Por Passa Palavra

 

1. Europeização ou nacionalização das políticas?

Este é fundamentalmente um texto sobre táctica, mas sem perder uma inserção estratégica do contexto actual. Assim sendo, as eleições europeias merecem ser avaliadas não enquanto actos eleitorais mas enquanto expressão de outras dinâmicas políticas.

Relativamente às questões europeias e aos perigos nacionalistas registe-se o desempenho sofrível das formações partidárias que reivindicam algum tipo de discurso europeísta. Em conjunto, o Bloco de Esquerda (BE) e o Livre não chegam aos 7% dos votos, o que é pouco mais de metade dos votos atingidos pelo Partido Comunista Português (PCP) (12,69% e quase 420 mil votos). Sozinho, o BE tem pouco mais do que um terço dos votos do PCP: 4,56% e 150 mil votos. Para um partido que em 2009 teve mais de 380 mil votos em eleições para o Parlamento Europeu, é inquestionável a erosão da influência da esquerda socialista e que não reivindica a dissolução da União Económica e Monetária.

Nesse sentido, os resultados eleitorais colocam o PCP como a grande força partidária da esquerda à esquerda do Partido Socialista (PS). Num artigo no jornal Expresso lê-se o seguinte: «E depois há a rua, onde o PCP tem um doutoramento. Metade do país ficou excitado com os “indignados” e depois com o “Que se lixe a troika”. O PCP sempre disse que não gosta de movimentos inorgânicos, como eram estes manifestamente. Mas não os ignorou nem os desvalorizou. Quando viu tanta gente na rua, o PCP mandou a CGTP [Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional] tomar conta da ocorrência. E Arménio Carlos fez o trabalho com uma eficácia impressionante. Há meses e meses que os protestos de rua passaram a ser liderados pela Inter.» Na verdade não tem havido grandes protestos de rua, mas quanto aos que ocorreram no último ano, aí o director do Expresso tem razão, foram controlados pela CGTP.

Neste plano desenha-se um cenário impensável há cinco ou seis anos atrás. A erosão das correntes não-estalinistas na esquerda portuguesas e a progressiva hegemonização política, ideológica e organizacional do campo à esquerda do PS pelo PCP. Mais de 20 anos após o colapso da URSS, eis que em Portugal os herdeiros do estalinismo têm mais peso e influência eleitoral e social do que as outras correntes à esquerda em conjunto. Enquanto o BE tem tido crescentes dificuldades em assumir uma visão europeia coerente e inequívoca relativamente a um trajecto de progressiva integração europeia, o PCP manteve a sua coerência anti-europeia, organizou-se e conseguiu capitalizar parte da contestação à esquerda. Em vez de proclamar sem tibiezas que a crise económica não se resolve com uma saída do euro e com a substituição da União Europeia por nacionalismos económicos, o Bloco tem tentado manter um pé em cada lado. Contudo, quando o contexto estrutural da União Europeia se encaminha cada vez mais para um aprofundamento da sua integração (leia os cinco artigos da série A estratégia dos gestores aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) e quando as soluções apresentadas pela esquerda nacionalista são cada vez mais exclusivistas, há que fazer escolhas. Ou pela actuação no plano europeu contrapondo um projecto político transnacional de esquerda à transnacionalização dos tecnocratas, ou pelo alinhar de espingardas ao lado dos que, da esquerda à extrema-direita, anseiam por exclusivismos nacionais.

Curiosamente, na Grécia, o Syriza chega aos 30% com um discurso que não coloca em causa o euro e num país onde a extrema-direita neonazi consegue um resultado eleitoral semelhante ao do PC português. Contudo, as condições gregas são especiais e ali o Syriza substituiu o PASOK. Mas, apesar de tudo, um partido minimamente europeísta consegue um resultado melhor do que os nacionalistas e com um discurso que não quer sair do euro. Ora, em Portugal não existe nem uma extrema-direita com a influência e com a violência de rua da Aurora Dourada, nem o descalabro económico e social é comparável ao que ocorreu na Grécia (em Portugal o PIB retraiu 8% em três anos, um terço do registado na Grécia). Assim, é inusitado que num contexto político e socioeconómico menos desfavorável o BE receie reivindicar mais Europa e não assuma que o problema da economia não se encontra no euro mas no arcaísmo de grande parte dos empresários portugueses (veja também aqui) e no atraso tecnológico da população em geral, que não será resolvido pelo ensino do surf nas escolas. Do ponto de vista eleitoral, já que as eleições são um dos terrenos centrais da intervenção do BE, ou este partido se distingue do PCP e, no mínimo, pugna por uma democratização das instituições da União Europeia, ou então o BE corre o risco de ser visto cada vez mais como uma cópia do PCP em matéria europeia. E, como sempre acontece nessas situações, quem vota preferirá o original à cópia. O grande risco que parece estar pendente sobre o BE é este.

2. A esquerda em vias de ser engolida pelo nacionalismo?

Em suma, não se pode dizer ao mesmo tempo “votem em nós porque as diferenças que nos separam do PCP são estas e estas”, para concluir dizendo explicitamente “mas só juntos vamos conseguir”. Em teoria pode argumentar-se que as diferenças políticas não impedem uma aliança. Em teoria sim. Mas, na prática, será que interessa fazer uma aliança com nacionalistas que se chegassem ao poder iriam prender (ou pior) todos os “contra-revolucionários esquerdistas”? Será possível fazer uma aliança com um partido que defende como interesse estratégico a dissolução da União Económica e Monetária (leia aqui e aqui), contrapondo uma via de fragmentação nacional da Europa? De que serve uma aliança com um partido que apoia regimes ditatoriais como os existentes em Cuba, Coreia do Norte, Angola, Irão, Rússia ou Síria e que nunca renegou a herança estalinista? Nada do que aqui afirmamos é desconhecido pela esquerda portuguesa, pelo que cabe perguntar por que se insiste numa visão que contempla uma aliança com uma força política nacionalista e potencialmente totalitária?

Uma hipótese, e esperamos que ela não venha a ganhar ainda mais substância, é a de que a força eleitoral e sindical do PCP funciona como um espelho para a restante esquerda à esquerda do PS. A política eleitoral está para a maioria da esquerda (inclusive a extra-parlamentar) como o box office dos filmes mais comerciais de Hollywood: ninguém liga ao conteúdo, pode não prestar para nada mas o filme é um sucesso e, no final de contas, todos querem ver e aderir à moda. Esse é o aspecto mais perigoso do cenário que se desenha daqui para a frente: o embarcar colectivo da esquerda radical numa tentativa de copiar ainda mais os “bem-sucedidos” do PCP.

Ainda por cima, como o PCP teve melhores resultados no que era um dos campos de predilecção do BE, então essa tendência certamente se poderá agravar. Acrescente-se a isto o facto de haver quem insista, na área do BE, na conveniência de unir a questão social à questão nacional. As recentes eleições para o Parlamento Europeu tornaram evidentes os resultados dessa união, na medida em que a extrema-direita consegue crescer, precisamente recorrendo à junção do social ao nacional. Dessa forma, o facto de o programa patriótico e nacionalista da extrema-direita ser defendido por uma corrente da esquerda não significa que esse programa mude de cor. É pior ainda, porque quando se trata do Front National ou do United Kingdom Independence Party e quejandos as demarcações políticas ficam claras. Mas quando o PCP defende o mesmo, isso só confunde ainda mais os trabalhadores, já que se uma certa esquerda quer concretizar um programa com muitos pontos em comum com a extrema-direita, com toda a razão os trabalhadores começam a perguntar-se onde começa e onde acaba o nacionalismo à esquerda e à direita.

Mas, como dissemos há pouco, o problema não se deve colocar no plano eleitoral e devemos retirar lições políticas dos resultados eleitorais. Por conseguinte, ou a esquerda radical não-estalinista consegue afirmar um projecto moderadamente europeísta e que responda à austeridade numa base supranacional, ou será cada vez mais difícil para o BE se afirmar como uma força alternativa ao PCP. Nestas como noutras coisas não há meios caminhos, pelo que uma cedência à pressão pelo resgate de temas soberanistas nacionais resultará numa cada vez maior indistinção entre o próprio BE e o PCP. As consequências podem ser ainda mais nocivas politicamente e o perigo de o BE se tornar irrelevante não é nada à beira da ainda maior penetração do nacionalismo em quase todos os segmentos da esquerda portuguesa. A ausência de uma abordagem crítica ao PCP, que não desvende rigorosamente os traços estruturais deste partido, só contribuirá para deixar a restante esquerda desarmada perante os perigos do nacionalismo.

Voltando a comparar os casos grego e português, o PCP é ideologicamente irmão do Partido Comunista da Grécia, o KKE, se bem que se distingam no plano da actuação prática concreta. As similitudes políticas são por demais evidentes (nacionalismo; anti-europeísmo; estatismo; concepção burocrática das lutas; herança e desculpabilização do estalinismo), mas o KKE é um partido mais ostensivo no seu sectarismo e que se afirma abertamente isolacionista, sem políticas de alianças. O PCP, neste aspecto, é uma velha raposa e tem uma experiência de décadas de praticar um falso unitarismo para se reforçar e comandar a partir de dentro: desde o MUD, as CDEs, a CGTP, as associações das forças policiais e das forças armadas, reuniões públicas na Aula Magna ou reuniões com o BE para dar uma falsa imagem de busca de unidade, etc. Se a crise se tivesse agravado a um ponto de o Estado central estar a esburacar-se, o PCP teria parte de uma máquina sobressalente e que, em nome da salvação nacional, poderia ocupar, nem que fosse temporariamente, o centro de poder. À esquerda há a tendência para se menosprezar as estruturas para-estatais do tipo das que o PCP tem em Portugal. Ora, organizações como o PCP existem para momentos de crise e para momentos de controlo social sobre os trabalhadores revoltados. Os acordos parlamentares, o cultivo de relações a partir de sectores internos seus com a restante esquerda, os piscares de olhos unitários são meros instrumentos numa estratégia leninista mais vasta, o desejo de instaurar um capitalismo de Estado em Portugal. Um capitalismo de Estado repressor das mais básicas liberdades e garantias e ancorado em alianças internacionais com ditaduras.

3. A crítica da austeridade só é politicamente eficaz se também criticar o nacionalismo

Uma nota final para os que pensam que o nacionalismo é irrelevante ou que apenas surge a partir da extrema-direita.

O nacionalismo que se manifestou eleitoralmente no dia 25 de Maio é apenas o reflexo de um processo muito mais profundo e que se vem afirmando desde há alguns anos. Olhe-se para a arquitectura deficiente da União Europeia e verifique-se o impacto do nacionalismo no seu seio. Basta pensar que, se não fosse o nacionalismo das direitas e de certa esquerda, a União Europeia certamente já teria uma mutualização das dívidas, o que, na pior das hipóteses, teria impedido o descalabro de várias das dívidas nacionais. Se não fosse essa convergência de nacionalismos, o Banco Central Europeu não teria esperado até Julho de 2012 para dizer que faria tudo para manter o euro e teria actuado logo em 2010. Na pior das hipóteses, bastariam estes dois aspectos para que a austeridade tivesse sido muito menos profunda e, acima de tudo, fosse mais espaçada no tempo. Em termos políticos, se há um responsável pela ascensão do nacionalismo e pelo potencial de respostas políticas assentes na mobilização do ressentimento dos déclassés da chamada “classe média” é a aliança entre os nacionalismos da esquerda e da extrema-direita. O ressentimento pode existir mas ele não cria por si só estruturas políticas que componham uma teia de vectores passíveis de fascizar. Tal como, no passado, quem criou as organizações fascistas foram os Sorel, os Corradini, os Cercle Proudhon e a convergência de nacionalismos à esquerda e à direita (leia as quatro partes do estudo de Zev Sternhell sobre O nascimento da ideologia fascista aqui, aqui, aqui e aqui e leia aqui um artigo sobre O Partido Comunista alemão e a extrema-direita nacionalista). Só nesse contexto essas organizações actuam e florescem no seio de um terreno onde os trabalhadores estão fragmentados e hostis a acções colectivas de classe.

A crítica da austeridade só é completa se criticar com igual veemência o nacionalismo que a agrava e procura replicá-la num grau imensamente superior. Sem esta dupla crítica, a esquerda radical corre o risco de ficar cada vez aprisionada numa teia que tem escapado das suas reflexões. Repetimos: mais de 20 anos após o colapso da URSS, eis que em Portugal os herdeiros do estalinismo têm mais peso e influência eleitoral e social do que o conjunto das outras correntes à esquerda. A restante esquerda vai continuar a deixar passar em branco este fenómeno ou irá finalmente reflectir nas suas implicações?

Este artigo está ilustrado com pormenores de obras de Hieronymus Bosch.

8 COMENTÁRIOS

  1. Vários artigos, tanto assinados pelo colectivo do Passa Palavra como pelo João Valente Aguiar ou por mim próprio, têm alertado para a convergência entre a extrema-direita europeia e uma certa esquerda. Em Portugal essa convergência tem tido no Partido Comunista o principal motor, arrastando consigo algumas áreas do Bloco de Esquerda. Na sequência das eleições de 25 de Maio para o Parlamento Europeu a influência exercida pelo nacionalismo do Partido Comunista sobre o Bloco de Esquerda agravou-se. Neste contexto, é importante conhecer o que o site resistir.info, da área do Partido Comunista, pensa sobre o programa da extrema-direita francesa: «Ainda que a referida senhora [Marine Le Pen] (ou o pai dela) sejam de extrema-direita, o programa que a Frente Nacional apresentou ao povo francês não era de extrema-direita. Muitas das suas propostas eram perfeitamente razoáveis, corajosas e até meritórias, como a saída do euro e da UE, a defesa de indústria nacional, a ruptura com a globalização, a independência frente aos ditames estado-unidenses. Teses como essas não são de extrema-direita. São, sim, progressistas. O fracasso de forças de esquerda francesas em assumirem a sua defesa é uma mancha que ficará na sua história.» Pode ler-se na íntegra aqui. Ou seja, para o Partido Comunista, com a área do Bloco de Esquerda por ele influenciada, os fascistas franceses defendem um programa «progressista» e a esquerda francesa é criticada por não ter defendido um programa igual ao proposto pelos fascistas.
    Se as lições da história nas décadas de 1920 e 1930 não são bastantes para esclarecer essa gente, bem pode o Passa Palavra continuar a pregar no deserto.

  2. Num texto recente (http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2014/06/as-raizes-do-eurocepticismo.html) Alexandre Abreu considera que para contrapor ao avanço da extrema-direita é… responder com as mesmas teses da extrema-direita: «Infelizmente, como estamos agora a assistir pela Europa fora, os partidos anti-democráticos e xenófobos são quem está a ocupar mais rapidamente este espaço político [da nação], subvertendo estas legítimas aspirações. Se o campo democrático não assumir rapidamente que esta União Europeia, e sobretudo este Euro, têm mesmo de ser desmantelados para que uma Europa solidária e de progresso possa ser reconstruída, são sombrias as nuvens que se erguem no horizonte».
    Portanto, quando a Marine Le Pen (http://www.jn.pt/PaginaInicial/Mundo/Interior.aspx?content_id=3947392) diz que «quer destruir a União Europeia, mas não a Europa», em que é que o eurocepticismo da líder da extrema-direita se distingue do eurocepticismo de determinada esquerda? Dito de outra maneira, Alexandre Abreu consegue dizer que para combater o avanço da extrema-direita nada melhor do que a esquerda pegar nas bandeiras da nação e do desmantelamento da UE. As bandeiras que a extrema-direita tem utilizado…

    Quando uns à esquerda acham que as bandeiras da extrema-direita são de esquerda e progressistas (vd. comentário anterior), e outros, também à esquerda, acham que a esquerda deve retirar à extrema-direita as bandeiras do desmantelamento da UE (e já não apenas do euro), a fluidez semântica e discursiva fica de tal forma que torna porosas as fronteiras entre a chamada esquerda e a direita mais extrema. Nunca a esquerda venceu a extrema-direita no campo da nação e, mesmo assim, alguns acham que vai ser desta… Como alguém terá dito há uns anos atrás, de derrota em derrota, rumo à vitória.

  3. João Bernardo, você dá a entender que projetos supra-nacionais “escapam” do campo da direita radical. Ora, a própria Le Pen, que lembraram aqui aponta nesse sentido de projeto supra-nacional: é contra a UE, mas não contra a Europa. Cabe lembrar que Le Pen já disse ser simpática a Putin, que está tentando rearticular projetos supra-nacionais e que possui como ideólogo para-oficial Alekansdr Dugin – que, para além de propôr um projeto geopolítico supra-nacional, a Eurásia (inspirado em larga medida em Jean Thiriart e Carl Schmitt, outros dois propositores de algo bem diverso do nacionalismo), possui conexões com defensores da superação do nacionalismo, como Alain de Benoist.

    Talvez a saída “europeísta” não seja tão imune à direita radical quanto você acha.

  4. Nantess0r,
    Penso que as suas observações deveriam na verdade ter sido dirigidas ao texto do resistir.info que eu cito. Nem neste meu comentário nem em qualquer outro lugar eu escrevi que a extrema-direita radical é alheia aos projectos supranacionais. Pelo contrário. Tanto no livro que dediquei ao fascismo como em artigos publicados aqui no Passa Palavra abordei esse processo de supranacionalidade, sobretudo a propósito do Terceiro Reich. Quanto a Dugin, remeto-o para o meu artigo «Alexander Dugin: o artigo que não escrevi». Aproveito para indicar que no número de 19 de Abril deste ano, na pág. 24, The Economist publicou um artigo muito interessante acerca das relações de Putin com a extrema-direita europeia, tanto fascista como conservadora. O que está em jogo é uma disputa entre dois tipos de supranacionalização, como não pode deixar de ser numa época de transnacionalização do capital. De qualquer modo, o objectivo do meu comentário foi o de chamar a atenção para o facto de um site da área do Partido Comunista considerar «progressista» o programa proposto pelos fascistas e criticar a esquerda francesa por não ter apoiado esse programa. Quando alertamos para os riscos da fusão do social no nacional e para o perigo da convergência de uma certa esquerda com a extrema-direita, aquele texto do resistir.info mostra que temos razão.

  5. João Bernardo,

    Já li o seu artigo sobre Dugin, de fato muito interessante. Me referia à conjuntura atual, na verdade. Concordo com suas observações sobre a intercambialidade entre direita e esquerda através da questão nacional – apenas acho que ela também pode existir através de saídas “europeístas”.

    Quanto aos tipos de supra-nacionalização a que se refere, gostaria de saber quais são. Na minha opinião, só existem dois projetos atuando nesse sentido – o da direita (mais ou menos) radical via, principalmente, Rússia ou o da tecnocracia da UE. Não vejo concretamente projetos supra-nacionais da parte da esquerda anticapitalista/radical. Que acha?

  6. Nantess0r,
    O capital está transnacionalizado e as grandes companhias transnacionais assumiram não só tarefas que antes cabiam aos governos como também algumas que cabiam a instituições internacionais decorrentes da ONU ou do Banco Mundial. Veja-se como mero exemplo a actuação da Petrobras ou da Odebrecht ou ainda da Vale, nomeadamente em vários países africanos, não só nos de língua portuguesa. Neste contexto, evocar o reforço das soberanias parece-me uma demagogia vocacionada para os pequenos patrões e para os sectores da classe trabalhadora que deles dependem. Trata-se de uma falsa consciência, que serve para manipular politicamente e para obscurecer a percepção da realidade.
    No fundamental, e cingindo-me à Europa, eu vejo, por um lado, um projecto supranacional assente numa moeda comum, numa crescente união bancária e numa federalização que poderá prosseguir de maneira explícita ou apenas paulatinamente. Este projecto tem sido apoiado fundamentalmente pela tecnocracia de centro-direita e de centro-esquerda. Por outro lado, vejo um projecto de supranacionalização centrado na Rússia, exportadora de uma matéria-prima energética fundamental, e prometendo respeitar soberanias que na prática o capital transnacional já deixou muito limitadas. Este segundo projecto está a receber o apoio da extrema-direita fascista ou conservadora e do que resta do antigo comunismo pró-soviético. O Passa Palavra tem procurado mostrar, ao longo de muitos artigos, que o abandono do euro e a desagregação da União Europeia teriam para a classe trabalhadora consequências económicas ainda mais gravosas do que as resultantes hoje das medidas de austeridade. Para usar a terminologia marxista, enquanto no primeiro projecto predomina a mais-valia relativa, no segundo predominaria a mais-valia absoluta, com os governos ditatoriais que sempre acompanham esta forma de exploração. Por isso temos considerado que este segundo projecto é o mais funesto para a classe trabalhadora, comprometendo-lhe as possibilidades de uma luta autónoma e dificultando-lhe a reorganização política.
    Mas o mais grave de tudo está condensado no final deste seu segundo comentário, quando escreve: «Não vejo concretamente projetos supra-nacionais da parte da esquerda anticapitalista/radical.» Não os vê porque não existem. O que significa que a classe trabalhadora não tem actualmente um projecto político próprio. Pior ainda. Em Portugal, como em vários outros países, a grande maioria da esquerda procura agir num campo nacionalista secundarizado pela evolução do capital, enquanto os capitalistas agem no plano transnacional, que é o único com dinamismo. Gostaria de saber como se pode falar em crise do capitalismo quando neste momento o que assistimos é a uma profunda crise política da classe trabalhadora.
    E a esquerda nacionalista, quando enaltece o projecto político antifederalista e anti-euro da extrema-direita europeia, prefere deixar no silêncio um componente essencial desse projecto — a hostilidade aos imigrantes. Agora e aqui, como sempre e em todos os lugares, o nacionalismo implica a clivagem entre os trabalhadores de cada país, o que, se é sempre funesto, é trágico quando ocorrem grandes movimentos migratórios. Peço-lhe, bem como aos restantes leitores, que leia isto. Trata-se do programa de uma nova tendência fascista radical portuguesa, que alinha sete reivindicações que, à primeira vista, deixam ultrapassado tudo o que a extrema-esquerda portuguesa ousa propor. Mas a oitava reivindicação é: «Preferência ao trabalhador nacional no acesso ao posto de trabalho». O nacionalismo é isto, tanto neste manifesto de uma força periférica como nos manifestos das forças de extrema-direita mais importantes; e são estas as implicações reais do programa do Front National francês, que o Partido Comunista considera «progressista» e a cujo apoio concita o Bloco de Esquerda. Se mesmo os imigrantes oriundos da União Europeia deparam com dificuldades crescentes, para não falar dos que vêm de fora da União, imagine-se o que significaria o encerramento do projecto federalista e o estabelecimento de uma «Europa das nações».

  7. Olá

    Devo confessar que olho o marxismo autonomista do mesmo modo que olho o anarquismo: como a voz da consciência do marxismo. Radicalmente essencialista, está aí para lembrar-nos que o caminho é pela esquerda mesmo quando não há saída à esquerda a não ser despistando o carro. Por isso, nem sempre é para levar a sério.

    Neste caso concreto, é um deles. Não é factível um movimento de esquerda internacionalizado; um projeto europeu hoje é e será sempre um projeto capitalista. Por isso, a defesa do nacionalismo é necessária nem que mais não seja para subtrair essa bandeira ao fascismo. Repare-se na incapacidade do Syriza desafiar as bases da construção do projeto europeu; repare-se como a Front National cresceu em França na ausência de um projeto anti-imperialista de esquerda.

    Vale dizer que, para um leninista, o programa de autodeterminação nacional sempre foi instrumental em relação à luta de classes. Mesmo depois da Revolução de Outubro – e ao contrário do que aqui foi escrito pelo João Bernardo – a constituição da nação russa, independente do semi colonialismo da Alemanha, era condição – na cabeça de Lênin – para fazer eclodir a luta de classes na Alemanha, onde os operários eram pouco explorados em virtude da sobre-exploração na Rússia. A Revolução de 1917, e sobretudo o fracasso da Revolução de 1919, não altera o modelo na cabeça de Lênin; apenas dilata o tempo entre causa (a Revolução democrática nos países periféricos) e efeito (a eclosão da luta de classes nos países centrais).

    Traduzir o modelo leninista para os dias de hoje, atualizar a análise das relações entre a diversidade de “ideologias” dentro da classe operária e a forma do capitalismo, em particular do “oportunismo”, é um trabalho que falta fazer. Mas a luta anti-euro e anti-UE parece-me essencial para dissociar os trabalhadores de um projeto intrinsecamente e inevitavelmente burguês na realidade dada – é claro que existem alternativas numa realidade imaginada.

    Várias vezes vos li protestar contra a massificação em torno do argumento patriótico. Mas alerto para a possibilidade da vossa defesa do euro e da UE funcionar no mesmo modo.

    Abraço

  8. A ILUSÃO NACIONLISTA

    As burguesias nacionais da Europa
    agregaram-se na União Europeia pela
    necessidade de reforçar o seu poder comum e
    fazer frente aos seus concorrentes em melhores
    condições. Trata-se de um processo histórico
    inerente ao próprio crescimento capitalista que
    alterou por completo as relações entre os
    grupos económicos e as burguesias de cada
    país membro.
    A agudeza da actual crise na Europa veio
    desmentir os cenários de “igualdade” e de
    “convergência” entre países e povos, ricos e
    pobres. Veri!ca-se na verdade, como é próprio
    do capitalismo, um aumento das desigualdades
    e não uma eliminação das diferenças entre os
    pólos capitalistas mais fortes e as regiões mais
    dependentes. Consequentemente, crescem os
    conflitos de interesses, aumenta o domínio
    económico e político dos estados mais
    poderosos sobre os mais fracos, emergem o
    chauvinismo, o racismo e mesmo as ameaças
    de ruptura da União.

    A nossa luta contra a União Europeia tem
    por alvo o capitalismo globalizado e as
    consequências dessa situação nova no nosso
    país. Não tem como meta a restauração da
    independência nacional burguesa, etapa
    ultrapassada quando a classe dominante
    portuguesa se integrou no mercado europeu.
    Só a pequena burguesia alimenta a ilusão de
    fazer renascer o seu espaço nacional de ontem.
    Não tem por objectivo, tão-pouco, a
    ilusória reforma “democratizadora” das
    instituições europeias, moldadas à medida das
    ambições imperialistas do grande capital
    Europeu, e por isso mesmo estudadas para
    excluir a vontade dos povos.

    O proletariado tem que rejeitar tanto a
    miragem do regresso a um passado nacional
    morto, como as promessas chauvinistas de uma
    “Grande Europa”.
    A magnitude da ofensiva burguesa contra
    as classes trabalhadoras e o seu carácter global
    fomentam a ideia de que a resistência de
    massas seria mais fácil se fosse travada contra
    cada burguesia em cada país. Mas esse quadro
    nacional está de!nitivamente ultrapassado.
    Hoje, as forças que podem ajudar a luta de cada
    proletariado nacional são os proletários dos
    outros países da União Europeia.

    O internacionalismo, desde sempre
    inscrito no programa dos comunistas, tornouse
    assim uma necessidade prática e premente.
    O proletariado precisa de uni!car as lutas
    nacionais e internacionais contra a burguesia.
    Esse passo é indispensável para a voluntária
    associação de todas as nacionalidades numa
    Europa liberta das desigualdades do
    capitalismo.

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