenha direito a dizer que quer ver as coisas feitas de maneira diferente. Certamente que Portugal nada tem a ganhar com isto e que os grandes capitalistas tem tudo a ganhar, mas isto é daquelas coisas que voces se recusam a ver.

    Epa alistem-se no PSD, se funcionou para o Barroso também deve funcionar para vocês…

  9. Num comentário à 1ª parte deste artigo C33 afirmou que «o capitalismo procura internacionalizar-se o mais possível» e, portanto, «é necessário que exista uma forte vertente nacionalista para combater isso». O raciocínio é de um primarismo atroz, mas, como é muito difundido, há que encará-lo. Precisamente nesta 2ª parte do artigo o Passa Palavra mostrou o significado económico de tal nacionalismo — a subordinação dos trabalhadores aos interesses das empresas mais retardatárias, aquelas em que predomina a mais-valia absoluta. Pergunto a mim mesmo se este comentário de C33 não foi simplesmente inventado, a tal ponto ele serve para ilustrar as teses expostas no artigo, empenhando-se em defender os interesses dos capitalistas mais arcaicos. Ainda por cima, é este mesmo C33 quem, no referido comentário à 1ª parte do artigo, invoca «a imigração descontrolada». Os trabalhadores portugueses ficariam subordinados aos interesses daqueles patrões portugueses que são incapazes de se modernizar tecnologicamente e por isso são adeptos dos baixos salários; e, para disfarçar, agitar-se-ia perante os trabalhadores portugueses o papão da «imigração descontrolada», ou seja, lançar-se-iam os trabalhadores uns contra os outros.
    Aparecem sempre leitores a demonstrar, com o seu exemplo, que mesmo os piores diagnósticos são realistas.

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